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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

22.05.15

17 - Modelismo Naval 4 - Os Fabulosos Clippers da China - Parte 2


marearte

 

 

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Caros amigos

 

(continuação)

 

No post anterior procurei fazer o enquadramento, de uma forma superficial, dos Clippers da China (ou do Chá, ou do Ópio ou Negreiros), abordando um pouco da história do cultivo do chá e de alguns assuntos relacionados com a sua produção e transporte, desde o séc. XIX até aos nossos dias, na China e na Índia e sobre o papel desempenhado pelos Ingleses na “expansão” do cultivo do chá “Urbi et Orbi”.

É interessante verificar que, na Inglaterra de moral exigente da época Vitoriana, consumia-se ópio das mais variadas formas. Thomas de Quincey, entre outros, no livro autobiográfico "Confessions of an English Opium-Eater" confirma este consumo.

Não disse mas penso que os ingleses, dessa altura, foram os maiores traficantes de droga que alguma vez existiram. Produziam, transportavam e "impunham" a venda. Dominavam, como se costuma dizer para os produtos agrícolas, a fileira completa Nada que se compare com os actuais “dealers”. Mesmo pensando com uma mentalidade do séc. XIX, a sua actuação é condenável. Diplomacia económica musculada!

Em Julho de 1997 a ilha de Hong Kong, ocupada oficialmente pela Inglaterra na primeira guerra do ópio em 1842 como uma concessão de 155 anos, foi restituída à China.

Lembrei-me de repente que, nesse ano, a China tinha produzido uma grande metragem - "Guerra do Ópio" - que ganhou alguns prémios internacionais e focava a guerra do ópio na perspectiva dos vencidos, segundo o ponto de vista de Lin Zexu, Comissário Imperial (o que destruiu o ópio no porto de Cantão) e do diplomata Inglês Charles Elliot, duas figuras-chave dos acontecimentos registados na época.

Consegui encontrar uma cópia do filme no Youtube que está em boas condições. legendado em brasileiro bastante aceitável e que se encontra na hiperligação abaixo. Para quem tiver curiosidade e tempo (+/- 1h50) vale a pena visioná-lo. Vê-se bem.

O filme é claramente político (até pelo ano em que foi lançado), embora esteja montado duma forma épico-histórica, muito ao estilo de Hollywood. Foi gravado no "Hengdian World Studios" em Chinawood (uma referência a Hollywood) Apesar desta abordagem política, foi bastante bem recebido pela crítica ocidental sendo considerado uma representação justa dos factos históricos (even-handed - imparcial em inglês).

 

Filme - "A Guerra do Ópio" - 01H50

 

Posto isto, vamos então entrar no assunto principal deste post que trata de modelismo naval e de clippers e ver então... …

O que são “Clippers”

Para não entrar em muitas considerações filológicas sobre a origem do termo, direi apenas que o termo "clipper" deriva do inglês "clip" e pode ser traduzido livremente por "veloz".

Não existe uma definição única para as características dos clippers mas, para os marinheiros, existem três coisas que devem estar reunidas num clipper:

  • deve ter uma configuração afilada, construído para ser veloz;
  • deve ter mastros altos e envergar o máximo de pano (área vélica);
  • e deve usar este pano dia e noite, com bom ou mau tempo.

Com uma silhueta esguia, o clipper perde em capacidade de carga o que ganha em velocidade.

Tipicamente os clippers aparelhavam com velas extra, não muito usadas em navios normais. Os primeiros clippers  de três mastros, com 43 m entre perpendiculares e 9 a 10 m de boca (uma relação aproximada de 1:5) e 490 T, armavam em galera.

Os clippers chamados "extreme clippers", com capacidade de carga de 1.000 a 2.000 T tinham também 3 mastros mas a sua armação comportava velas extra, sendo o seu aparelho composto por velas redondas nos mastros e mastaréus, velas latinas de entremastros, velas de carangueja e retranca no mastro da mezena e real, gurupés com as suas velas (3 ou 4), varredouras e cutelos.

 

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 O clipper "Lighting" a navegar com varredoura (vela mais baixa e exterior a estibordo), cutelos no traquete e mastro real (as velas exteriores do meio e superiores quer a estibordo quer a bombordo). Estas velas funcionavam em vergas extensíveis para fora do casco, acopladas ás vergas principais ligadas aos mastros. Era muito pano! A manobra destes navios exigia muitos marinheiros bem treinados e sabedores do seu ofício e uma mão forte a coordená-los. Tinha de ser uma "máquina" bem oleada!

Parece que os primeiros navios a que foi dado o nome de clippers foram os "Baltimore Clippers". Estes navios eram "Topsail Scooners", escunas que envergavam uma ou duas velas redondas no mastro do traquete e foram desenvolvidos na baía de Chesapeake antes da revolução americana, tendo atingido o seu apogeu entre 1795 e 1815. Eram pequenos, raramente com mais de 200 T e inspiraram-se nos lugres franceses. Muitos deles foram barcos piratas na baía de Chesapeake e no Oceano Atlântico, na zona da costa da Virgínia e de New Jersey.

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 Um clipper de Baltimore reconstituído nos nossos dias, na baía de Chesapeake

 

Na guerra de 1812 entre os Estados Unidos e a Inglaterra alguns destes clippers foram armados e combateram com cartas de corso (estatuto de corsários ou seja, podiam "roubar" legalmente) e ficaram conhecidos pela sua velocidade que, além de resultar da configuração do casco esguio, juntava um elevado calado, o que lhe possibilitava arrimar-se bastante ao vento. Os clippers que romperam o bloqueio dos britânicos a Baltimore ficaram mais conhecidos pela sua velocidade do que pela sua capacidade de carga.

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 A baía de Chesapeak no estado da Virgínia

 

No livro "Chesapeake" de James A. Michener (1907-1997), editado em português pelas Publicações Europa-América em 1978 na sua colecção Século XX, estes navios são referidos em várias ocasiões como fazendo parte da história da costa oriental dos USA. Embora o livro seja romanceado - e o próprio autor avisa que é ficcionado - pela pesquisa que foi efectuada, dá uma ideia muito aproximanda do que foi a realidade nessa zona do século XVI ao século XX. Estamos habituados a ligar os USA à conquista do Oeste com cowboys, índios, vacas e combóios mas também existiu uma colonização no Leste, protoganizada por índios, colonos, escravos e navios (e a invenção e construção dos mesmos), talvez não tão violenta mas com episódios de grande violência.

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A velocidade que era requerida aos clippers para romper o bloqueio a Baltimore também era necessária para os clippers do ópio que navegavam entre a Inglaterra, a Índia e a China. 

Apareceu então, um tipo de clipper inspirado nos "Clippers de Baltimore" os chamados "Early Clippers".A construção desta classe de navios foi iniciada por volta dos anos 30 do século XIX. Básicamente a sua estrutura era totalmente em madeira. Este foi um comércio que só deixou de ser lucrativo para os proprietários americanos em 1849, ano do início da corrida ao ouro na Califórnia.

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Um early clipper - Um clipper do ópio Inglês denominado "Water Witch" - 1831

 

No apogeu da vela o clipper mais emblemático - até porque ainda existe - foi o Cutty Sark - que foi recentemente restaurado depois de um incêndio em 2007 quando se encontrava a ser sujeito a obras de conservação e se encontra, exposto no mesmo sítio - na doca seca de Greenwich, Inglaterra.

 

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 O "Cutty Sark" quando eu o conheci e ...    na actualidade

 

Os clippers como o "Cutty Sark", são classificados como "Extreme Clippers". Eram navios muito rápidos que sacrificavam a capacidade de carga à velocidade o que lhes possibilitava viagens de longo curso em pouco tempo em relação á época, especialmente adaptados para o transporte a longas distâncias de produtos mais perecíveis.

No entanto, encontram-se clippers deste tipo no transporte de todo o tipo de mercadorias além do chá (lã, carvão, nitratos, etc) bem como de passageiros nomeadamente de imigrantes, para a Austrália por exemplo. O primeiro "Extreme Clipper" a ser construído foi desenhado por John W. Griffeths da firma Howland & Aspinwall de Nova Iorque tendo sido iniciada a sua construção em 1843 e sido lançado á água em Janeiro de 1845.

Na época dos "Extreme Clippers" foi aperfeiçoada a técnica já existente desde os anos 20 dos "composite ship", construídos com base numa estrutura de ferro forjado - principalmente as balizas - e recobertos a madeira, quilha incluída, tendo atingido a sua maturidade em 1843 com o SS Great Britain. Este tipo de construção, subsistiu até á data da abertura do Canal do Suez em 1869.

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 Construção mista (composite ship)

 

A partir de c. 1851, apareceu um outro tipo de clippers os "Medium Clipper", que mantiveram as mesmas qualidades de navegação mas aumentaram a sua capacidade de carga em relação aos "Extreme Clippers". Como exemplo deste tipo de clippers temos o "Antelope of Boston" construído em 1851 e o "Golden Fleece" construído em 1852.

Infelizmente não consegui encontrar nenhuma representação gráfica deste tipo de clippers.

Posteriormente a esta data, os clippers começaram a ser substituídos por navios a vapor, construídos em ferro.

Tendo em atenção que o que caracteriza os clippers é a manutenção de uma grande velocidade sacrificando a capacidade de carga ou, por outras palavras, um casco cada vez mais hidrodinâmico e com linhas de água baixas, aumentando assim a capacidade do navio de "deslizar" na água e não "afundar na água", podemos classificar os clippers em 3 categorias tendo em atenção a relação entre a boca do navio e o comprimento entre perpendiculares:

  1. Early Clippers - Os primeiros clippers (clippers de Baltimore com melhorias)
  2. Extreme Clippers - Os clippers em que a relação comprimento boca foi levada aos limites para atingir o máximo de velocidade
  3. Medium Clippers - Com boas capacidades de navegação mas maior capacidade de carga.

 

 Continua

 

Bons ventos

Até á próxima

 

 

 

 

 

 

 

14.05.15

16 - Modelismo Naval 4 - Os Fabulosos Clippers da China - Parte 1


marearte

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Caros amigos

No post nº 14 - "Barcos Engarrafados 1 - Mini Caravela: Capítulo I - Um Projecto falhado e...", falo num modelo de "clipper" que inicialmente era destinado a ser engarrafado mas que passou a modelo estático montado em diorama que foi oferecido aos meus cunhados.

Hoje quero recuperar a história dessa construção. Para isso, vou contar coisas da nossa história, coisas da história dos outros e coisas da minha história, memórias e recordações ligadas às coisas do chá e do seu transporte.

 

História do Chá

Nos finais do séc. XIX a "moda" do "five o'clock tea" estava no auge na sociedade Inglesa (a que "contava"e as outras), que se deliciavam com vários tipos de chá, provenientes da China e da Índia.

De realçar que a "típica" moda do chá foi introduzida na corte da Inglaterra pela infanta portuguesa D. Catarina de Bragança que casou com o rei da Inglaterra e da Escócia - Carlos II - em 21 ou 22 de Maio de 1662 (os arquivos não são elucidativos quanto á data precisa).

Segundo parece, já se bebia chá na Inglaterra - como mezinha para as mais variadas coisas - pois há notícia de que já era vendido chá na loja de café de Thomas Garraway na Exchange Alley em Londres, no ano de 1657. O que é um facto é que foi levada para a Inglaterra por D. Catarina de Bragança uma arca de chá e foi introduzido na corte o hábito de beber chá socialmente.

Históricamente sabe-se também que a geleia de laranja (um doce conventual), o uso dos talheres e o uso do tabaco - este último também como mezinha que estava especialmente indicada para doenças pulmonares (boa!) - foram introduzidos na corte de Londres por D. Catarina de Bragança.

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Livro "Catarina de Bragança" de Isabel Stilwell - 2008

 

Básicamente existem três variedades de chá todas "primas" das cameleiras que temos nos nossos jardins. As mais conhecidas são: a "Camélia Sinensis" um arbusto que cresce na China, no Tibete e no Japão, a "Camélia Assamica" proveniente da Índia e a variedade do Camboja "Camélia Assamica subspecies lasiocalyx".

Hoje em dia existem imensas variedades adaptadas a climas e altitudes diversificadas. Por exemplo, na ilha de S.Miguel, nos Açores, existem duas plantações e fábricas de chá de qualidade (estão localizadas na costa Norte a mais ou menos 100 metros de altitude)  - a Gorreana com 32 Ha e Porto Formoso com 5 Ha situadas no concelho da Ribeira Grande e que, no seu conjunto, produzem por ano por volta de 50T de chá preto e verde - e fazem visitas guiadas para os turistas. O chá produzido e manipulado nos Açores é o único de origem europeia e tem a garantia de isenção de químicos. É da variedade "Camélia Sinensis" e foi introduzido na ilha vindo do Brasil no século XVIII.

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 Fábrica e plantação da "Gorreana"

 

Passando a publicidade, o "Orange Pekoe" da Gorreana é dos melhores que bebi entre os mais diversos "Orange Pekoe" que se produzem no mundo.

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 Dois chás da "Gorreana": O "Orange Pekoe" preto e o "Hysson" verde

 

Durante dois anos vivi em Moçambique entre plantações de chá na Alta Zambézia, uma zona montanhosa, de frequentes nevoeiros e com temperaturas elevadas, sendo a maioria dessas plantaçoes com base na variedade "Camélia Sinensis", e recordo com uma certa nostalgia, as manhãs brumosas, a beleza e a harmonia (incluíndo as pessoas) das plantações de chá com o verde brilhante característico dos novos rebentos que começavam a crescer (flush) e que indicavam o início da apanha.

Foi daqui e do contacto com um casal inglês, o Emmett e a Cynthia, que me veio o interesse pelo chá (ainda bem que foi "só" pelo chá). O casal era meu amigo e da minha mulher, mais velhos do que nós. Ele era "teamaker" da chá "Madal", vindo de Dargeeling na Índia, zona da "Camelia Assamica". Fiz algumas provas de chá com lotes misturados por ele. Ela, uma tipica "lady" inglesa das colónias, muito "caril" e "achar", habituada a grandes mordomias. Nítidamente o que os ligava "ainda" era amor. Ambos tinham um pormenor curioso, para mim inédito! A única bebida que tomavam era... Gin! Por copos de água! Puro! Nós também bebiamos Gin por copos de água! Mas com Água Tónica. O resultado é que lá para o fim do dia, tanto ele como ela, deliciavam-nos com interpretações de teatro de "Vaudeville" do tempo da 2ª Guerra Mundial na Inglaterra. Ele tocava piano e cantava e ela cantava e dançava! E podiam ter ganho a vida com isto!

A Cynthia faleceu devia de ter por volta dos sessenta anos com uma doença de figado o que era de esperar e o Emmett, que era um pouco mais velho, levou o corpo dela para a Rodésia do Sul (actual Zimbabwé) onde foi cremado. O Emmett nunca mais voltou e ficou pela Rodésia. Mais tarde foi-nos comunicado que se tinha suicidado logo após a cremação da mulher. Nunca houve confirmação de tal facto, que eu saiba. Os exageros românticos dos velhos expatriados europeus na Ásia e em África. Paz às suas almas!

 

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Livro o "Guia do Chá" de Jane Pettigrew - 1997

 

História das Guerras do Ópio

O chá tem uma história bastante curiosa, protagonizada pelas andanças dos ingleses entre a China e a Índia que não abona muito a favor dos "misters" e de outros, mesmo salvaguardando a distância histórica.

O primeiro produtor a quem a Inglaterra comprou o chá foi à China. Este chá (bem como a seda e as porcelanas) era pago em tecidos de algodão que era a única exportação da Inglaterra. A partir de uma dada altura a China recusou aceitar mais algodão  pois não precisava nem queria esse produto. Em 1800 os Ingleses começaram a pagar em ópio - produzido em Bengala que fazia parte do imperio britânico - apesar de estar proibida, por lei chinesa, a sua importação.

A "Companhia Inglesa das Índias" vendia ilegalmente (contrabando) ópio aos chineses a troco de prata, através de mercadores de Calcutá e pagava o chá aos chineses com essa mesma prata. E todo este tráfico era ilegal (para a China claro!). Como não podia deixar de ser, também houve portugueses a participarem activamente neste tráfico.

Tudo começou com o brutal assassinato em Cantão de um cidadão chinês por um grupo de marinheiros ingleses embriagados, tendo o comissário imperial chinês ordenado a expulsão de todos os ingleses da cidade.

Após a destruição de 20.000 arcas de ópio apreendidas pela China em 1833 por Lin Zexu um comissário chinês,(1) o apresamento de alguns navios ingleses e a expulsão dos subditos ingleses responáveis pelo contrabando, a Inglaterra acabou por declarar guerra à China - Primeira Guerra do Ópio 1839-1842 -  (para ensinar aos chineses os principios do comércio livre - dito pelos ingleses / Globalização?? - pergunto eu). A China, por seu lado, também acabou por embargar a exportação do chá para a Inglaterra (um crime de lesa majestade, na óptica dos Ingleses).

A inglaterra venceu o conflito que foi encerrado em Agosto de 1842 pelo Tratado de Nanquim (o primeiro dos chamados Tratados Desiguais). As consequências foram pesadissimas para a China; a abertura forçada de vários portos ao comércio do ópio, incluíndo a entrega aos ingleses, por um periodo de 155 anos, da ilha de Hong Kong.

Apesar desta vitória, os interesses imperialistas dos ingleses não estavam suficientemente contemplados segundo eles, e a situação continuou a degradar-se. Com o pretexto de uma revista de inspecçao feita pelos chineses ao navio de bandeira britânica "Arrow" em 1856 os franceses aliaram-se aos ingleses e declararam guerra à China -  Segunda Guerra do Ópio 1856-1860 - que terminou novamente com a derrota da China e com a assinatura do Tratado de Tianjin (dificilmente aceite pelo Imperador Chinês que só o ratificou após a ocupação de Pequim pelas tropas aliadas). Por este tratado foram abertos mais onze novos portos, foi permitida a instalação de legações ocidentais em Pequim e os chineses renunciaram ao termo "bárbaros" que usavam nos documentos oficiais para identificar os ocidentais. Tinham-nos em muito boa conta! Estava concluída a "Globalização". Hoje, os chineses vingam-se de uma forma, para já, mais pacífica.

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 Filme "55 dias em Pequim" - 1963

"55 Dias em Pequim é um épico de Hollywood... uma espectacular produção com um elenco de milhares que enche o ecrã de acção e romance"


"China, ano de 1900. As embaixadas estrangeiras em Pequim estão sob um sangrento cerco desencadeado pelos boxers, que assassinam cristãos numa violenta revolta nacionalista, ação promovida pela xenofobia da imperatriz (Flora Robson). Dentro do recinto assediado, o embaixador inglês (David Niven) une-se aos membros de outras delegações, numa tentativa desesperada de resistir ao cerco. A coragem e liderança de um fuzileiro naval dos EUA (Charlton Heston), são a única esperança para escapar desta armadilha, Enquanto isso, uma bela condessa russa (Ava Gardner) deverá escolher entre a liberdade e o compromisso."

 

Embora o filme "55 dias em Pequim" pretenda focar o que se passou no final da "Guerra dos Boxers" que decorreu entre os anos de 1899 e 1900, foi feita a tentativa de passar o filme como "verdade histórica" pelo ponto de vista holywoodesco. Nada de mais errado.

A "Guerra dos Boxers" aparece na sequência das guerras do ópio e é iniciada pela sociedade secreta a "Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros", que lutava contra a ocupação estrangeira. A Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos da América, a França, o Japão, a Itália e a Russia formaram um exército que tentou ocupar a cidade de Pequim, onde a conflitualidade era maior. Mas parece que os países da "coligação" (já nesta altura! em vez do petrólro o ópio) se aproveitaram bem da situação. O mercado chinês, que se encontrava fechado ao exterior abriu-se e 450 milhões de chineses (estimativa da população chinesa na época) viraram consumidores no mercado global. Principalmente, consumidores de ópio! (2) Um problema que se veio a agravar ao longo dos anos mas que foi práticamente eliminado em 1956, devido a uma continuada política de reintegração familiar dos dependentes da droga, seguida oficialmente pela República Popular da China. Nem tudo foi mau. Tiveram dias!!

Mas a história do chá, no que diz respeito aos ingleses e chineses, não se fica por aqui.

 

 

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Livro "Ópio" de Maxence Fermine - 2003

 

História do Roubo do Chá

Robert Fortune (1812-1880), botânico escocês, é referenciado como tendo "importado" plantas e sementes de chá da China. 

Sem eufemismos, Robert Fortune "roubou" na cara dos chineses não só os segredos da manufactura do chá como também cultivares do chá que foram transferidas para a Índia. Tal como nas Guerras do Ópio e na Guerra dos Boxers os ingleses fizeram da sua "estória" (story), a história dos vencedores.

Embora a Inglaterra cultivasse no Nordeste da Índia nas plantações de Assam chá "Camélia Assamica", pelos irmãos Bruce desde 1830, a qualidade do mesmo deixava bastante a desejar e não conseguia concorrer com o chá da China.

Por outro lado, a CIO, Companhia das Indias Orientais (Coroa Britânica) já não tinha o monopólio da importação do chá e passou a ter de concorrer com comerciantes independentes. Estando dependente do comércio com a China, a CIO tudo tentou fazer para se apropriar de amostras de plantas do chá chinesas e transplatá-las nas montanhas do Himalaia bem como para se apropriar do know-how dos chineses - saber com mais de cinco mil anos - sobre o cultivo e processamento dos chás, segredo ancestral ciosamente defendido pelos chineses. Por exemplo, na altura nada se sabia sobre a diferença entre o chá verde e o chá preto, julgando-se que ela resultava de variedades diferentes quando, na realidade, é uma questão de processamento pós-colheita. Esta foi uma descoberta "in loco" feita por Fortune.

E não era fácil conseguir estas coisas. Embora os portos chineses estivessem abertos ao comércio, existia uma proibição para os estrangeiros de se deslocarem para além de 45 km dos portos, o que impossibilitava aos estrangeiros sem autorização - fácilmente identificáveis pela sua aparência evidentemente muito diferente da dos chineses - o acesso às áreas do cultivo do chá, muito para o interior. E, em alguns casos - os segredos do chá era um deles - poderiam terminar com a condenaçao a morte do prevericador.

Em Setembro de 1848 Fortune já se encontrava em Xangai, portador de uma ordem de missão assinada pelo governador das Índias Orientais em 3 de Julho do mesmo ano com o seguinte texto:

"Você deve seleccionar plantas e grãos das melhores espécies de chá verde vindos das principais regiões produtoras e, depois, transportá-los, sob sua responsabilidade, da China a Calcutà e, de lá, até ao Himalaia. Você deve também voltar todos os seus esforços para contratar produtores de chá experientes e bons fabricantes, sem os quais não poderemos desenvolver nossas plantações no Himalaia" (3)

Fortune disfarçou-se o melhor que soube - era difícil para um escocês de pele rosada e com 1,80 m de altura passar por chinês - rapou o cabelo, deixou uma trança, vestiu-se "à chinesa", mudou o nome para Sing Huá e iniciou a sua aventura - que para ele não era mais do que isso - em direcção aos montes Huangshan, região reputada pelos seus chás verdes, passando por Hangzhou e o rio Verde.

 A 15 de Dezembro de 1848, escreveu ao governador das Índias:

"Tenho o prazer de informar-lhe que consegui uma grande quantidade de grãos e de mudas que, espero, chegarão intactas à Índia. Estimo que todas pertençam à espécie "Thea viridis"(4)... Mandei plantar uma boa parte dos grãos coletados durante os dois últimos meses aqui, nos jardins, com a intenção de enviá-los posteriormente para a Índia".

Os jardins a que Fortune se refere eram os dos consulados e dos comerciantes ingleses estabelecidos nas zonas dos portos que garantiam a confidencialidade da operação. Atrevo-me a dizer: também acompanhada da linguagem universal de garantia de confidencialidade - a corrupção.

Com o apoio de compradores chineses - os conselheiros chineses dos compradores ocidentais - consegui recrutar 6 produtores/fabricantes de chá e dois fabricantes de caixas para transporte de chá. 

A 15 de março de 1851, Fortune na companhia dos trabalhadores contratados (5) chegaram a Calcutá, acompanhados de mais de vinte mil pés conservados em caixas Ward. (6)

E é esta a história do roubo do chá pelos ingleses. Agora podemos perceber o desrespeito acintoso que os chineses têm por patentes e direitos de autor. Tiveram bons professores.

O resultado desta "espionagem industrial" foi de que em 1866, 4% do chá consumido pelos ingleses vinha das Índias. Em 1903 esse número passou para 59%. O chá chinês representava sómente 10% do total das importações do Ocidente. Hoje, a China é o 2º produtor mundial com 19% depois da Índia que representa 34% da produção mundial.

Fortune publicou em "A Rota do Chá e das Flores" o diário desta aventura e um outro livro "Uma Viagem para a China país do Chá" que não consegui encontrar em nenhum lado. No entanto, o livro de Maxence Fermine "Ópio" é baseado no diário de Fortune, embora romanceado o que, no meu entender, aumenta o seu interesse

 

 (1) Numa carta dirigida à Rainha Vitória de Inglaterra o Comissário Imperial Lin, dizia: 

"... embora vocês próprios não tomem ópiocontinuam a fabricá-lo e a tentar o povo da China a comprá-lo. Vocês estão mostrando o cuidado que têm com as vossas próprias vidas, mas estão a descuidar as vidas de outras pessoas , indiferentes, na vossa ganância por ganhos, aos danos que façam a outros: tal conduta é repugnante para os sentimentos humanos ..."

Esta carta, encontra-se nos arquivos oficiais chineses mas nunca chegou a ser enviada.

(2) Em 1880 a China importou mais de 6500 toneladas de ópio e já se cultivava o ópio na China. 9 em cada 10 chineses estavam "agarrados" ao ópio e à heroína.

(3) Arquivos da CIO conservados na Biblioteca Britânica. 

(4) "Camelia Sinensis"

(5) A saída destes trabalhadores da China não deve ter tido grandes complicações pois, em 1851, a saída de chineses do Império para S. Francisco e para o Eldorado Californiano, era normal.

(6) Caixas usadas para o transporte de mudas de plantas a grandes distâncias, que são isoladas e conservam a humidade durante muito tempo, através de um sistema de alvéolos cheios com argila humidificada.

 

Continua 

 

Bons ventos

Até á próxima