Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

17.09.23

83– Modelismo Naval 7.3.15 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”  


marearte

ib-04.1.jpg

  

(continuação)  

 

Caros amigos

 

9 - Conclusões, (inconclusiva) segundo a minha perspectiva, sobre a “Barca de Gil Vicente”

Se bem se lembram, esta série de posts foi iniciada com o sentido de procurar provas sobre o tipo de barca usada por Gil Vicente já que, apesar de a maioria apontar como sendo uma barca tipo nórdica com vela redonda, haver quem, mais logicamente, defenda de que foi uma barca tipo mediterrânica, com vela latina.

Vou aqui alinhar algumas convicções (conclusões inconclusivas) que me levam a acreditar que esta barca envergava pano latino e já era um protótipo da caravela, se não mesmo uma caravela inicial.

A história tem várias verdades (todas elas fundamentadas) e quanto mais antiga é, mais se arrisca a ser posta em causa por novos factos, novas provas ou novas interpretações.

Ao longo desta série de posts dedicados à “Barca de Gil Eanes”, afirmei repetidamente que não sou um historiador nem tenho pretensão a tal. A minha “demanda” tem um fim mais prosaico: tentar construir um modelo desta barca que seja o mais próximo possível do real. E penso ter conseguido. Esta é a “minha verdade” que considero ser mais lógica do que a que nos foi apresentada desde os tempos da Escola. E não vai contra nenhuma outra. É a minha.

 

A – Insofismavelmente tratava-se de uma “Barca” que é assim que Azurara designa a embarcação, mas essa barca não é caracterizada quanto ao aparelho em toda a “Crónica da Guiné”. Mesmo procurando em textos de outros cronistas da época, tal caracterização não se encontra.

A ligação entre barca e aparelho redondo (1) aparece muito mais tarde pela pena de historiadores mais modernos que abordaram a viagem de Gil Eanes baseados nos cronistas coevos. Partiram do princípio que o termo “barca” só podia significar” tipo nórdico” com alguns acrescentos, até à data não comprovados, a não ser que todos os historiadores dizem o mesmo, citando-se mutuamente. Assim, o pano redondo da barca, não sendo baseado em factos, é uma suposição com uma probabilidade de ter alguma certeza.

 (1) Vela redonda – Vela latinaA Vela quadrada ou Vela redonda  é o tipo de vela mais antigo da Europa pois foi utilizada do Báltico ao Mediterrâneo nos navios mercantes e militares, que não podiam navegar aproados a menos de 600 em relação à direcção do vento. Rapidamente substituída a partir do século IX no Mediterrâneo pela Vela latina por permitir navegar próximo da linha do vento, a vela quadrada perdurou no Atlântico para lá do Idade Média nos dracares dos viquingues e nas cocas da Liga Hanseática. A Vela Redonda desaparece durante a primeira metade do século XX com o fim da construção dos veleiros, mantendo-se no entanto nos Grandes Veleiros históricos ainda existentes, como a Sagres.

 

Por outro lado existem “historiadores” não tão ”qualificados” que teimam em ligar a “barca de Gil Eanes” a um outro tipo de “barca”, originária do Mediterrâneo, com “vela latina”. (1)

É uma hipótese que tem muito mais lógica (embora também seja uma suposição) pois o porto de partida desta “barca” foi Lagos, no Algarve, que fica ali mesmo ao lado do Mediterrâneo – onde existiam barcas de pano latino (“Barca do Levante”, “Barca Valenciana”), incluindo em Lagos donde há notícia da “Barca típica de Lagos” (2) – que sofreu, tal como o resto do Algarve e a Costa Ocidental de Portugal, influências de todo o tipo na construção naval (casco liso), navegação (portulanos) e aparelho (velas latinas).

(2) – Esta informação, embora importante não está confirmada embora apareça em muitos textos. Encontrei-a num documento avulso, sobre os Descobrimentos Portuguesas, que já não consigo localizar, em que é citada a obra de Alberto Iria “O Algarve e os Descobrimentos” edição de 1956. Passei algum tempo a pesquisar a referida obra (2 volumes) mas não consegui encontrar esta referência. O que mais perto encontrei foram referências a barcas “ de pesca, do Algarve romano (p.201) ” e “pesqueiras e mercantes, construídas no Algarve, pré-romano e romano (p. 203). Uma nota curiosa que eu desconhecia é que os pescadores do antigo porto da Pederneira (Nazaré) também iam pescar para o Algarve em barcas.

 

B – Foi Lagos a localidade escolhida pelo Infante D. Henrique a partir de 1418, para estabelecer a base para as viagens de descoberta rumo ao Sul.

Lagos era na altura um porto comercial com uma forte componente de pesca quer de costa, quer do alto. Embora se vissem velas redondas a navegar – de eventuais embarcações dedicadas ao tráfego comercial, podendo ser algumas da propriedade de comerciantes ou armadores portugueses – a maioria eram embarcações de pesca, de vela latina que se chamavam “Barcas Pescarezas” ou “Caravelas Pescarezas” e outras, que vogavam percorrendo a costa algarvia indo, algumas delas, de maior dimensão, que se dedicavam à pesca da “pescada”, pescar até â costa de Marrocos.

1-Barca da Armação.jpg

Barca da Armação

Existiam também, nas armações do atum as chamadas “Barcas da Armação” que tinham como funções, o cerco do atum na última porta da armação, base para o copejo do mesmo e transporte para terra do atum pescado bem como dos pescadores. Todas estas barcas tinham um casco liso embora também possuíssem proa e popa redondas e eram movidas por velas latinas e remos. É de notar que o Infante D. Henrique tinha o monopólio destas armações, concedido pelo rei.

 

C – Duas citações lógicas que sustentam esta hipótese:

  • “Estudos de Arqueologia Naval” Volume I – João da Gama Pimentel Barata, p.p.220-221, INCM, 1989

 

“Não dispomos de elementos sobre a arquitectura e aparelho dos diversos tipos de barca, mas parece inferir-se, por contraposição da descrição de Valentim Fernandes (3) da “bartscha”, (outra grafia para barca) que a barca portuguesa teria aparelho latino. Além disso, era a traça mediterrânica que dominava há séculos em Portugal e todas as probabilidades são a favor do aparelho latino. Acresce que a barca foi um dos navios usados nas primeiras viagens de descobrimento da costa de África e, como se sabe, aquelas navegações eram muito mais fáceis com navios de aparelho latino”.

 

(3) O Manuscrito Valentim Fernandes, também denominado como Relação de Diogo Gomes (Morávia, c. 1450 —  Lisboa, 1518 /19), também conhecido por Valentim Fernandes Alemão ou Valentim Fernandes da Morávia, foi um impressor e tradutor germânico), é um manuscrito que se constitui num relato essencial para o estudo do início da navegação marítima portuguesa. Redigido em Latim, compreende três partes:

  • "De prima invencione Guinee"
  • "De insulis primo inventis in mare Occidentis"
  • "De inventione insularum de Açores"

Banha de Andrade divide os textos em duas séries, a africana — [descrição da costa africana (Ceuta à Serra Leoa), com base nos testemunhos portugueses (“Ceuta, cidade num estreito hercúleo em frente a Gibraltar”); descrição  de diversas ilhas atlânticas (Canárias, Madeira e Porto Santo, Açores, Cabo Verde, São Tomé, Ano Bom) e mapas também da autoria de V. Fernandes (“Das Ilhas do Mar Oceano”); sumário da Crónica de Gomes Eanes de Zurara (“Crónica da Guiné”); relato de Diogo Gomes de Sintra sobre o descobrimento da Guiné (“Relato Behaim-Gomes”/“De Prima Inventione Guinee”); roteiro para a navegação da Galiza a São Jorge da Mina] —, e a oriental [relato de Hans Mayr sobre a expedição à Índia (1505-1506), talvez ditado por Fernão Soares, capitão da nau em que a viagem foi feita (“Da Viagem de D. Francisco de Almeida, Primeiro Vice-rei da Índia”); descrição anónima sobre a “India” e as Maldivas].

 

  • “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139 – 1499” – Com.te Fernando Gomes Pedrosa, p. 119, Academia de Marinha, 1997

“… Assim, não será arriscado presumir que algumas barcas portuguesas seriam iguais às inglesas (Europa do Norte), como supõem Lopes de Mendonça e Quirino da Fonseca: até ao início do séc. XV, com remos e um mastro de vela redonda; durante o séc. XV, com menos remos ou mesmo sem eles, e um, dois ou três mastros. … Eventualmente terá existido outro modelo de influência mediterrânica, com velas latinas…”

 

D – Há notícia de que as primeiras embarcações usadas nos descobrimentos foram barcas de pesca, o que tem lógica atendendo a que já existiam localmente, possivelmente algumas com dimensões razoáveis, pois iam pescar para a costa de África.

As dimensões reais da barca que está representada nos planos do Museu de Marinha são: Comprimento de Fora a Fora (inclui o gurupés amovível) – 15,45 m (4); Comprimento de Roda a Roda – 14 m; Boca – 3,9 m).

(4) – Segundo Quirino da Fonseca, apoiado numa citação de Azurara, as barcas raramente excediam os 30 tonéis de arqueação, o que é compatível com as viagens de descobrimento, pois nestas participaram caravelas de 40 e 50 tonéis.

 

E – No Museu da Santa Casa da Misericórdia na Lourinhã encontra-se (ou encontrava-se pois atualmente não sei se ainda lá está) uma pintura da autoria do “Mestre da Lourinhã” (possivelmente trata-se do iluminador régio Álvaro Pires) datada de c.1510 intitulada “S. João de Patmos”.

Esta obra foi encomendada ao pintor por D. Maria, esposa de D. Manuel I destinando-se ao Mosteiro da Ordem dos Jerónimos na Berlenga (ilha). Devido aos ataques de piratas à ilha bem como à insalubridade da mesma, os monges mudaram-se para o continente para o Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale Benfeito, perto de Óbidos.

 

Em 1834, no âmbito da reforma eclesiástica, a Ordem foi extinta e o seu património foi incorporado na Fazenda Nacional. Não sei como foi parar ao Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã.

Embora seja uma obra de arte provavelmente de 1510, representativa da época do Renascimento, não é o interesse pictórico que me levou a colocá-la neste post mas sim a figuração em fundo de embarcações do princípio do séc. XVI que se encontram à esquerda da pintura.

A ilha de Patmos fica no mar Egeu (Grécia) e a paisagem que se encontra a rodear S. João deve ter sido imaginada pelo pintor que vivia em Portugal. As embarcações que ele acrescentou ao fundo eram provavelmente, as que ele conhecia e na altura mais existiam em Portugal e não na Grécia.

2-S, João de Patmos-Grande.jpg

S. João de Patmos”

3-S, João de Patmos-Barcas.jpg

Uma nau e duas barcas latinas

Estão representadas em primeiro plano uma “Nau” e à esquerda uma “Barca” com pano latino envergado e, curiosamente, com leme de espadela a estibordo, numa altura (1510) em que já não se usava, tendo sido substituído pelo leme axial, que nitidamente não tem.

Ao fundo aparece outra “Barca Latina” possivelmente com o pano ferrado tendo ao lado um “Batel?”.

Isto vem em abono da existência da “Barca Latina” já há algum tempo, levando em linha de conta a “antiguidade” do leme de espadela em relação à data do quadro.

 

F – “Em 1434, Gil Eanes dobra o Cabo Bojador numa embarcação ainda tradicional, a barca – um pequeno navio de cerca de 30 toneladas, com um aparelho latino, isto é, com uma só vela triangular, sem qualquer coberta e utilizando também remos; … “

In: “Navios dos Descobrimentos”, Luís Filipe Barreto, Ph.D. em Cultura Portuguesa, 1991, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

 

Bibliografia aqui

https://www.goodreads.com/search?q=Lu%C3%ADs+Filipe+Barreto&qid=hFfhridcGv

 

G – Pelo exposto aqui e pela totalidade dos posts desta série podemos deduzir que, muito possivelmente (pessoalmente estou convencido), existiram simultaneamente nas costas portuguesas dois tipos de barcas, com as seguintes características, a saber:

 

Tipo Nórdico

  • Vela quadrada (rectangular) ou também chamada “redonda”;
  • Possuíam um só mastro (eventualmente, outro mais pequeno, á proa também de vela redonda). O mastro grande encontrava-se implantado a meio da quilha;
  • Uma tonelagem de 100 a 150 tonéis;
  • O comprimento da quilha seria até 15m;
  • Casco bojudo, com popa e proa redondas e quase simétricas, montado com a técnica Klinker Built (casco primeiro com tábuas sobrepostas);
  • Melhor adaptadas às águas agitadas do Norte da Europa;
  • A resistência era inversa ao tamanho;
  • Muito manobráveis devido à vela redonda que facilitava a manobra;
  • Morfologia de navios de alto bordo;
  • Nos séculos XII e XIII, os Cruzados viajaram para Sul e Oriente em “cogs”, que não eram senão “barcas”.

 

Tipo Mediterrânico

  • Vela triangular, latina (a la trina) ou bastarda; (5);
  • Podiam arvorar um, dois ou três mastros conforme o tamanho;
  • A tonelagem podia ser superior a 250 tonéis, como por exemplo as embarcações que transportavam os peregrinos á Terra Santa;
  • A quilha podia ter um comprimento até 26m;
  • O casco era liso em que as tábuas do mesmo eram encostadas e calafetadas a topo e não sobrepostas;
  • Tornavam-se mais económicas que as nórdicas já que não havia o desperdício da sobreposição das tábuas;
  • Sendo construídas com o método Carvel  built eram estruturalmente mais fortes do que as nórdicas e poderiam ser muito maiores;
  • Com a vantagem de poderem navegar mais chegadas ao vento (4 quartas contra as 6 quartas da vela redonda) tinham a desvantagem de que a manobra das velas era mais complicada do que a do pano redondo;
  • O pano latino estava espalhado por todo o Mediterrâneo, pela costa Ocidental da Europa e, no princípio dos descobrimentos pela costa Ocidental de África.

(5) – Vela bastarda é uma vela quadrangular, mas em que um dos lados – o da amura – é tão pequeno que a vela é aparentemente triangular. Enverga de proa à popa numa verga bastante comprida içada num mastro curto e em geral inclinado para a ré. É a vela característica dos “Caiaques” do Algarve (que uns defendem que o seu aparecimento foi posterior à caravela ser usada nos descobrimentos e outros, que é um ancestral da caravela. Sabe-se lá!).

 

4-Caiaque do Algarve.png

Primeiro correio marítimo de Portugal

Réplica do Caíque “Bom Sucesso” (cerca de 18 m de comprimento fora a fora e 5,5 m de boca) que, em 1808 navegou de Olhão ao Brasil com uma tripulação de 18 marítimos em condições deploráveis para levar a D. João VI a boa nova da expulsão dos Franceses do Algarve, constituindo-se assim o primeiro correio marítimo de Portugal.

As embarcações usadas no início dos Descobrimentos estariam com certeza relacionadas com as usadas na costa sul de Portugal e com o Mediterrâneo pela situação geográfica do início dos Descobrimentos, no Algarve, onde se usava o pano latino, passando-se o mesmo na restante costa ocidental do país. Devido às características de navegação junto à costa que as embarcações das Descobertas tiveram de fazer, deviam de estar adaptadas para navegar em fundos pouco profundos, costas recortadas, estuários de rios, etc.

Por outro lado o pano latino facilitava a navegação fosse qual fosse o sentido do vento pois podia-se bolinar mudando de bordo por singraduras, mesmo não tendo o vento a favor (6).

O método de construção de casco liso, que passava de geração em geração, há milhares de anos que era praticado. Os mestres carpinteiros passavam-no para os seus aprendizes e estes, por sua vez, quando chegasse a altura de serem mestres, passavam-no para a geração seguinte.

(6) – As embarcações de que aqui se trata, tinham uma única vela e as dimensões não seriam muito grandes no início. Nessa altura, o mudar de bordo, para estas embarcações, não exigia mudança de bordo da verga da vela. Limitavam-se a aproar num rumo no outro bordo, de mais ou menos 8 quartas, deixando a linha do vento para bombordo ou para estibordo conforme os casos. No Algarve, esse tipo de navegação foi seguido nas Barcas das Armações e noutras embarcações à vela que navegavam na costa algarvia e tinham “as velas à boa volta, (velas soltas em balão) quando navegavam de Sotavento para Barlavento bem como as velas sobre o pau (velas em balão encostadas ao mastro, o que necessariamente retirava rendimento ao andamento) quando ao contrário. Eu próprio naveguei nas Quirimbas, Índico, no norte de Moçambique, entre Pemba/Ibo/Pemba, durante dez dias, num barco de pesca local tipo “Dhow” que adotava esta “técnica”. Depois, com as caravelas, as coisas mudaram para muito maior dificuldade pois, para mudar de bordo, havia de deslocar a vela em conjunto com a verga passando-as pela frente ou por detrás do mastro para o outro bordo, o que exigia força e boa coordenação.

 

H – Nesta situação há que reter as datas das referências existentes no que diz respeito á construção e uso das “Caravelas de Descobrir” que nos são dadas pelos cronistas e por outras fontes e daí tirar alguma ilação para o feito de Gil Eanes ter passado o Bojador em 1434.

As tentativas feitas anteriormente (14 ou 15) durante 12 anos segundo as fontes devem ter-se iniciado aproximadamente em 1422 levando em linha de conta que a ida do Infante D. Henrique para Lagos se deu em 1418.

 

A “Crónica da Guiné” de Azurara já referida (página 69) dá-nos uma informação que é a seguinte: … “ Bem he que no anno de quarenta (1440) se armarom duas caravelas afim de irem a aquella terra, (além do Cabo Bojador) mas porque ouverom aqueecimentos (acontecimentos) contrairos (7), nom contamos mais de sua vyagem. …”

Esta é a primeira referência de Azurara a “Caravelas” que, supõe-se, seriam de “Descobrir”. Partindo do princípio que se pode considerar o ano de 1440 como o primeiro ano em que as Caravelas de descobrir navegaram (talvez antes) mediaram entre 6 e 5 anos o tempo decorrido depois da passagem do Bojador com uma Barca;

(7) -“ aqueecimentos contrairos” – Não sei a que é que Azurara se refere com esta frase, se a algum acontecimento com as Caravelas que em vez de navegarem se afundaram ou se aos acontecimentos no Reino, que tiveram a ver com a disputa da Regência após a Morte de D. Duarte. Para este caso tem pouca importância. É só curiosidade!

A segunda referência data de 1444 e diz; “Porem ajuntou Lançarote seis caravelas bem armadas pera seguir sua tençom, … O principal e primeiro capitam, como já dissemos, era Lançarote, e o seguinte Gil Eanes, aquelle que screvemos que primeiramente passara o cabo Bojador”.

Foi este o primeiro caso em que se raptaram pessoas (mouros) em grande quantidade, que foram trazidos para Portugal, para Lagos, onde foram distribuídos, conforme a tradição de partilha de despojos entre os vencedores. Ao Infante D. Henrique calhou-lhe um quinto.

 

Para este caso e referente a outras datas, juntamos o que Francisco Contente Domingues no seu livro “Os Navios do Mar Oceano – Teoria e Empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII” (página 233), nos diz é…

  • O Duque de Borgonha, Filipe o Bom tinha casado com D. Isabel de Portugal em 1436. Esta D Isabel era irmã de D. Henrique e do Rei de Portugal, D. Duarte que reinou entre 1433 e 1438, bem como dos restantes Infantes da “Ínclita Geração”.
  • Entre 1438 e 1439, nos estaleiros de Borgonha, foram construídas uma galé e uma pequena caravela e depois, mais duas caravelas. Os trabalhos destas construções foram dirigidos pelos mestres portugueses João Afonso e outros, que introduziram na construção naval nórdica a técnica de construção de “Forro Liso” (Carvel), onde se usava exclusivamente o “Forro Trincado” e aprenderam com os Borgonheses a construir “navios de alto bordo” com técnicas que os portugueses ainda não conheciam que possibilitavam a integração dos castelos de Popa e de Proa directamente durante a construção do casco. Este “intercâmbio” deve-se à iniciativa do Infante e do Rei D. Duarte e foi de mútuo aproveitamento. Se havia “política de segredo” nesta fase dos Descobrimentos, não parece! (1438/1439).

 

 

Para reforço desta opinião de Francisco Contente Domingues consultei a fonte original publicada na revista “Oceanos” nº 16 de 1993 que nas páginas 86 a 92 tem um artigo com o título ”Um Relatório sobre a Construção de Caravelas Portuguesas em Bruxelas (1438 – 1439) ” da autoria de Jacques Paviot e Éric Rieth ambos investigadores no “Laboratoire d’Historie Maritime, C.N.R.S” em Paris que encontraram, entre os registos da Câmara de Contas dos Duques de Borgonha, um relatório e contas sobre a construção de duas caravelas, por mestres carpinteiros portugueses, em Bruxelas, em 1438 e 1439, por encomenda do Duque de Borgonha.

O Duque de Borgonha, Philippe le Bon era casado, em terceiras núpcias, com a Infanta de Portugal Dona Isabel, irmã do Infante de D. Henrique.

5-Duque de Borgonha.jpg

Duque de Borgonha, Filipe o Bom, que aparentemente, em termos de chapéus, partilhava os mesmos gostos do cunhado Infante D. Henrique

 

Estes mestres carpinteiros (conhece-se somente o nome de um – João Afonso) são reconhecidos como “mestres em construir navios de mar no país de Portugal”.

Os carpinteiros portugueses construíram, em 1436, uma galé no porto de Écluse; em 1438, uma caravela pequena também em Écluse; em 1438 e 1439 as duas caravelas já mencionadas, em Bruxelas e, entre 1439 e 1441 uma grande nau em Anvers. Portanto, permaneceram 5/6 anos no Ducado de Borgonha.

O relatório, além de outras coisas, dá pistas sobre o modo de construção das embarcações no Ducado e portanto, indirectamente, sobre o método de construção em Portugal, mas não é este o lugar para aprofundar essa informação.

Existem neste relatório 3 pontos interessantes:

1 - Diz-se que as duas caravelas foram construídas em Bruxelas, o que é no mínimo surpreendente já que fica mais ou menos a 150km de distância do Mar do Norte. Uma hipótese que é de considerar é que na altura poderia coincidir com a residência do Duque. Bruxelas era atravessada pela Ribeira de Senne (sendo dito que o estaleiro era nas suas margens), que é uma tributária do Sholt que por sua vez desagua no Dyle, tributário do Rugel e por fim do Escalda e toda esta água vai ter ao Mar do Norte, por alturas de Breskens (hoje em dia na Holanda).

Não sei se na altura já havia os canais que hoje existem nesta zona. Penso que não. Deve ter sido uma “trabalheira” levar as caravelas até ao mar, à “sirga”;

 

2 – Pode parecer estranho que tenha sido o próprio Infante D. Henrique a divulgar junto do Ducado o modo de construção das caravelas. Na altura, para quem acredita nisso, não havia ainda uma “política de sigilo” pois ela, segundo dizem, só foi adoptada nos reinados de D. João II e D. Manuel I, portanto a partir de 1477, muito depois destes acontecimentos;

 

3 – Por último a questão das datas:

           

            1418 – Ida do Infante D. Henrique para Lagos;

            1419 – Descobrimento da ilha da Madeira;

            1422 – Passagem do Cabo Não;

            1434 – Passagem do Bojador;

     1436 – Ida para o ducado de Borgonha de mestres carpinteiros portugueses peritos na construção de caravelas;

           1440 – Primeira menção das caravelas por Azurara.

Entre a passagem do Cabo Não e a passagem do Cabo Bojador medeiam precisamente 12 anos com 14/15 tentativas para passar o Bojador. Tudo isto feito em “Barcas” de pano redondo.

No entanto, em 1436 o Infante envia ao seu cunhado um grupo de mestres carpinteiros peritos na construção de caravelas.

Dois anos depois da passagem do Bojador com uma barca, já havia peritos na construção de caravelas? Onde é que ganharam essa perícia? Em dois anos foi possível “inventar” a caravela e construí-la em número suficiente para alguém ser perito?

Qualquer coisa aqui não bate certo!

Não pondo em causa as conclusões que os historiadores portugueses “tiraram” sobre esta parte da nossa história e procurando uma saída lógica parece-me:

1 – A caravela não foi pensada de raiz mas sim deriva do aperfeiçoamento da “Barca de origem Mediterrânica” através da “Barca Pescareza” ou “Caravela Pescareza” usada na pesca. De notar que é referido que as primeiras embarcações usadas nos descobrimento eram de pesca;

2 – Poderia ter havido, durante um curto período inicial dos Descobrimentos, o uso de uma ou outra “Barca Nórdica” (possivelmente até à passagem do Cabo Não – 1422) que foi substituída pela “Barca Pescareza” pela razão que esta última, por ser de pano latino, tinha mais facilidade de navegar com vento a soprar da banda da proa;

3 – Não era possível para os navegantes portugueses, conhecerem o regime de ventos a sul do cabo Bojador, pela simples razão de que ainda não tinham passado para o outro lado. Mas, depois de passado o Cabo Não (1422), o regime de ventos até ao Cabo Bojador era (segundo o “Atlas of Pilot Chart North Atlantic” predominantemente N/S junto à costa, (havendo por vezes ventos que sopravam do Sahara para o mar – E/W e formação de nevoeiros). Os ventos N/S  teriam uma intensidade média de 5/6 (muito fresco) ou meio forte (Escala de Beaufort modificada) ao longo do ano. Isto é bom para descer a costa com pano redondo, mas difícil para voltar em rumo contrário. Diz a tradição que os portugueses chegaram à Ilha da Madeira a 1 de julho de 1419. Porém, 1418, é o ano apontado como o do descobrimento da Ilha do Porto Santo, circunstância ocorrida após uma tempestade que desviou da rota uma embarcação que seguia pela costa africana, muito provavelmente para passar o Cabo Não, possivelmente numa barca tipo nórdico;

4 – A data da ida dos “mestres carpinteiros” para o Ducado de Borgonha – 1436 – como peritos construtores de caravelas, indicia que já há algum tempo se construíam caravelas em Portugal atirando a data do início da construção de caravelas para uma data antes de 1434;

5 – Ao falar em “construção de caravelas” teremos que ter em atenção que, embora baseadas numa embarcação já existente, elas não aparecem por geração espontânea. Na minha opinião demoraram algum tempo para a adoção de um “desenho”, mais consentâneo com a sua futura função, que era percorrer a Costa de África no sentido de fazer o seu reconhecimento geográfico e a sua cartografia, com pontos reconhecidos e nomeados, bem como as condições dos regimes de vento, das condições do mar e dos rumos mais fáceis. No fundo, criar um novo modelo de embarcação que se adaptasse à função de exploração, no sentido de abrir caminho para o Oriente;

6 – Existe um período de tempo de 12 anos – 1422 a 1433/1434 em que a actividade dos descobrimentos não está bem definida. Sabe-se que foram feitas 14/15 tentativas todas infrutíferas segundo Azurara, que diz que os navegantes não passavam o Bojador:

“ … ca doze annos continuados durou o Iffante em aqueste trabalho, mandando em cada huu anno a aquella parte seus navyos, com grande gasto das suas rendas, nos quaes nunca foi alguu que se atrevesse de fazer aquella passagem.”

7 – Continuando a ler Azurara, os navegantes não voltavam de mãos a abanar depois de não conseguirem passar o Bojador (se é que o tentavam) pois dedicavam o resto do tempo indo para a costa de Granada e para a costa do Levante (Mediterrâneo), onde “filhavam grossas presas dos infiéis” com os quais voltavam para o reino.

8 – Os navegadores (capitães) do início das Descobertas, pertenciam maioritariamente à Casa do Infante D. Henrique e como tal deviam-lhe obediência e não teriam o arrojo de, propositadamente, não cumprirem a sua missão. Não desmentindo Azurara (apesar de Azurara ter feito menção de se ter baseado nos relatos das expedições, constantes de um manuscrito compilado por um suposto «António Cerveira», que no entanto, nunca foi encontrado nenhum exemplar desse relato original, ou seja numa fonte não comprovada), penso que, atendendo às datas de início da construção das caravelas, as viagens de exploração ao Bojador, apesar de não resultarem na sua finalidade, estas viagens (quantas não sei mas não deviam ter sido a totalidade das 14/15 já indicadas) tiveram como objectivo testar um modelo de embarcação, com base nas barcas pescarezas modificando-as a cada viagem quando necessário a fim de poderem cumprir o papel a que se destinavam que era correr o mar junto à costa. Baixo calado, carcomais estreito e afilado, amuradas altas, solidez de construção, zonas de armazenamento protegidas, convés para facilitar as manobras, melhoria do aparelho latino, velocidade, agilidade, etc.. Estas características, na altura, só podiam ser atingidas se houvesse tempo para imaginar, criar, experimentar e adaptar, ou seja, adquirir, o que Camões escreveu noutro contexto, “um saber de experiência feito”;

9 – A passagem do Bojador foi feita por Gil Eanes em 1434. Gil Eanes também era um homem da Casa do Infante (escudeiro) e, pela narrativa de Azurara, um homem em quem o Infante confiava. Uns dizem que era um jovem outros que era um homem de meia-idade. Eu penso que era um homem de meia-idade com provas dadas no mar – embora nada se saiba nesse sentido, anterior a 1433.

Em 1433 Gil Eanes faz uma primeira tentativa que falhou. Azurara diz que não passou das Canárias. Porque é que não passou? Segundo Azurara porque, como os anteriores navegadores, teve receio. Eu tenho uma explicação mais prosaica, talvez mais real. Ou apanhou uma tempestade que o obrigou a arribar às Canárias ou teve uma avaria qualquer que o obrigou a fazer o mesmo e a regressar a Lagos.

Neste momento Gil Eanes comandava uma barca pescareza mas muito possivelmente, uma barca pescareza já bastante alterada pelos ensinamentos que os navegadores anteriores tinham aprendido nas 14/15 viagens que fizeram, viagens essas que, para mim, foram essencialmente de teste de novas ideias e alterações- Honestamente, apesar do que diz Azurrara, não acredito que o Infante D. Henrique teimasse 14/15 vezes em ”esbarrar-se” contra o Bojador sem, expedição a expedição, ir tentando introduzir as melhorias necessárias.

Em 1436 carpinteiros portugueses especializados foram para o Ducado de Borgonha construir, entre outras embarcações, 3 caravelas (uma pequena e duas médias sendo uma das “médias” com 3 mastros). Antes da ida com certeza adquiriram a “expertise” necessária para isso, construindo caravelas em Portugal. Quando? Atrevo-me a dizer que alguns anos antes de 1434.

10 – Tudo o que para trás ficou dito leva-me a deduzir que, na altura de Gil Eanes passar o Bojador o fez, não numa caravela de um mastro (para não contrariar a barca que Azurara refere) mas sim numa “Barca Pescareza” já transformada e melhorada de tal modo que estava perto de uma caravela (um protótipo avançado). Penso ter sido esta a vantagem de Gil Eanes, para passar o Bojador à primeira. Como o passou, não o sei! Deverá ter ir tentando arranjar uma passagem na restinga de pedra que se projecta para o mar entre 4 a 5 léguas (usando a medida oficial da légua marítima mais ou menos 28 Km. (8) até chegar ao fim ou descobrindo uma passagem em qualquer sítio.

(8)

  • Légua de 18 ao grau, equivalente a 6 172,84 metros.
  • Légua de 20 ao grau, equivalente a 5 555,56 metros (medida oficial da légua marítima).
  • Légua de 25 ao grau, equivalente a 4 444,44 metros.

 

Para passar o Cabo Bojador em segurança é aconselhado aos navegadores por Duarte Pacheco Pereira, no livro escrito em 1506 “Esmeraldo de Situ Orbis”, na página 81 (Edição da Academia Portuguesa de História de 1988) o seguinte:

“Item. Jaz o Cabo Não com o Cabo Bojador, nordeste e sudoeste, e toma a quarta de leste e de aloeste (ao Oeste) e tem na rota sessenta léguas; mas o piloto que for avisado deve fazer o caminho de aloeste-sudoeste trinta léguas, e as outras trinta do sudoeste e da quarta de aloeste, e fazendo isto irá fora do Bojador, em mar, dele oito léguas E não deve fazer outro caminho, porquanto este cabo é muito perigoso por causa de uma muito grande restinga de pedra que dele sai ao mar mais de quatro ou cinco léguas, na qual já se perderam alguns navios por mau aviso E este cabo é muito baixo e todo coberto de areia, e tem o fundo tão aparcelado está homem a dez braças e nã vê a terra pela sua baixeza. E a costa que vem do Cabo Não pera o Bojador toda é muito baixa e areia, ao longo do mar e quási deserta.”

No entanto isto foi escrito 72 anos depois de Gil Eanes ter passado o Bojador, já com conhecimento de causa.

Como voltou, não sei mas poderia ter feito a mesma rota pois tinha barca para isso, ou então ter tomado o caminho do Oeste e ter apanhado ventos de feição que o levaram até Lagos.

Convictamente, vou adoptar esta versão desta história pois parece-me mais lógica do que a outra.

Barca Pescareza (2).jpg

Barca Pescareza”, tipo (talvez) usada por Gil Eanes, tendo esta um tamanho ligeiramente menor

Este modelo está em Exposição no Museu de Marinha

No entanto, embora não esteja de acordo em que a "Barca de Gil Eanes" era de pano redondo, não resisti à tentação de construír a barca dos planos do "Museu de Marinha".

A "reportagem fotográfica" será o último post dedicado á "Barca de Gil Eanes".

E por hoje é tudo

(continua)

Bons ventos e …

Um abraço

13.09.23

82– Modelismo Naval 7.3.14 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”  


marearte

 

 

ib-04.1.jpg

(continuação)  

 

 

Caros amigos

 

8.6 – A Construção Naval (1415 – 1434)

1-Ribeira das Naus antiga.jpg

Ribeira das Naus no Tejo, em Lisboa – um estaleiro movimentado nos séculos XV e XVI

“Desconhece-se quase todos os pormenores da actividade neste período (séc. XII a XV): escasseiam os testemunhos fidedignos e os primeiros tratados de construção naval portugueses só aparecerão muito mais tarde, em fins do séc. XVI.”

“Navios, Marinheiros e Arte de Navegar (1139 – 1499) – Coordenador: Com.te Fernando Gomes Pedrosa 

Academia de Marinha, Lisboa, 1997 

A Ribeira das Naus

2-Ribeira das Naus 1940.jpg

A Ribeira das Naus antes de 1940

Paço da Ribeira localizava-se na margem do rio Tejo, na Ribeira de Lisboa, em Portugal.

Consistia num luxuoso palácio real erguido a partir de 1498, por determinação de D. Manuel I, no contexto da descoberta do caminho marítimo para a Índia e do monopólio português do comércio das especiarias do Oriente com a Europa. Foi totalmente destruído no terramoto de Lisboa, em 1755. 

No local do primitivo palácio situa-se, hoje  o complexo ministerial do Terreiro do Paço.

Ribeira das Naus foi o nome dado a partir da construção do Paço da Ribeira às novas tercenas que o rei Dom Manuel I mandou edificar a ocidente do novo palácio real, construído sobre o local das tercenas medievais.

Na Ribeira de Lisboa funcionavam, desde há muito, os principais estaleiros portugueses, até então chamados de tercenas (1) e de finais do século XV em diante, denominados Ribeira das Naus, ou apenas Ribeira. O novo paço foi erguido sobre as tercenas de Lisboa, que o soberano determinou deslocar para Ocidente, de forma a renová-las e alargá-las.

(1) - As tercenas medievais eram locais onde se guardavam as “galés”, embarcações que foram, por excelência, os navios de combate mais relevantes desde a antiguidade até ao século XVI, mantendo-se em algumas marinhas europeias até ao início do século XIX, nomeadamente na marinha russa.

As tercenas funcionavam como um “parque de estacionamento” da esquadra de galés onde, e só muito eventualmente, se faziam pequenas reparações, sendo a sua construção feita em estaleiros ou ribeiras perto ou longe.

A palavra tercenas, provém do árabe dar al -sina, “oficina”, que significava o local, pertencente ao estado, dedicado à construção naval. Do árabe, o étimo penetrou nas línguas romanas, como no português taracenas, no castelhano atarazanas, no italiano darsena e arsenale, e no francês arsenal. Em todas estas línguas manteve-se uma ligação às actividades navais, mas nem sempre o significado se associou à manutenção de galés.

 Em Portugal e em Espanha a palavra tercenas ganhou, durante o século XVI, o sentido de armazém, perdendo-se gradualmente o vínculo com a construção naval. Este facto deve--se às alterações sofridas nas prioridades da construção naval ocorridas, no século XVI, sobretudo devido à navegação atlântica que beneficiou naus e caravelas, em detrimento das galés, embarcações que se adaptavam melhor à navegação e ao combate naval no Mar Mediterrâneo.

No século XVIII, a Ribeira das Naus passou a ser designada "Arsenal Real da Marinha" quando as suas instalações foram construídas no mesmo local, no âmbito da reconstrução da Baixa de Lisboa, depois do terramoto de 1755.

Em 1910, passou a designar-se "Arsenal da Marinha de Lisboa". O Arsenal da Marinha de Lisboa foi desactivado em 1938.

3-Administração Central da Marinha.jpg

Instalações da Administração Central da Marinha

O seu antigo local - cujo acesso ao rio Tejo foi cortado com a construção da Avenida Ribeira das Naus - faz hoje parte das Instalações da Administração Central da Marinha.

Ribeira das Naus, com as docas Seca e da Caldeirinha,  constituiu  o conjunto dos maiores estaleiros do Império Oceânico Português, servindo de modelo aos restantes que se foram construindo além-mar, nomeadamente às ribeiras de Goa e de Cochim.

Apesar da dificuldade de obter informação de pormenor sobre a construção naval em Portugal no séc. XV, vamos tentar, de uma forma mais geral, alinhar alguns conceitos básicos que serão os suficientes no contexto deste post.

No Portugal de meados do séc. XV, a construção naval já se tinha desenvolvido em termos artesanais (ribeiras) e “eruditos” (estaleiros) construindo as primeiras diversas embarcações de pesca e de pequena cabotagem e a segunda embarcações de alto mar para comércio e defesa do país, com uma tónica especial nas “naus” (incluindo as da “Carreira da India”. Estas ribeiras encontravam-se junto a portos de mar, ou junto às fozes de rios ou no seu estuário.

Alguns desses portos – onde é previsível que existisse construção naval de grande ou de pequeno porte – desapareceram por causas variadas, mas entre os séculos XIII e XVI, existiam os seguintes portos agrupados por zonas, do Norte a Sul de Portugal:

 

Litoral Norte  –  Caminha, Valença, Viana do Castelo, Esposende, Vila do Conde, Zurara, Pindelo, Estuário do Douro e Aveiro;

Litoral Centro  –  Buarcos, Mondego, Foz do rio Liz e Vieira, Paredes, Portos de Alcobaça, Pederneira, S. Martinho de Salir, S. Martinho do Porto, Alfeizerão, Peniche e Atouguia da Baleira, Lourinhã, Lisboa (estaleiro da Ribeira das Naus com tercenas) e Estuário do Tejo;

Estuário do Sado e Costa Alentejana  –  Sesimbra, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Nova de Mil Fontes e Odemira;

Costa Algarvia  –  Lagos, Portimão, Faro e Tavira (com tercenas)

Depois, espalhados ao longo da costa e nas fozes de rios menores, existiam uma série de ribeiras esporádicas onde eram construídas embarcações para uso local.

Para o nosso caso (1415-1434) tiveram especial importância os portos do Algarve em particular os de Tavira, Faro, Portimão e Lagos com particular interesse, pelas suas ligações ao comércio com o norte da Europa e em particular com a bacia do Mediterrâneo. (há notícia de que este porto mantinha trocas comerciais com o Norte da Europa pelo menos desde 1295 senão antes e com o Mediterrâneo pelo menos desde a ocupação árabe da Península Ibérica),

4-Lagos no Algarve..jpg

Lagos, no canto inferior esquerdo do mapa, com a ampla baía que a caracteriza e que era muito procurada pelas embarcações que vinham da costa ocidental Atlântica e do Mediterrâneo

“LAGOS, beneficiando da sua situação geográfica, abrigada da costa ocidental atlântica e fronteira a uma ampla baía, mostrou-se, ao longo do tempo, em particular durante o período que antecedeu a descoberta do caminho marítimo para a Índia, como um dos portos de melhor posicionamento estratégico, tanto sob o ponto de vista comercial como militar. Possui até à actualidade, grande tradição na construção naval de madeira.

Foi em Lagos que se sediaram, desde muito cedo as baleações e as companhas da pesca do atum. Esta actividade teria contribuído inevitavelmente para o desenvolvimento da arte de construir navios. D. Pedro em 1359 concedeu aos maiorais das baleações vários privilégios e em 1386, Estevão Vasques Filipe, anadel-mor dos besteiros, por doação régia ficou recebedor das tenças reais e dízimas atribuídas na baleação de Lagos.”

A Arqueologia Naval Portuguesa-Séculos XIII a XVI

Adolfo A. Silveira Martins – UAL - 2001

 

Na altura, já se encontravam consolidadas técnicas de construção naval provenientes das duas diferentes áreas de influência no reino, áreas essas que se radicavam no Norte da Europa e no Mediterrâneo, tendo métodos bem diferenciados de construção de embarcações, cada um adaptado às características de navegação dependente do tipo de mar e cada uma com os seus méritos.

5-Barco Viking.jpg

Barco “Viking” como exemplo do método “Clinker Built”

Como já vimos anteriormente no Norte da Europa a sucessão de tarefas para a construção das embarcações relativamente pequenas, rotundas, com uma proporção quilha/boca de 3:1 (uma concepção já existente no séc. XIII), de casco simétrico, com rodas de popa e de proa muito idênticas e a secção a meia-nau em forma de U e de abas verticais, cujo forro era trincado (sistema de união que consiste na sobreposição do bordo inferior das tábuas do casco ao bordo superior da tábua que lhe fica logo abaixo – Klinker Built - (2) que armavam um mastro sustentado por brandais fixos, com vela quadrangular/retangular, com rizes, pendente de uma verga horizontal e governados por um leme de “espadela” fixo na alheta de estibordo da embarcação e por vezes nos dois bordos. (3)

(2) Este método de construção não vingou em Portugal pois tradicionalmente era há muito usado o método de casco liso com a construção primeiro de uma estrutura da embarcação. Os únicos barcos, que conheço, que eram construídos com métodos parecidos são o “Carocho” do Rio Minho e o “Barco Rabelo” do Rio Douro.

(3) No início do século XIII aparece o leme axial (centrado na popa) que veio substituir o leme de “espadela” tornando-se universal durante o séc. XIV.

 

6-Caravela Boa Esperança.jpg

A “Caravela Boa Esperança” nos estaleiro em Vila do Cone em 1989-1990 na fase de assentamento das balizas entre almogamas

No Mediterrâneo a construção das embarcações era efectuada de um modo diferente. As embarcações eram mais esguias e a secção a meia-nau tinha a forma de um tornando-se mais afilada no sentido da proa e mais larga e abaulada no sentido da popa. Os navios com comprimento superior a 20 metros eram normalmente de casco duplo (forro exterior e forro interior) de modo a tornar mais resistente a “querena”, bem como tinham “vaos” salientes no costado. Desde muito cedo usaram aparelho latino (4) constituído por um mastro colocado a meia-nau da embarcação e sustentado por ovéns e brandais volantes, uma vela latina e uma verga normalmente constituída por duas partes ligadas e sobrepostas uma á outra e que trabalhava no mastro no sentido proa/popa, onde a vela latina era envergada. Estas embarcações também podiam ter aparelho redondo, conforme o número de mastros (p.e. as galeras romanas movidas a remo e que tinham como auxiliar uma vela de pendão retangular usada conforme as necessidades) ou um aparelho misto (redondo e latino como por exemplo as naus e as caravelas redondas).

(4) – A origem do aparelho latino e como se passou do aparelho redondo pata o latino tem dado azo a grandes debates e discordâncias. Não indo por aí, basta dizer que não é portuguesa (embora tenha sido adaptada e melhorada conforme as navegações) e que se pode centrar a sua origem, em épocas diferentes em três áreas distintas: documentadamente primeiro no Mar Mediterrâneo depois no Oceano índico (possivelmente uma passagem de tecnologia do Mediterrâneo? ou a sua criação nas Penínsulas Arábica e/ou Indostânica e por último, no Oceano Pacífico entre a Papua/Nova Guiné e as ilhas Cook, um aparecimento autónomo de velas triangulares que são armadas ao contrário (esteira par cima se assim se pode dizer).

Este método ficou conhecido como “Carvel  (5)  built”.

 

 (5) Segundo o dicionário de Inglês/Português que eu mais uso, o “Comprehensive Technical Dictionary” de Lewis L. Sell, edição de 1953, o verbete para a palavra Inglesa “Carvel” diz o seguinte:

“CARVEL-BUILT; CARVEL-PLANKED, de construção com malhetes; liso// CARVEL-BUILT BOAT, escaler de costado liso// CARVEL-WORK, construção com malhetes”

E num outro verbete aparece:

“CARAVEL, caravela”.

Por outro lado, o dicionário do Comandante Marques Esparteiro de termos Náuticos Ingleses, edição de 1974, tem uma entrada que traduz CARVEL pelos mesmos significados do dicionário Sell e uma outra isolada que dá como significado Caravela.

Após algum debate com especialistas de História Náutica concluiu-se que uma coisa é CARVEL e outra coisa é CARAVEL e que CARVEL é um método de construção em casco liso e CARAVEL, é uma embarcação que, por acaso, usa esse método. Portanto a tradução direta de CARVEL como caravela só é aceitável quando estiver dentro desse contexto.  

A evolução da construção naval portuguesa sofreu assim influências da Europa do Norte – principalmente na zona a norte do Douro – e do Mediterrâneo – na costa ocidental e na costa sul (Algarve).

Foi do conjunto destas influências, do saber empírico dos navegantes, do saber académico dos cientistas e das experiências de tentativa e erro dos marinheiros, que se moldaram embarcações adaptadas às necessidades, que passaram pelas “Galés”, pelas “Barcas” e “Barinéis”, pelas “Caravelas de Descobrir”, pelas “Naus”, pelas “Caravelas Redondas”, pelos “Galeões” e por outras menos comuns, indo de uma construção pouco (ou quase nada) padronizada, para uma construção parametrizada, normalizada e regimentada a partir dos finais do Século XV e nos séculos seguintes.

7-Caravela.jpg

Réplica atual de uma Caravela (Vera Cruz) de dois mastros

 

Como conclusões teremos:

19 – A construção naval portuguesa do tempo de Gil Eanes era uma prática bem espalhada em todo o país, principalmente nas zonas onde existiam portos;

20 – Esta construção era baseada nas técnicas transmitidas de pais para filhos ao longo dos tempos, em que não havia desenhos mas sim construção com base nas habilidades dos mestres carpinteiros;

21 – Existiu influência na construção naval vinda da Europa do Norte (alguma coisa) e do Mediterrâneo (fortemente);

22 – Toda esta situação foi sendo modificada desde os finais do século XV e nos séculos seguintes, muito depois da passagem do Bojador por Gil Eanes em 1434.

 

Bibliografia consultada para este sector:

  • “Notas sobre a Tecnologia de Construção Naval nos Estaleiros Navais Portugueses do Século XVI” Paper

Carvalho, Carla; Fonseca, Nuno; Castro, Filipe Vieira de

  • “A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI)  ”

Martins, Adolfo A. Silveira

  • “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499”

Pedrosa, Fernando Gomes

  • “Construção Naval em Madeira – Arte, Técnica e Património”

Câmara Municipal, de Vila do Conde

Actas do Congresso Internacional

  • “As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Silva, Manuel Fialho; Fonseca, Nuno (Ilustrações)

Actas XV Simpósio de História Marítima

 

E por hoje é tudo

 

(continua)  

Bons ventos e …

Um abraço

11.09.23

81 – Modelismo Naval 7.3.13 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

ib-04.1.jpg

(continuação)

Caros amigos

 

            8.5 – A Tecnologia Naval (1415 – 1434)

Em 1418, quando da ida do Infante D. Henrique para Lagos, no Algarve, o “Estado da Arte” da Marinharia (1) existente no reino de Portugal, já permitia efectuar grandes viagens Oceânicas quer ao Norte da Europa, quer no Mediterrânio e também ao Norte de África. No entanto, essas viagens dependiam de um tipo de navegação que, na sua quase totalidade e consoante as rotas já conhecidas, era feita com base em pontos de referência na costa (pontos conspícuos), levando assim a que as embarcações procurassem navegar principalmente junto à costa ou com rumos previamente já conhecidos.

(1) – Segundo o “Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e actual”, já atrás indicado, este termo significa, entre outros, o conjunto de “conhecimentos náuticos usados pelos nossos navegadores desde o Infante D. Henrique até finais do século XVII em que, com outros (conhecimentos) mais desenvolvidos, se entrou no período da Arte de Navegar”, pág. 347.

A navegação astronómica (medindo a altura dos astros) só aparece, por razões que se prendem com a necessidade de cruzar os oceanos e fazer longas viagens fora de vista da terra, o que levantava vários problemas de localização e orientação em pleno mar alto.

"Desde o início dos Descobrimentos, a navegação foi adquirindo uma componente científica cada vez mais significativa e os processos de cálculo para determinar a posição dos navios tornaram-se cada vez mais complexos. Para serem usados pelos navegantes surgiram instrumentos destinados a realizar a medição ou a auxiliar nos processos de cálculo, uns já existentes e adaptados para uso naval, outros especificamente inventados para tal."

 

                        8.5.1 – Instrumentos de navegação

Entre os diferentes instrumentos surgidos a partir do 3º/4º quarteis do século XV, que foram concebidos ou adaptados às novas funções de uso a bordo, destacam-se os seguintes  (sem ordem cronológica nem na totalidade):

A – Instrumento de Sombra (ou Gnómon)

 Esse conhecimento levou ao surgimento de um dos instrumentos mais antigos e simples da Astronomia, o gnómon vertical, que nada mais é que uma simples vareta fincada verticalmente num solo plano num local iluminado pela luz solar, que permite observar a sua sombra. O gnómon e a medição do tempo. Com Pedro Nunes, evolui para um triângulo rectângulo fixado verticalmente sobre uma base nivelável onde se encontrava gravado um semicírculo com escala em graus sobre o qual se projecta a sombra do triângulo.

1-Instrumento de Sombra.jpg

Instrumento de Sombra

Foi concebido por Pedro Nunes para determinar a altura do Sol com vista à determinação da latitude. Convenientemente orientado indica a altura, pela sombra da hipotenusa do triângulo sobre a escala semicircular graduada que lhe serve de base

Instrumento náutico utilizado pelo menos desde o início do século XV para determinação da latitude

 

B – Quadrante com nónio de Pedro Nunes

A posição da linha de prumo indicava na graduação a altura do astro. Para facilitar a leitura mais rigorosa do limbo graduado do quadrante, de forma a atingir fracções mínimas da menor divisão da escala, arranjou Pedro Nunes um dispositivo com o nome de nónio.

2-Quadrante de Pesro Nunea.jpg

Quadrante com a aplicação da “Teoria do Nónio” de Pedro Nunes.

3-Quadrante de James Kyhuyn.jpg

Quadrante com Nónio. Existe uma réplica do original (sofisticado) construído por James Kynuyn (c. 1595) construído em metal (bronze) que se encontra no Museu Galileu, em Florença e que possivelmente nunca serviu a bordo.

 

C – Balestilha

balestilha é um instrumento, formado por "virote" e "soalha (s) ", utilizado para medir a altura em graus que une o horizonte ao astro e dessa forma determinar os azimutes, antes e depois de sua passagem meridiana.

Foi um instrumento náutico bastante utilizado pelos Portugueses na Época dos Descobrimentos, e a sua primeira descrição encontra-se no Livro de Marinharia de João de Lisboa em 1514. No entanto, há descrições anteriores, atribuídas a Jacob Ben Machir Ibn Tibbon e a Levi Ben Gerson.

 

4-Ballestilha.png

Instrumento náutico, usado durante os séculos XVI a XVIII para determinar a altura dos astros para calcular a latitude. De notar que existem 3 “Soalhas” que eram usadas individualmente consoante a altura do astro.

 

D – Astrolábio Planisférico

O astrolábio é um antigo instrumento para medir a altura dos astros acima do horizonte.

  

6-Astrolabio 2.gif

5-Astrolábio 1.gifAstrolábio planisférico de Nicol Patenal 1616 (frente e verso)
(Museu da Marinha)

Aqui referimo-nos ao astrolábio planisférico. Os gregos já o conheciam mas foi através dos árabes, que o introduziram na Península Ibérica, que chegou à Europa.

O instrumento era composto por um disco graduado, a madre, onde se achavam colocadas várias lâminas circulares. Essas lâminas eram também graduadas à superfície das suas margens, permitindo através da alidade determinar a altura de qualquer astro. A alidade girava em torno do centro comum da madre e de todas as lâminas. Cada uma das lâminas ou discos servia para uma determinada latitude.

O astrolábio náutico foi a simplificação do planisférico e tinha apenas a possibilidade de medir a altura dos astros. Inicialmente tinham a configuração da face posterior dos planisféricos. No entanto e com a experiência dos pilotos, ganhou nova forma. Deixou de ser fabricado em chapa de metal ou madeira e passou a fundir-se em liga de cobre de modo a que o seu peso, cerca de dois quilos, o sujeitasse menos ao balanço do navio. O disco inicial foi parcialmente aberto para diminuir a resistência ao vento. A forma definitiva do astrolábio náutico fixa-se assim numa roda, de 15 a 20 cm., com dois diâmetros ortogonais no centro da qual gira a medeclina. Esta alidade dispõe de duas pínulas com orifícios através dos quais se visava o astro. Num dos extremos da medeclina é interceptada uma escala de 0 a 90⁰ gravada nos quadrantes superiores da roda.

 

7-Astrlabio Dundee.gif

Astrolábio Dundee 1555
 (Dundee, Art Galleries and Museums)

O Almirante Gago Coutinho é de opinião que o astrolábio apenas servia para medir a altura do Sol e, numa travessia Atlântica a bordo da barca "Foz do Douro" demonstrou experimentalmente a impossibilidade de, em boas condições, se visarem estrelas a bordo com um astrolábio.

Muitos exemplares espalhados pelo mundo foram fabricados em Portugal e exibem o nome ou as marcas do seu fabricante, como Agostinho de Gois Raposo, Francisco Gois e João Dias. Poucos astrolábios náuticos chegaram até aos nossos dias mas com o desenvolvimento da arqueologia subaquática foi possível recuperar mais exemplares. O número ascende agora a cerca de 80 e são mundialmente registados no Museu Marítimo de Greenwich. Além de um número de registo passaram também a serem conhecidos por um nome, normalmente relacionado com o navio ou o local onde foram encontrados.

8-Astrolabios 9.jpg

E – Agulha de marear

bússola, mais conhecida pelos marinheiros da altura como agulha de marear, é sem dúvida o instrumento de navegação mais importante a bordo. Ainda hoje. Baseia-se no princípio de que um ferro natural ou artificialmente magnetizado tende a orientar-se segundo a direcção do campo magnético da Terra. Os chineses conheceram-na muito antes dos europeus. Foram aqueles os primeiros a fazerem uso da propriedade da magnetite para procurarem os pontos cardeais. A bússola chinesa era composta por um prato quadrangular representando a Terra onde, uma colher de magnetite poisada no centro. indicava o Sul.

9-Bussola Chinesa.jpg

Bussola Chinesa

Parece que foi através dos árabes que esse princípio entra na Europa, onde se tem notícia do seu uso no séc. XII. Inicialmente era composta por uma agulha de ferro magnetizada que se colocava sobre uma palhinha flutuando numa vasilha cheia de água e que apontava o Norte. Levava-se a bordo pedras de magnetite para se cevar as agulhas à medida que estas iam perdendo o seu magnetismo.

10-Pedra de Cevar.gif

Pedra de “cevar”

Os rumos ou as direcções dos ventos têm origem na antiguidade. Na Grécia começaram com dois, quatro, oito e doze rumos. No início do séc. XIV surgem já 16 e na época do Infante D.Henrique já se usavam rosas-dos-ventos com 32 rumos. Aos espaços entre cada um dos 32 rumos chamavam-se quartas  (11º15’) que ainda podiam ser divididas ao meio, as meias-quartas  (5º37’) e estas em quartos  (2º48’).

 

11-Rosa dos Ventos.gif

Rosa dos Ventos (1569)

declinação de uma agulha é a diferença que uma bússola marca entre o norte geográfico e o norte magnético. Não se sabe quem foi o primeiro a notar essa diferença mas desde o séc. XV que aparecem referências a esse fenómeno.

Foi D. João de Castro o primeiro a descobrir o desvio de uma agulha, ou seja o efeito que massas de ferro próximas têm sobre uma bússola. Foi uma das razões para que os morteiros, as caixas que protegem as bússolas, fossem primeiramente em madeira.

 

12-Bussola Francesa.gif

Bússola francesa (1690)

 

F – Ampulheta

Também conhecido por relógio de areia a sua invenção é atribuída a um monge de Chartres, de nome Luitprand que viveu no séc. VIII. No entanto as primeiras referências deste tipo de objecto aparecem apenas no séc. XIV. Pela descrição de então admite-se que a ampulheta já era usada a bordo. É constituída por duas âmbulas de vidro unidas pelo gargalo  de modo a deixar passar a areia de uma para outra num determinado intervalo de tempo através de um orifício.

13-Ampulheta 30m.gif

Ampulheta

A areia usada nas ampulhetas podia ser branca ou vermelha, desde que fosse fina, seca e homogénea. As provenientes de Veneza tinham grande reputação. A vida a bordo era regulada por este instrumento. Existiam ampulhetas para tempos de uma, duas ou mais horas mas as mais usadas eram as de meia hora também conhecidas por relógio. Ao virar a ampulheta, o marinheiro tocava o sino; uma badalada às meias horas e pares de badaladas correspondentes à hora de quarto. Um par à primeira, dois à segunda, etc. Falta dizer que cada quarto era, e ainda hoje é assim, de quatro horas. Mais tarde, com o uso das velas triangulares, as bolinas eram “ampulhetadas” para manterem a uniformidade das distancias percorridas

G – Prumo

Entre os primeiros instrumentos de navegação conta-se com certeza aquele que permitiu medir a altura da água por baixo de uma embarcação. Primeiramente talvez o pau ou a vara usada para deslocar o barco. E depois disso quem sabe se uma pedra atada a uma linha. Textos da antiguidade referem sondagens e mesmo navegação com este método o que pressupõe a utilização regular deste instrumento já naquelas épocas.

Usado para profundidades até cerca de 20 braças, a sonda ou prumo de mão é composto por um cone alongado de chumbo, redondo, quadrado ou oitavado, de 3 a 5 Kg de peso e com uma alça no vértice superior onde se fixa a linha de prumo ou sondareza. Na base uma cavidade é cheia com sebo para trazer amostras do fundo de modo a conhecer-se a sua natureza (areia, rocha, lodo, etc.).

14-Prumo de Mao.gif

Prumo de mão

Até praticamente meados do século passado o prumo de mão era de primordial importância para a navegação.

H – Quadrante  

Usado pelos navegadores portugueses, pelo menos desde o século XV, o quadrante era um instrumento de madeira ou latão empregado para medir a alturas dos astros, e através de cálculos, ajudar na localização das embarcações em alto mar. A sua origem é mais antiga que a do astrolábio.

15-Quadrante.jpg

Quadrante

 

Fontes desta parte:

- Museu de Marinha, Lisboa

- Medir as Estrelas – António Estácio dos Reis

- Associação Nacional de Cruzeiros

 

De toda esta panóplia de instrumentos de localização e orientação (quase todos eles usados na época dos Descobrimentos), Gil Eanes na sua Barca só teve acesso a muito poucos para ultrapassar o Cabo Bojador pois a maioria destes instrumentos só entraram em uso após esta passagem.

Gomes Eanes de Azurara, na sua “Crónica de Guiné”, dá-nos algumas pistas sobre esses instrumentos ao pôr na boca do Infante D. Henrique as seguintes palavras, quando tentava convencer Gil Eanes a dar tudo por tudo na nova viagem de tentativa de passagem do Cabo Bojador em 1434 (nova, pois Gil Eanes já tinha tentado em 1433, uma viagem falhada que não passou das Ilhas Canárias), “… nom sabem mais ter agulha nem carta de marear…, referindo-se a outros navegadores que anteriormente tinham falhado 14 ou 15 (?) tentativas de passagem do Bojador durante 12 anos, pois estavam habituados à navegação entre Flandres e outros portos que eram rotas já conhecidas.

Como conclusões teremos:

14 – Fazendo fé do que nos diz Azurara, podemos depreender que a agulha de marear fazia parte seguramente da palamenta da embarcação;

15 – A par da agulha de marear deveriam seguir a bordo uma ou mais ampulhetas que nestes tempos serviam pelo menos, para marcar a duração dos quartos de vigia;

16 – Um outro aparelho, talvez o mais antigo na história da navegação (Heródoto 484-420 BCE), seria o “prumo de mão, imprescindível por mais rudimentar que fosse, devido ao tipo de navegação praticado junto á costa que exigia frequentes sondagens;

17 – O “quadrante”, embora não haja nenhuma certeza da existência deste instrumento a bordo da embarcação de Gil Eanes. Conhecido desde a antiguidade foi o instrumento de “alturas” mais cedo adaptado à náutica. A primeira referência existente em Portugal, é de Diogo Gomes que declara tê-lo utilizado numa viagem efectuada por volta de 1467. No entanto há quem defenda que já era utilizado no século XIV.

 

8.5.2 – Cartografia (1415 – 1434)

 

“Quando a exploração da costa ocidental de África começou, durante a primeira metade do século XV, o método de determinar a posição do navio no mar era baseado, tal como no Mediterrâneo, em distâncias estimadas pelos pilotos e direcções magnéticas fornecidas pela agulha de marear.

Depois de 1434, quando o Cabo Bojador foi dobrado pela primeira vez, rapidamente se verificou que a melhor forma de fazer a viagem de regresso seria levar primeiro os navios para o largo, a fim de contornar ventos e correntes contrários, e depois navegar para norte, em direcção ao arquipélago dos Açores, e daí para Lisboa, tirando partido da circulação geral dos ventos.

  Contudo, os métodos tradicionais de navegação não eram adequados a longos trajectos oceânicos, uma vez que a exactidão das sucessivas posições estimadas se degradava rapidamente com o tempo, a ponto de os navios se poderem perder no mar após escassos dias de viagem em condições mais difíceis. A introdução da navegação astronómica, em meados do século XV, (pouco depois da passagem do Cabo Bojador e como consequência disso) revelou-se uma solução adequada e durável para o problema.

Na primeira fase, as alturas da Estrela Polar eram usadas somente para estimar o deslocamento norte-sul relativamente a uma posição de referência. Mais tarde, durante a segunda metade do século, e com a introdução de tabelas de efemérides e a simplificação do quadrante e astrolábio, tornou-se possível determinar a latitude no mar com uma exactidão considerável.

Antes da introdução dos métodos astronómicos, as cartas náuticas usadas pelos pilotos no Atlântico eram idênticas às cartas-portulano do Mediterrâneo. A posição do navio era determinada, na carta, como a intersecção da linha que representava o rumo magnético seguido, com origem na última posição conhecida, com um arco de circunferência cujo raio era a distância estimada pelo piloto. À posição assim obtida era dado o nome de ponto de estimativa, ou ponto de fantasia. Com a introdução da navegação astronómica, este método foi adaptado de modo a poder integrar a informação de latitude. A posição resultante, na qual a latitude observada prevalecia sempre sobre os outros dois elementos de informação (o rumo e a distância), era designada por ponto de esquadria. Para os casos em que não fosse possível conciliar os três elementos, foi criado um conjunto de regras, as emendas do ponto de fantasia, apresentadas pelo cosmógrafo-mor Manuel Pimentel, na sua Arte de Navegar de 1712 (Cortesão et. al., 1969, p. 145-49).”

A Figura 1 ilustra as regras descritas por Manuel Pimentel.

16-Ponto de Fantasia.jpg

Figura 1 – Emendas do ponto de fantasia segundo Manuel Pimentel (1712). Caso 1: rumos entre NNW e

NNE, e entre SSE e SSW; Caso 2: rumos entre ENE e ESE, e entre WSW e WNW; Caso 4: todos os outros rumos

 

In: Revisitando a Cartografia Náutica Portuguesa Antiga do Atlântico:

Uma análise quantitativa

Joaquim Alves Gaspar

Anais do III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica 2

 

 

A navegação era, no tempo de Gil Eanes, feita basicamente com Carta e Bússola  (ao que se chamava Rumo e Estima) e, acessoriamente, se e quando necessário, com o recurso ao Prumo de Mão, principalmente em manobras de fundear ou muito próximo da costa e que fornecia dados da profundidade do mar.

Durante a primeira metade do século XV, quando os Portugueses iniciaram as viagens de descoberta e exploração da costa do Noroeste de África, estava em pleno uso o método de Rumo e Estima para determinar o posicionamento de uma embarcação numa Carta Portulano cruzando a distância estimada do percurso efectuado com o rumo, com base na agulha de marear. Era o chamado “Ponto de Fantasia”, que já foi demonstrado ser normalmente errado.

No discurso de “motivação” do Infante D. Henrique a Gil Eanes antes da partida para a passagem do Cabo Bojador, atrás citado por Azurara, na frase“… nom sabem mais ter agulha nem carta de marear…, aparece a menção de carta de marear.

Ora, o significado moderno de carta de marear é o mesmo de carta náutica (tecnicamente “carta de Latitudes) na qual já existem coordenadas traçadas. Muito possivelmente na época em que Azurra escreve (1453), já se calculavam as latitudes pois o “quadrante”, que poderia servir para esse efeito, segundo as fontes já existia no século XIV.

Só com o advento dos Instrumentos astronómicos (QuadranteAstrolábio, etc.) é que se conseguiu determinar a latitude que passou a ser introduzida no Portulano, em conjunto com o rumo e com a estima da distância “fantasiada” pelo piloto. Conseguia-se assim uma maior aproximação à realidade, com o senão de que se continuava a trabalhar com cartas portulano que tinham sido desenhadas com base em distâncias estimadas e rumos magnéticos que, ao lhe serem aplicadas escalas de latitude, se revelaram necessitadas de adaptação geométrica.

 

17-Carta Náutica Portuguesa.jpg

Carta Náutica Portuguesa

Esta Carta é uma “Carta Portulano” que mantem as “loxodrómicas” (loxodrómica é a linha que, à superfície da Terra, faz um ângulo constante com todos os meridianos, que nesta carta estão representadas pela “teia de aranha” formada pelas diferentes linhas que saem dos diferentes Rumos das Rosas dos Ventos e se cruzam entre si), à qual foi aplicada uma escala de latitudes passando a ser, tecnicamente, uma “Carta Náutica”. (Carta de Latitudes?)

Biblioteca Estense, Modena

Mas já existiriam mapas desenhados da costa Noroeste de África ao tempo da passagem do Bojador? Pode ser que sim mas temos de ter em conta que o historiador Charles Verlinden publicou um artigo na “Revista da Universidade de Coimbra” de 1979, um artigo que contradiz essa existência pois cita uma carta da Chancelaria de D. Afonso V, em que se afirma:

“… da terra para além do Bojador, porque até então não houve ninguém na cristandade que conhecesse essa parte (para além do Bojador) nem se aí existiam povoações ou não pois, não estavam diretamente debuxadas nas cartas de marear nem no mapa mundo, desde o dito cabo Bojador para diante… E mandou (o Infante D. Henrique) dela fazer carta de marear.

Transcrição livre retirada do texto a seguir

18-Texto 1.jpg

19-Texto 2.jpg

Se as conclusões são estas, que o Infante D. Henrique só iniciou a elaboração de uma Carta Portulano que abrangesse a descida da Costa Ocidental de África em 1434 segundo uma carta privilégio mandada passar por D. Pedro, Regente do Reino em nome de seu sobrinho D. Afonso, carta essa posteriormente corrigida em 1446, em menos 400 léguas, segundo Zurara, então Gil Eanes em 1434 passou o Bojador só com informações verbais, sem portulano algum. E de facto, só a partir da passagem do Bojador é que começou a haver o cuidado de cartografar o que era descoberto.

 Gil Eanes, na sua Barca, quando passou o Cabo Bojador, deveria de levar com ele, quanto muito um Esboço da Costa e uma Mão Cheia de Informações Orais prestadas pelos navegadores anteriores – e talvez possivelmente transcritas para um Portulano ou Carta de Marear com o desenho aproximado da Costa de África já explorada até ao Bojador, conjugando as informações das anteriores navegações, que seria o que estaria disponível.

Possivelmente também levava um Piloto já conhecedor da rota até ao Cabo Bojador.

Como conclusão teremos:

18 – Pode-se pôr a hipótese de que, apesar de não haver um levantamento rigoroso, os navegadores anteriores que demandaram o Cabo Bojador, poderão ter feito alguns esboços, que permitissem elaborar uma “aproximação” de uma carta de marear onde estivessem assinalados alguns pontos que servissem de referência para a localização da costa, mas tal não seria de grande utilidade para Gil Eanes pois o verdadeiro problema estava na ponta final do percurso: a restinga (baixio) que prolongava o bojador mar a dentro.

 

1 – 1448 – Andrea Bianco

20-Carta Andrea Bianco.jpg

Carta de Andrea Bianco de 1448

É a primeira representação cartográfica dos descobrimentos geográficos portugueses para além do Bojador.

Biblioteca Ambrosina, Milão

E por hoje é tudo

(continua)

Bons ventos e …

Um abraço

15.08.23

80– Modelismo Naval 7.3.12 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

ib-04.1.jpg

 

(continuação)

 

Caros amigos

 

 

            8.4 – O “Contexto Geográfico”

                        8.4.1 – Lagos (1415 - 1434)

A antiguidade do lugar de Lagos vai até â pré-história quando, muito provavelmente, já se procurava sustento nas águas dos rios e depois também no mar, usando embarcações rudimentares feitas de troncos entrelaçados, muito possivelmente, cobertos com pele de animais. Esta antiguidade chegou aos nossos dias através de evidências arqueológicas existentes.

Desde essa altura até hoje, fortes influências de outros povos foram passando e deixando raízes, muitas delas adotadas e ainda hoje existentes.

A actividade marítima e as que apareceram consequentemente a ela ligadas foram evoluindo tendo atingido, no século passado, o seu auge e, como noutras povoações marítimas, foram perdendo a sua relativa importância e algumas actividades extinguiram-se dando lugar a outras mais “lucrativas”. Assim aconteceu em Lagos cuja área ao longo de séculos sofreu e absorveu fortes influências de outros povos.

“Fundada” em 1899 (BCE), na área hoje abrangida pela cidade e arredores, foi-lhe posteriormente dado o nome de Lacóbriga e foi sujeita às influências dos Fenícios, dos Gregos, dos Cartagineses, dos Romanos e mais tarde dos Celtas e dos Gregos (a partir de 600 (BCE), que aportaram às suas costas, (além da permanência dos “mouros”) influência essa que, (descontando a violencia que na época acompanhava este tipo de contactos) trazendo novas técnicas, foi benéfica para o desenvolvimento, principalmente da agricultura com novas formas de cultivar a terra que contribuíram para o aumento da produção do trigo, do vinho, da cera e do azeite e, na área da pesca, com a “industrialização” de produtos transformados, através da salga do peixe para exportação aproveitando a existência de salinas e também através do aproveitamento das sobras de peixe transformando-as em “garum” (condimento liquido à base de restos de peixe) muito usado entre os romanos, gregos, fenícios e cartagineses, que “curtia” em tanques de alvenaria e era depois exportado para todo o Mediterrâneo em “ânforas”. A produção de “garum” foi efectuada em toda a costa portuguesa (incluindo o Algarve). Esta produção foi recuperada em Portugal no ano de 2021, 1.500 anos depois, no sítio arqueológico descoberto na zona de Tróia (Portugal), que é considerado como “o maior centro industrial de salgas de peixe do Império Romano.”

Um terremoto destruiu Lacóbrica que foi reedificada pelos Cartagineses entre 250 e 300 (BCE).

No ano 712 (CE) os mouros iniciaram a conquista da península Ibérica e em 716 Lagos foi conquistada passando a chamar-se “Halaq Al-Zawala”. Os mouros permaneceram por volta de 800 anos no “al-Andaluz” deixando muitos traços culturais na Península Ibérica, incluindo em Lagos.

Em 796, Afonso II das Astúrias atacou Lisboa e, em 1139 deu-se a batalha de Ourique e em 1249 D. Afonso II de Portugal consolidou a reconquista do Algarve tendo sido Lagos integrado na coroa portuguesa entre 1241 e 1244.

Durante a ocupação dos invasores, as suas técnicas e modos de vida tiveram forte influência no Algarve e em Portugal. Lagos, devido ao seu posicionamento na costa algarvia, logo na saída/entrada de quem transitava do Atlântico Mediterrânico para o Atlântico e vice-versa, quase desde a sua fundação teve um papel importante como entreposto comercial e ponto de apoio à navegação trocando produtos comerciais e tendo um forte intercâmbio técnico-cultural com os povos que aportavam nas suas águas.

Tecnologicamente, absorveu desses povos novas técnicas de pesca, principalmente do atum (almadravas ou armações), que era abundante no Algarve, sendo a zona do Barlavento Algarvio a mais beneficiada desta rota de migração dos cardumes de atum, vindo do Atlântico para desova no Mediterrâneo, (atum de direito - Maio/Junho), viagem essa feita com uma rota junto à costa que começava a norte do Cabo de S. Vicente (costa Oeste) e contornava toda a costa Sul do Algarve directa ao Mediterrâneo. No regresso do Mediterrâneo (atum de revés - Julho/Agosto), os cardumes bordejavam a costa em sentido contrário até alturas de Faro, fazendo depois uma inflexão da rota para o mar alto, directos ao Atlântico.

Armações Algarve.png

As “Armações“ que existiram no Algarve e as rotas dos cardumes de Oeste para Leste e após a desova, em sentido contrário infletindo para Sudeste por alturas de Faro. No esquema, em baixo fica a Ponta de Sagres e em cima Vila Real de Stº António.

A modernização das armações (almadravas) para a pesca do atum, da corvina e da sardinha terá chegado ao Algarve, no tempo do rei D. Dinis (1279-1325), pela mão dos Sicilianos e dos Genoveses. (1) As pescarias de atum, no reinado de D. Fernando (1367-1383), estavam nas mãos de Sicilianos que se tinham estabelecido em Lagos. No tempo da permanência do Infante D. Henrique (desde 1418), as armações já se encontravam espalhadas por toda a costa Algarvia, e representavam um bom rendimento incluindo para o tesouro do reino. Em 1418 o Infante D. Henrique estabeleceu-se quase em permanência em Lagos estabelecendo aí a “base” dos Descobrimentos. Em 1433, recebeu, das mãos do seu irmão, o rei D. Duarte, o monopólio da pesca do atum nas costas algarvias.

(1) – Possivelmente já existiam nos tempos da permanência dos árabes na Península Ibérica

Esta arte de pesca do atum, embora se tivesse espalhado por toda a costa do Algarve, teve uma especial incidência no Barlavento Algarvio na costa Sul que vai de Silves até ao Cabo de S. Vicente e na costa Oeste até alturas da Arrifana (atual Carrapateira), em pleno Atlântico. (Ver mapa acima)

Uma peculiaridade destas armações era terem ao seu serviço, em número elevado por cada armação, “barcas” (as chamadas posteriormente “barcas das armações”), que serviam para as várias tarefas de pesca, desde o transporte dos pescadores para os locais onde estavam montadas as armações, como também para o transporte do peixe capturado para terra. No entretanto, serviam como apoio para o copejo do atum.

É de crer que tais barcas, diferiam das nórdicas pelo menos em dois aspetos: seriam também bojudas mas mais afiladas, também de boca aberta e movidas a velas latinas já que vieram do Mediterrâneo, mar este onde a vela latina era prevalecente e onde existiam “Barcas” de todo o tipo, do Levante ao Poente.

Barcas de Armação.jpg

Barcas da Armação em plena faina - Tavira

 

Na dissertação do mestrado de José Marcelino Correia Castanheira, “A Pesca no Algarve Medieval” (2021) é citada a seguinte passagem contida na “História da Marinha Portuguesa” do Investigador, Professor Filipe Vieira de Castro, director do “Ship Reconstruction Laboratory - Texas A&M University”: Barca era “uma designação genérica, relativa a navios que podiam ter configurações diferentes, sem que as diferenças entre elas tivessem sentido geográfico ou cronológico. Ao que tudo indica, a barca era uma embarcação de múltiplas utilizações, desde o transporte fluvial de pessoas e bens, à pesca nos rios e nos mares, junto à costa, ou servia ainda como apoio a embarcações de maior dimensão. Numa palavra, seria uma embarcação para todo o serviço”.

Em Lagos existia (existe?) uma barca chamada “Barca Típica de Lagos” de vela latina (Barca Mexeriqueira/Caravela Pescareza?)

 

Barca de Levante.jpg

Barca do Levante-Mediterrâneo

Como conclusões teremos:

9 – Lagos foi importante como cidade costeira do Algarve, no contexto dos descobrimentos quer pelo seu porto, quer pela sua construção naval, bem como por ser um viveiro de marinheiros criados nas atividades da pesca do alto e longínqua – existe notícia das pescas algarvias se terem expandido para sul até ao Norte de África e mais para Sul ate à zona das Canárias – e também dos marinheiros treinados nas atividades de corso que os portugueses praticavam em todo o Atlântico Mediterrâneo. Foi nestas classes profissionais e nos barcos usados na sua actividade piscatória que o Infante recrutou a maioria dos seus marinheiros para a Descoberta;

10 – Lagos, pela sua localização, serviu de charneira entre a tecnologia náutica da civilização Nórdica e a da civilização Mediterrânea, fazendo a síntese entre as duas e adaptando o melhor de cada uma, com uma forte influência desta última. No que diz respeito aos Descobrimentos, Lagos presenciou o seu nascimento desde 1418 até ao falecimento do Infante D. Henrique em 1460 momento em que a base dessa odisseia foi progressivamente transferida para Lisboa, não deixando Lagos de conservar ainda durante muitos anos a sua importância como ponto de partida de algumas expedições.

 

 

8.4.2 – O Bojador (1415 – 1434)

Em 1415, o Rei de Portugal D. João I, reuniu uma frota de guerra em Lagos e, com o apoio dos seus exércitos e dos seus filhos, entre eles o Infante D. Henrique passou à costa do Norte de África e conquistou a cidade portuária de Ceuta (junto ao estreito de Gibraltar), ponto estratégico importante para domínio e controlo sobre o tráfego marítimo no Atlântico Mediterrânico, bem como eventual ponto de contacto com a civilização Árabe que aí existia e que se estendia por toda a costa Noroeste de África.

Esta data é normalmente tida como o marco histórico do início dos Descobrimentos mas parece ser mais efectivo, para este trabalho, avançar essa data para 1418, altura da chegada do Infante D. Henrique ao Algarve – apesar de já lá ter estado de passagem em 1415 – que se apresenta, para mim,  como data mais consentânea com o início dos Descobrimentos.

  1. Henrique estabeleceu-se em Lagos e, embora esta permanência não tenha sido contínua, daí motivou e orientou (liderou) toda a aventura dos Descobrimentos,

Fazendo fé na informação dada por Azurara na sua “Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné” de que o Bojador foi passado por Gil Eanes com uma “barca” no ano de 1443 e que esta mesma passagem ocorreu “após 12 anos de tentativas” não conseguidas, podemos situar o início “efectivo” dos Descobrimentos no ano de 1422, ano da possível primeira tentativa da passagem do Bojador, não conseguida.

Se, por outro lado, fizermos fé também na informação que nos chega de uma carta de 22/10/1443 existente na Chancelaria Regia que nos diz que o Infante “mandou lá bem XIIIj (14) (no original que se encontra arquivado na Torre do Tombo encontra-se Xiij (13), posteriormente emendado para Xiiijj (15) vezes) antes que soubesse parte da dita terra”, isto só nos pode dizer que, durante 12 anos foram efectuadas 14 viagens (2). Não existe nenhuma contradição entre as fontes pois, só complementam o número de anos com o número de viagens. No entanto, a única informação que se tem deste período dos Descobrimentos – de 1422 a 1443 – 12 anos em que Azurara não fala dos Descobrimentos – é uma carta da chancelaria real de 1443.

(2) – Apesar desta informação, que obtive depois de redigir este texto, mantenho o número de 14 viagens, que é precisamente o termo intermédio entre 13 e 15.

Sabendo-se que o Infante D. Henrique chegou a Lagos em 1418, apontar como o ano de inicio das viagens de Descobrimento só em 1422 é aceitável, pois, apesar da “ansiedade do Infante”, houve que dar tempo ao tempo para o seu estabelecimento e para o levantamento e organização das condições existentes no Algarve para um apoio eficaz, quer no recrutamento de meios humanos necessários ao projecto quer também na existência de materiais e condições técnicas para a realização das mesmas. Lagos, na altura, já reunia essas condições, incluindo a sua maior proximidade geográfica dos objectivos, faltando só a sua organização.

Pragmaticamente e em termos navais, esses objectivos estavam contidos nas várias etapas necessárias para descer a costa Oeste de África de forma a fazer a ligação com o “oceano do outro lado”.

No entanto essa descida da costa, necessariamente acompanhada pela sua identificação e exploração se e quando necessária, exigia uma navegação junto à costa até pela ausência de meios mais sofisticados que permitissem uma navegação de altura, á época ainda não disponíveis.

Nestas viagens, existiam dois obstáculos ainda desconhecidos (ou já referenciados desde o início), que eram a passagem do Cabo Não (26֯ 47’ N) e a passagem mais a Sul do Cabo Bojador (28֯ 07’ N), +/- 160 nM ou 296,5 Km entre um e outro. Muito possivelmente o Cabo Não foi ultrapassado de uma forma rápida (não há notícia de quem o fez) já que este ponto da costa não apresentaria grandes perigos (e não apresenta hoje em dia para a navegação de pesca e recreio que passa junto à costa). Estas dificuldades á navegação costeira, como era de temer pelas “estórias” que eram contadas sobre esse cabo, não passavam mesmo de “estórias”, credíveis para os marinheiros da época, segundo Azurara nos diz na obra já referida.

Depois da passagem do Cabo Não possivelmente estas “estórias” passaram a estar focadas no outro cabo mais a sul deste, agora com uma certa razão: o Cabo Bojador.

 

Cabos Não-Bojador.jpg

Progresso no Reconhecimento da Costa Africana de 1434 a 1445: Do Cabo Bojador ao Cabo dos Mastros”

In; “História dos Descobrimentos Portugueses” - Damião Peres

 

“Jaz o cabo de Não com o cabo Bojador, nordeste e sudoeste, e toma a quarta de leste e de aloeste (para Oeste) e tem na rota sassenta léguas; mas o piloto que for avisado deve fazer o caminho de aloeste-sudoeste trinta léguas, e as outras trinta do sudoeste e da quarta aloeste, e fazendo isto irá fora do Bojador, em mar, dele oito léguas. E não deve fazer outro caminho, porquanto este cabo do Bojador é muito perigoso por causa de a muito grande restinga (baixio) de pedra que dele sai ao mar mais de quatro ou cinco léguas (22 a 28 Km – légua de 20 ao grau) (3); na qual se já perderam alguns navios de mau aviso. E este cabo é muito baixo e todo coberto de areia, e tem o fundo tão aparcelado (4) que está homem em dez braças e nã vê.”

 

In: “Esmeraldo de Situ Orbis”

 Duarte Pacheco Pereira- Manuscrito de 1506 (5)

 

(3) – Se um navegador considerasse que cada um dos 360 graus tivesse 18,5 léguas, cada légua marítima teria 6 006,00 metros. Devido a essas variações, a medida da légua era expressada de várias formas:

  • Légua de 18 ao grau, equivalente a 6 172,84 metros.
  • Légua de 20 ao grau, equivalente a 5 555,56 metros (medida oficial da légua marítima).
  • Légua de 25 ao grau, equivalente a 4 444,44 metros.

 

(4) – No “Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual” dos Com.tes Humberto Leitão e J. Vicente Lopes, o verbete para aparcelado diz: “Que tem as características de parcel – isto é, com fundos relativamente pequenos que vão aumentando muito gradualmente” – e tem um abonamento retirado do “Livro de Marinharia” (pág. 68) de Bernardo Fernandes que diz: “Esta baía (a Angra do Infante) é aparcelada de 10 a 12 braças e o fundo é todo limpo”. Isto “serve também para justificar o significado que é dado a parcelno mesmo Dicionário (págs. 394 e 395).

 

 (5) – Este “roteiro” do Caminho Marítimo para a Índia foi escrito em 1506 e dedicado ao Rei D. Manuel I por Duarte Pacheco Pereira, navegador e cosmógrafo português e nunca foi divulgado publicamente pois, devido ao seu conteúdo, entrou no “rol” da “Política de Sigilo”. Que se saiba, manteve a forma de manuscrito até 1892, data em que foi publicado a partir de duas cópias descobertas, a primeira numa biblioteca de Lisboa e a outra na cidade portuguesa de Évora.

O manuscrito era, de facto, tão precioso, que, em 1573, uma cópia foi remetida secretamente para Filipe II da Espanha por um espião italiano, Giovanni Gesio, aa serviço na embaixada espanhola em Lisboa. Pela missão, Gesio foi regiamente recompensado, encontrando-se o recibo do pagamento pelos seus serviços atualmente na biblioteca do Mosteiro do Escorial, na Espanha.

 

Apesar de todas os entraves psicológicos provenientes das “estórias” que vinham de longa data (e também de haver alguma oposição por parte de alguns sobre o dinheiro que estava a ser gasto nas descobertas bem como posteriormente no povoamento das ilhas (re) descobertas, alegando que Portugal tinha falta de súbditos e era necessário olhar para a situação do reino, entraves esses que, estou convicto, não tiveram tanto peso assim nas dificuldades da passagem do Bojador.

As narrativas tradicionais, que vinham de antanho, focalizadas na impossibilidade de sobreviver para além do Bojador e na existência de outras ameaças (contra as quais já existia informação em contrário obtida pelo Infante) bem como, mais tarde, a elevada despesa das Descobertas, com poucos resultados, mas que na realidade estava a ser suportada pelo Infante e posteriormente também pela Ordem de Cristo, seriam facilmente desmontadas perante um grupo restrito de navegantes empenhados nas expedições. Poderá ter tido algum peso no início mas não demorariam 12 anos a serem esclarecidas.

Por outro lado, há que considerar que, na realidade existiam (e ainda existem), condições meteorológicas e hidrográficas na área com elevado grau de dificuldade para todos os que bordejavam a costa na descida para o Sul em especial os que usavam embarcações de pano redondo. Na realidade essas condições tinham a ver mais com a dificuldade no regresso do Sul pois a ida, tinha ventos favoráveis.

A primeira situação meteorológica era resultante das grandes diferenças de temperaturas entre o mar e o deserto do Sahara com que confinava, provocando fortes ventos de convecção junto à costa e frequentes nevoeiros.

O regime de ventos existentes na costa noroeste de África é predominantemente, no sentido Norte-Sul. Mas este regime não é só predominante depois do Bojador. Sensivelmente após a passagem do paralelo 34֯ N (região de Rabat/Marrocos) os ventos sopram com alguma intensidade predominantemente na direcção do quadrante Sul que empurravam as embarcações até ao Bojador. E o mesmo se passava do Bojador para Sul, situação essa que não se conhecia antes da passagem, mas que foi posteriormente comprovada.

Também o regime das correntes a Norte do Bojador, embora com pouca velocidade, carregava as embarcações também na direcção do Sul e o mesmo acontecia com as correntes após o Bojador que também corriam para Sul, mas aqui com o problema de, logo a seguir ao Bojador, poderem arrastar as embarcações para um carrossel de pequenas correntes circulares.

Nada disto seria problemático se não houvesse um regresso que teria de ser feito contra a linha de vento predominante.

Mas o grande problema (ver a passagem anteriormente citada em (5) do Roteiro “Esmeraldo de Situ Orbis”) era (e é) a existência de uma “muito grande restinga (baixio) de pedra que dele sai ao mar mais de quatro ou cinco léguas (22 a 28 Km), que obriga as embarcações a tomarem um percurso para Oeste que, segundo Duarte Pacheco Pereira devia passar a oito léguas (+/- 45 km) fora do cabo. Para safarem a restinga de pedra o percurso deveria, após a passagem do Cabo Não, tomar um rumo para Sudoeste durante 30 Léguas e depois um rumo para Sudeste durante mais 30 Léguas. Seria uma espécie de triangulação, que levava as embarcações a passarem assim a “restinga” de quatro a cinco léguas em frente do Cabo Bojador safo a 3 ou 4 léguas.

Isto foi escrito em 1506 (numa época em que a navegação pelos astros já existia a bordo) e Gil Eanes passou o cabo em 1434, 72 anos antes, quando os meios auxiliares de navegação eram parcos, e a perda de vista de terra era problemática, na medida em que os navegadores da época, segundo o Infante (pela pena de Azurara, na obra já citada, cap. IX), por estarem habituados às idas e vindas a Flandres e a outros portos para onde navegam amiudadamente por rotas conhecida e possivelmente com costa à vista, “nom sabem mais teer agulha nem carta pera marear”.

Complementarmente (com base no Cap. VIII da obra do Azurara) surge uma dúvida sobre a veracidade da totalidade das 14 tentativas goradas para a passagem do Bojador pois, segundo este autor, muitos dos navegantes que fizeram estas viagens (que não se sabe quem foram) puseram em dúvida a bondade do projecto, pois Azurara escreve que “era grande a dúvida de qual seria o primeiro que quisesse arriscar a sua vida em semelhante aventura”; “que antes deles nunca ninguém se tinha atrevido a passar o Cabo”; “que proveito pode trazer ao Infante a perdição das nossas almas, juntamente com os corpos, porque comprovadamente seremos homicidas de nós mesmos?”; “mas eles não voltavam de mãos a abanar pois se falhavam a tentativa e não cumpriam o mandado do seu senhor, uns iam à costa de Granada e outros corriam o mar de Levante (Mediterrâneo), até que capturavam grossas presas de infiéis com que se tornavam honradamente para o reino”.

 

Como conclusões teremos:

11 – Na realidade, o Bojador, representava um forte desafio para os navegantes da época. Descontando o receio causado pelas “Lendas e Estórias” acreditadas na Europa, muitas criadas na Antiguidade Clássica, aumentadas pela crendice dos povos e posteriormente agravadas pelos Muçulmanos para precaver a passagem dos Cristãos a África mas, tirando este facto da equação, fica a situação reduzida estritamente a um problema de navegação naval que se prende com a inexistência de instrumentos tecnologicamente evoluídos que permitissem a libertação da navegação por conhecenças, navegação essa que exigia a existência de pontos conspícuos nas costas para orientação das embarcações;

12 – O receio transforma-se assim num facto real que pode ter resolução pelo homem socorrendo-se das técnicas existentes e fazendo o melhor possível para viabilizar um projecto;

13 – Das 14 viagens feitas para tentar passar o Cabo Bojador durante 12 anos, quantas realmente chegaram lá perto ou se dispersaram para outras águas em actividades de corso, com muito mais lucro (do Infante e tripulações) e menos risco das tripulações?

 

(continua)

Um Abraço e…

Bons Ventos

27.06.23

79 – Modelismo Naval 7.3.11 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

ib-04.1.jpg

 

 

(continuação)

 

 

Caros amigos

 

 

            8.3 – O “Contexto Humano” (1415 – 1434)

                        8.3.1 – O Infante D. Henrique (1415 – 1434) 

Infante D. Henrique.png

O “Infante D. Henrique” - Pintura existente na “Crónica de Guiné” de Azurara

O Infante D. Henrique nasceu no Porto a 4 de março de 1394  e faleceu em Sagres, a 13 de novembro de 1460. Era o quinto filho de João I de Portugal, fundador da Dinastia de Avis, e de Dona Filipa de Lencastre.

Pouco se sabe sobre a vida do infante até aos seus catorze anos. Tanto ele como os seus irmãos (a chamada Ínclita geração) tiveram como aios um cavaleiro da Ordem de Avis.

Foi o principal impulsionador da expansão portuguesa, os chamados Descobrimentos Portugueses.

Em 1414, convenceu o seu pai a montar a campanha para a conquista de Ceuta, na costa norte-africana junto ao estreito de Gibraltar. A cidade foi conquistada em Agosto de 1415, assegurando assim ao reino de Portugal o controlo das rotas marítimas de comércio entre o Atlântico e o Levante. Na ocasião foi armado cavaleiro bem como os seus irmãos e recebeu os títulos de Senhor da Covilhã e duque de Viseu.

As principais datas da sua vida, no que diz respeito aos Descobrimentos e até ao ano de 1440, já depois de dobrado o Cabo Bojador, são as seguintes:

  1. Por convenção, os Descobrimentos Portugueses têm, como primeiro acontecimento, a conquista de Ceuta em 1415 conquista essa onde participou o Infante, seus irmãos e pai;
  2. Em 1418, o Infante D. Henrique estabeleceu-se, em quase permanência, no Algarve, repartindo o seu tempo entre Lagos, o promontório de Sagres e o Cabo de S. Vicente;

Lagos Medieval.jpg

Lagos Medieval - IX Festival dos Descobrimentos  – Câmara Municipal de Lagos

  1. Em 1419, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira descobriram a ilha de Porto Santo que fará parte do futuro Arquipélago da Madeira; Aprestou por esta época uma armada de corso sua, que atuava no estreito de Gibraltar a partir de Ceuta.

Dispunha assim de mais uma fonte de rendimentos e desse modo, muitos dos homens da sua Casa, habituaram-se à vida no mar. Mais tarde, alguns deles seriam utilizados nas viagens dos Descobrimentos;

  1. Em 1420, estes mesmos navegadores em conjunto com Bartolomeu Perestrelo, descobriram a ilha da Madeira no Arquipélago da Madeira, tendo começado a sua colonização;
  2. Em 1422, o Cabo Não considerado pelos Árabes e Europeus como limite navegável para o Sul, foi ultrapassado e foi alcançado o Bojador. (Existe notícia de que os navegadores genovesesdo século XIII, Vandinho e Ugolino Vivaldi poderão anteriormente, ter navegado até este cabo antes de se perderem no mar);
  3. Em 1427, Diogo de Silves redescobriu (já havia notícia da sua existência desde o século XIV) as Ilhas Açorianas Orientais e Centrais que foram colonizadas em 1431 por Gonçalo Velho Cabral. As ilhas do Grupo Ocidental só foram descobertas por Diogo de Teive em 1452;

Barca Museu de Marinha.jpg

Barca de Pano Redondo - Museu de Marinha

  1. Em 1433, por concessão real, foi-lhe conferido o monopólio da pesca do atum e da corvina no Algarve sendo a pesca do atum já uma atividade de centenas de anos no Algarve, (trazida pelos navegadores sicilianos e genoveses já no tempo de D. Dinis), que faziam a rota comercial para a Europa do Norte e outros países, muitas vezes com escala em Lagos, antes de enfrentarem o Atlântico Norte; Neste mesmo ano deu-se a primeira tentativa de Gil Eanes passar para além do Bojador. Por causas desconhecidas, não passou das Ilhas Canárias;

 

Barca Pescareza (1).jpg

Barca Pescareza (Caravela Pescareza?) - Museu de Marinha

  1. Em 1434, Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador numa segunda tentativa (depois de 12 anos da ultrapassagem do cabo Não e de 14 ou quinze tentativas feitas por outros navegadores ao longo deste tempo), possibilitando assim a continuação da descoberta da Costa Ocidental Africana. Segundo Azurara, as duas viagens de 1433 e de 1434 foram efectuadas numa “Barcha”;
  1. Em 1435, Gil Eanes numa “Barcha” e Afonso Gonçalves Baldaia num “Barinel” foram além do Bojador 50 léguas, em que acharam “terra sem casas e rasto de homens e camelos”;
  1. Em 1440, foram armadas duas caravelas para irem ao Rio do Ouro mas “ouverom aqueecimentos (acontecimentos) contrairos” aparentemente não havendo mais nenhuma informação sobre elas;
  1. Em 1441, foi armado um “navio pequeno?”, que tinha como capitão Antão Gonçalves, para ir ao Rio do Ouro carregar “coirama e azeite” (de Lobos do Mar que existiam em abundância naquela zona).

 

Neste intervalo de tempo de 19 anos que decorreu entre 1415 e 1434 existiu, muito possivelmente, atividade de experimentação nas viagens de descoberta no que diz respeito ao desenho/adaptação de uma embarcação mais própria para o tipo de navegação junto à costa, às técnicas de navegação adaptadas à nova realidade bem como aos instrumentos usados na referenciação e transposição para mapas dos lugares visitados. Seria este o desenvolvimento que o Infante pretendia. Esta experimentação foi feita na realidade com muitas tentativas e possivelmente também com muitos erros (os “acontecimentos contrários” em 1440, referido atrás por citação de Zurara que é a primeira referência a Caravelas supostamente dos Descobrimentos, poderá ter sido um dos resultados desta tentativa e erro.

Carta Andrea Bianco.jpg

Carta de Andrea Bianco de 1448 – Costa Ocidental de África

Assim é muito possível, que, durante os 12 anos após a dobragem do Cabo Não até à dobragem do Cabo Bojador as 14 ou 15 viagens de “tentativa” de ultrapassagem do Cabo Bojador fossem bastante mais do que isso.

Durante o reinado de D. João I tiveram início os preparativos para a expansão ultramarina portuguesa incentivada pelos infantes D. Pedro e D. Henrique e pelo príncipe D. Duarte. No dia 25 de julho de 1415 partiu de Lisboa a primeira campanha militar para o Norte da África com o objetivo de conquistar a cidade de “Ceuta”.

O infante D. Henrique teve participação destacada na conquista da cidade marroquina de Ceuta, onde foi armado cavaleiro. Os mouros fizeram grande resistência, mas a cidade foi tomada pelos portugueses. Esse foi o primeiro feito que deu início à expansão marítima portuguesa.

De volta a Portugal, D. Henrique recebeu os títulos de “Duque de Viseu” e “Senhor de Covilhã”. No ano seguinte, realizou por sua iniciativa uma expedição às ilhas Canárias. Nesse mesmo ano, ficou encarregado da defesa de Ceuta onde permaneceu durante três meses.

Motivos religiosos (místicos) também despertaram o interesse do infante a novas viagens, pois, segundo a lenda, havia um reino cristão na África onde se poderia firmar uma aliança e derrotar os infiéis muçulmanos.

Em 1418, por ordem do papa Leão X, o infante foi nomeado o administrador da Ordem de Cristo, que junto com a Ordem de Avis, era a herdeira dos Templários. A enorme fortuna da Ordem possibilitou um grande número de viagens e descobertas de novas terras. Em 1419, o rei D. João I, empossou D. Henrique como governador do Algarve, região no sul de Portugal.

Ceuta.jpg.png

Ceuta

O Infante D. Henrique, desde 1415 a 1418, após a conquista de Ceuta, conquista essa onde ele teve um papel de destaque tendo partido de si essa iniciativa com o intuito, entre outros, de obter uma posição estratégica na costa de África donde poderia iniciar a obtenção de informações sobre o interior da Costa Ocidental de África através das cáfilas dos Árabes que percorriam o deserto do Sahara pelo interior da costa, informação essa que se centrava na procura de localização do “Reino de Prestes João” e também na obtenção de dados sobre como era o ambiente físico e humano do interior e, simultaneamente, provar que a Terra e o mar não desapareciam depois do Cabo Bojador.

O que nos diz Azurara na “Crónica da Guiné”, (Edição de 1841, Paris);

No capítulo VII, p.p. 44 a 49, refere-se a cinco razões que levaram D. Henrique a iniciar as Descobertas:

“Então, imaginamos que sabemos alguma coisa quando conhecemos o seu fazedor e o fim para que ele fez tal obra….

… depois da tomada de Ceuta, sempre trouxe continuamente navios armados contra os infiéis; e porque ele tinha vontade de saber a terra que estava além das ilhas Canárias, e de um cabo, que se chama Bojador, …

… e vendo outrossim como nenhum outro príncipe trabalhava nisto, mandou ele para aquelas partes os seus navios para ter de vez a manifesta certeza, movendo-se ele pelo serviço de Deus e de El Rei D. Duarte seu senhor e irmão … E esta foi a primeira razão do seu movimento …

interrogação.jpg

O que está para o de lá

… E a segunda foi, porque considerou que achando-se naquelas terra alguma povoação de pagãos, ou alguns portos, em que sem perigo pudessem navegar, que poderiam para estes reinos trazer muita mercadoria, …

especiarias.jpg

Especiarias

… A terceira razão foi, porque se dizia, que o poderio dos Mouros daquela terra de África, era muito maior do que normalmente se pensava, … E porque todo o prudente, … fica constrangido a querer saber o poder do seu inimigo, mandou saber, para determinantemente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis …

Poder Árabe.jpg

Poder Muçulmano

A quarta razão foi, porque havia 31 anos que guerreava os Mouros, nunca achou rei cristão, nem senhor de fora desta terra, que por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo o quisesse (ajudar) na dita guerra. Queria saber se se achariam naquelas partes alguns príncipes pagãos … que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da fé. …

Preste João.jpg

Preste João

A quinta razão foi o grande desejo que havia de acrescentar á santa fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar …”.

800px-OrderOfCristCross.svg.png

Cruz da Ordem de Cristo

Estes eram os objectivos das Descobertas na perspectiva do Infante para o que contribuíam fortemente o conhecimento do Infante (por pré informação de viajantes terrestres árabes da Costa oeste de África, das viagens ás Canárias e das viagens de pesca dos pescadores Algarvios). Com o monopólio da Pesca do Atum na costa Algarvia tinha perfeito conhecimento dos tipos barcos de pesca existentes incluindo as “Barcas das Armações de Atum” que se moviam com a força do vento em velas latinas.

Restos de Barca.jpg

Restos de uma “barca” da Pesca do Atum no Algarve

Vivendo a maior parte do seu tempo de permanência em Lagos, ser-lhe-ia difícil desconhecer a existência nos mares do Algarve de uma frota pesqueira de costa e do alto que pescava no Atlântico Mediterrânico até ao norte de África e da existência de barcas pescarezas ou caravelas pescarezas, com origem mediterrânica, que usavam velas latinas – como por exemplo, a “Barca Típica de Lagos”, mas que não seriam, pelas suas dimensões as mais apropriadas para grandes viagens longínquas.

Como conclusões teremos:

4 – O Infante D. Henrique foi o grande impulsionador dos “Descobrimentos Portugueses”, e dirigiu pessoalmente a partir de Lagos, as primeiras viagens, incluindo a passagem do Bojador e dispôs dos homens da sua Casa para comandar os navios com tripulações algarvias, experimentadas como pescadores ou como marinheiros de corso, com os quais criou uma “task force” para a melhoria das condições da “Descoberta”;

5 – Conhecia o tipo de embarcações existentes no Algarve – incluindo a “Barca das Armações” movida com Vela Latina e desenvolveu toda uma acção no sentido de, com base na experiência das várias viagens ao Bojador, iniciar a criação de uma embarcação adaptada ao tipo de navegação necessário para o efeito – leve, de pequeno calado, veloz e com um aparelho que permitisse navegar mais arrimado ao vento predominante nas viagens de retorno;

 

 

                        8.3.2 – Gil Eanes (1415 – 1434)

Gil Eanes.jpg

Gil Eanes – Lagos - Portugal

Se Gil Eanes não tivesse passado o Bojador, muito possivelmente não faria parte da história dos Descobrimentos de Portugal.

Pouco se sabe da sua vida a não ser que era natural de Lagos no Algarve e que era Escudeiro da Casa do Infante D. Henrique e não há notícia dele antes de 1433, altura em que fez a primeira viagem para o Sul para dobrar o Cabo Bojador, tentativa essa gorada já que, sabe-se pela pena de Azurara, não ter passado das ilhas Canárias.

Porque é que o Infante D. Henrique o nomeia para esta viagem não está claro. No entanto se ao fim de 12 anos e de 14/15 viagens infrutíferas (no que diz respeito à passagem do Bojador) pode-se deduzir que, independentemente da sua idade (uns julgam-no um rapaz novo, outros um homem de idade madura) deveria ter experiência náutica suficiente (possivelmente adquirida a bordo das galés de corso do Infante), além de não ser muito susceptível de ser influenciado por “lendas” e “crendices” ao contrário do que Azurara dá a entender.

Na minha opinião a passagem do cabo Bojador, não tinha ainda sido efectuada por algum receio por parte dos navegadores de se perderem ao tomarem um rumo para Oeste, (para poderem passar para o outro lado do Bojador, devido aos baixios que se projetam do cabo para Oeste. numa distância de 5 Nm (+/- 9 km) e assim perdiam de vista a costa, coisa a que deveriam ser bastante avessos, pois estavam habituados a navegar com terra â vista.

Por outro lado, também acrescia pensarem não ter grandes possibilidades de regresso, já que os ventos predominantes eram do quadrante Norte para Sul e as correntes que diziam aí existir, seria difícil voltar para Norte contra o vento e correntes, principalmente com um aparelho redondo, das barcas tipo “Nórdico”, que tinham muito pouca possibilidade de navegar para o Norte com ventos que soprem de um quadrante pela vante do través.

Mareação 1.jpg

Mareações e limites de bolina do navio com pano redondo - 67,5 Graus (6 quartas) – Menos arrimado ao vento

Mareações 2.jpg

Mareações e limites de bolina do navio com pano latino - 45 Graus (4 quartas) – Mais arrimado ao vento

NOTA: Na altura, este diagrama não existia. Mas este conhecimento existia (não tão preciso), pelo menos baseado na prática de navegação

Azurara, na “Crónica da Guiné”, dedica o capítulo IX com o título “Como Gil Eanes, natural de Lagos, foi o primeiro que passou o Cabo Bojador, e como lá tornou outra vez, e com ele Afonso Gonçalves de Baldaia”. E sobre a sua identidade nada mais aparece. Ficamos a saber o nome, a naturalidade, o feito que praticou e que voltou a passar o Bojador, desta vez acompanhado por outro navegador de nome Afonso Gonçalves Baldaia. Acresce uma outra informação, esta no texto do capítulo referido, em que Azurara diz que Gil Eanes era “seu scudeiro” e que “despois fez cavalleyro” (do e pelo Infante D. Henrique).

Quanto à idade, tanto podia ser um mancebo, como um homem já curtido nestas andanças (a iconografia sobre ele tanto o apresenta como jovem como um homem já feito). Por mim acho que era um homem bastante rodado nestas coisas de navegação marítima.

Até 1433 Gil Eanes era um ilustre desconhecido e não existe nenhuma informação conhecida que nos possa ajudar sobre quem era Gil Eanes antes de ter dobrado o cabo Bojador, ou seja, que destaque tinha e que conhecimentos possuía para ter sido escolhido pelo Infante D. Henrique para levar a cabo esta viagem.

Mas esta viagem foi infrutífera pois Gil Eanes não passou das Ilhas Canárias (tendo regressado ao “reino” com alguns cativos feitos nessas ilhas) pois, segundo Azurara, foi “tocado daquelle meesmo temor” (temores esses que já foram referidos no post 69 desta série, publicado em 00/03/23 neste blogue) que tinha levado à desistência os navegadores mandados pelo Infante nos últimos doze anos de tentativas. Terá sido por medo das trevas?

Azurara fala também da pouca vontade dos mareantes passarem o cabo Bojador, com todos os perigos e incertezas que pensavam existir nessa passagem e que todos os que tinham desistido anteriormente, o fizeram pois podiam dedicar-se mais proveitosamente na atividade de corso contra os árabes e, possivelmente, outros.

Em 1434 Gil Eanes passa o Bojador!

Após o fracasso, Gil Eanes foi enviado novamente no ano seguinte e na mesma embarcação que tinha levado no ano anterior, não antes de, segundo Azurara, que escreveu a Crónica da Guiné em 1452-1453 (no reinado de D. Afonso V), tendo-a refundido em 1460 (ano do falecimento do Infante D. Henrique) – que possivelmente pode ter conhecido quase diretamente este discurso do Infante? – ter ouvido da boca do Infante o seguinte discurso  motivacional:

Azurara1.png

Azurara 2.png

Gil Eanes ficou motivado e “dobrou o cabo a além, onde achou as coisas muito pelo contrário do que ele e os outros até ali presumiam”.

Quando regressou, o Infante mandou-o novamente na sua “barca”, acompanhado pelo “barinel” de Afonso Gonçalves Baldaia – copeiro do Infante – tendo passado novamente o Bojador, em 1435 e percorrido por volta de 50? léguas da costa em direção ao sul “Onde acharam terra sem casas (mas encontraram) rasto de homens e de camelos”.

Gil Eanes é referido novamente por Azurara como tendo feito parte, em 1444 de uma expedição à costa de África, comandada por Lançarote, que era escudeiro do Infante e Almoxarife do Rei em Lagos, tendo como 2º comandante Gil Eanes. Esta expedição, que chegou até às ilhas de “Naar” e “Tider” situadas depois da “Ilha das Garças” (descoberta em 1443 por Nuno Tristão) junto à costa, era composta por 6 caravelas e foi autorizada pelo Infante que mandou fazer bandeiras com a Cruz de Cristo tendo cada uma das caravelas levado uma. Parece que foi a partir daqui que as Caravelas da Descoberta passaram a ostentar a Cruz de Cristo na velas.

Azurara dedica a Gil Eanes um capítulo quase completo (o XXII) referente à viagem de 1444, onde Gil Eanes, nessa mesma viagem, faz um discurso motivacional às tripulações das Caravelas. Deve ter aprendido com o Infante.

Em 1447, Gil Eanes aparece novamente como capitão de uma Caravela, integrado numa frota, que foi a maior de quantas até à altura tinha sido reunida, que voltou à ilha de “Tider” a fim de a conquistar para a coroa portuguesa. Era constituída por, pelo menos, 27 caravelas parte delas de Lagos, parte de Lisboa e 4 da Ilha da Madeira.

A partir de 1447 desaparecem as referências a Gil Eanes na obra de Azurara e na História de Portugal.

Como conclusões teremos:

6 – Para o Infante D. Henrique ter nomeado Gil Eanes para mais uma tentativa, em 1434, da passagem do Cabo Bojador (12ª ou 13ª) depois de doze anos de tentativas goradas foi porque, muito possivelmente o considerava um homem corajoso, tecnicamente capaz e, fazendo parte da sua casa, empenhado em cumprir as directrizes do seu Senhor;

7 – Como hipótese de conclusão, fala-se em “barca”, mas nunca se diz se era uma Barca de pano redondo tipo nórdico, ou uma Barca de pano latino, tipo do sul do reino, podendo qualquer destas hipóteses ser viável, já que qualquer uma delas assenta no mesmo facto – a inexistência de qualquer facto;

8 – Se atentarmos bem à data de 1434, só passaram ou 4, ou 3, ou 2 ou 1 ano ou mesmo nenhum, para o aparecimento das caravelas de descobrir pois, há notícia de que nos anos de 1438/1439, se encontravam carpinteiros portugueses em Bruxelas, nas margens da ribeira de Senne, enviados de Portugal (pelo Infante D. Henrique?) por solicitação de Philippe Le Bon, Duque de Borgonha (que era casado com a Infanta D. Isabel de Portugal, irmã do Infante D. Henrique) e que aí construíram 2 caravelas, e mais qualquer coisa. (1)

 

Philippe Le Bon.jpg

 

Infante D. Henrique.png.jpg

Philippe Le Bon e Infante D. Henrique

Quem copiou quem?

A primeira referência que Azurara nos dá sobre Caravelas refere-se a “acontecimentos contrários” em 1440:

… “ Bem he que no anno de quarenta se armarom duas caravelas afim de irem a aquella terra, (além do Cabo Bojador) mas porque ouverom aqueecimentos (acontecimentos) contrairos, nom contamos mais de sua vyagem. …”

 

(1) – in: Um Relatório sobre a Construção de Caravelas Portuguesas em Bruxelas (1438-1439) PAVIOT, Jacques e RIETH, Éric, Laboratoire d’Histoire Maritime. C.N.R.S., Paris

“Oceanos”- O Repto da Europa, Lisboa, CNCDP, Dezembro 1993.

cnf: Francisco Contente Domingues no seu livro “Os Navios do Mar Oceano – Teoria e Empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII” (página 233), diz-nos:

“O Duque de Borgonha, Filipe o Bom tinha casado com D. Isabel de Portugal em 1436. Esta D Isabel era irmã de D. Henrique e do Rei de Portugal, D. Duarte que reinou entre 1433 e 1438, bem como dos restantes Infantes da “Ínclita Geração”.

Entre 1438 e 1439, nos estaleiros de Borgonha, foram construídas uma galé e uma pequena caravela e depois, mais duas caravelas. Os trabalhos destas construções foram dirigidos pelos mestres portugueses João Afonso e outros, que introduziram na construção naval nórdica a técnica de construção de “Forro Liso” (Carvel), onde se usava exclusivamente o “Forro Trincado” e aprenderam com os Borgonheses a construir “navios de alto bordo” com técnicas que os portugueses ainda não conheciam que possibilitavam a integração dos castelos de Popa e de Proa directamente durante a construção do casco. Este “intercâmbio” deve-se à iniciativa do Infante e do Rei D. Duarte e foi de mútuo aproveitamento. Se havia “política de segredo” nesta fase dos Descobrimentos, não parece! (1438/1439) ”.

É de notar que os carpinteiros eram mestres e portanto dominavam perfeitamente a técnica de construção de Caravelas de Descobrir (só assim se entende que tenham sido enviados para servir o Duque da Borgonha, cunhado do Infante D. Henrique), perícia essa que só seria possível adquirir se por detrás estivessem alguns anos de prática nesse tipo de construção (tentativa e erro pois não existiam planos desenhados, só a experiência!) o que nos leva a pensar que já eram decorridos alguns anos de experiência nesse sentido.

Apesar do termo “carvel” ser usado na Europa indiscriminadamente com o sentido de construção em “casco liso” e também como nome da embarcação “caravela”, esta dualidade não existe na documentação analisada (1) pois o termo usado pelo escrivão do Duque de Borgonha é “caravelle”, não levantando assim qualquer dúvida do que se trata.

Por agora é tudo. 

(continua)

Um Abraço e …

Bons Ventos

16.06.23

78 – Modelismo Naval 7.3.10 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha


marearte

 

ib-04.1.jpg

 

(continuação)

Caros amigos

 

A “Barca” de Gil Eanes

Para quem já não se lembre, esta série de “posts” sobre A “Barca” ou “Barcha”, começou em 9 de Março deste ano de 2023 com o post 69. Tinha comprado os Planos da “Barca” de Gil Eanes no Museu de Marinha em Lisboa e deparei-me com o modelo de uma “Barca” que eu estava longe de pensar que tivesse sido neste tipo de embarcação que Gil Eanes passou “para além do Bojador”.

As partidas de Gil Eanes para o Bojador foram feitas de Lagos, Algarve, Portugal, zona já em 1433/1434, com forte construção naval de pesca e de transporte de cabotagem (se não já com as primeiras tentativas de conceber uma embarcação mais adaptada ás condições de navegação no Atlântico do Noroeste de África, usando métodos de construção, que iam passando de geração em geração – aliás como em qualquer outra parte do reino – e possivelmente também inovadores, que tinham como paradigma, a construção das embarcações com o método mediterrânico de casco liso mais adaptadas, aperfeiçoadas e seguras.

Por outro lado, o tipo das embarcações que cruzavam as águas do “Atlântico Mediterrânico” navegavam, na sua maioria, com a força do vento impulsionando velas “latinas” ou velas “bastardas”, podendo eventualmente observarem-se embarcações com vela redonda arvorada, de proveniência da Europa do Norte e talvez, a par destas embarcações, outras iguais, de propriedade portuguesa (e/ou mandadas construir por portugueses), que faziam negócios com o Norte da Europa.

As minhas dúvidas prendiam-se, num primeiro ponto, com a construção do casco, pois os planos do “Museu de Marinha” indicam que se trata de um “casco trincado”, tipicamente do Norte da Europa e até têm incluídos os planos 5 – Secção Mestra e Âncora e o 6 – Pormenores de Pregação que informam como se sobrepõem as tábuas do costado e como as mesmas são unidas.

Fui apanhado de surpresa já que sabia que em Portugal tal técnica não foi usada, que seja do meu conhecimento, a não ser numa faixa a norte do Douro e em embarcações de cabotagem e fluviais – p.e. o “Barco Rabelo” do Douro e o “Carocho” do Minho. Penso que, a maioria das barcas que aparecem referidas em grande parte da documentação coeva portuguesa desde o séc. XIV, e que algumas podem referir-se a barcas de construção portuguesa, teriam a mesma forma bojuda, atarracada e de proa e popa redondas e simétricas, mas diferiam no modo de construção – casco liso X casco trincado – e muito possivelmente, também no aparelho – vela latina X vela redonda – vela latina essa de há muito usada na costa portuguesa, em especial na costa algarvia. Esta novidade para mim, revelou-se difícil de perceber e de aceitar

Todos estes pormenores causaram-me algumas dúvidas e, por isso, procurei obter informação mais pormenorizada, embora de uma forma não aprofundada, que me permitisse, com base nela (a informação mais importante) ter uma “fotografia” ainda que continuasse “tremida”, para qualificar e quantificar, náutica e morfologicamente, “A Barca de Gil Eanes”.

Pus mãos á obra, colhi o máximo de informação possível e, em cada um dos “posts” desta série alinhei, para mim de uma forma lógica, os principais assuntos que me permitissem decidir se esta era na realidade a melhor abordagem sobre “A Barca de Gil Eanes” ou se haveria uma outra, também dedutiva e baseada em informações, algumas também não factuais, que talvez fosse mais próximaa da realidade.

Neste momento quero reforçar aquilo que tenho afirmado ao longo desta série, que não sou historiador nem tenho pretensões a tal. Sou um simples modelista de “barquinhos” que tem por hábito, em qualquer modelo que faz, investigar o mais a fundo possível sobre o original e assim poder reproduzi-lo o mais fielmente possível.

Portanto, as minhas conclusões “inconclusivas” não são de forma alguma História mas sim uma estória e não farão parte das páginas dos manuais. No entanto aprendi muito com esta pesquisa e houve uma aprendizagem marginal de que já me tinha apercebido ter umas luzes e que consolidei mais, agora. É que a “nossa história” muitas vezes é só estória e que muitos historiadores são magníficos malabaristas.

Assim, em cada um dos “posts”, procurei alinhar a pesquisa por áreas, que se prendem com o meu desejo de esclarecimento, tendo ficado divididas da seguinte forma:

  1. Caracterização geral da “Passagem do Bojador” bem como das primeiras embarcações da Descoberta, em especial da “Barca” e do “Barinel”;
  2. As opiniões de vários historiadores e de uma filóloga considerados de referência, sobre o significado dos nomes “Barca” e "Barcha”;
  3. O “contexto humano” no qual teve lugar este acontecimento, considerando como atores principais o “Infante D. Henrique” e o navegador “Gil Eanes”, que se destacam no meio de todo um grupo que contribuiu fortemente para este acontecimento;
  4. O “contexto geográfico” que passa por uma abordagem de “Lagos” (no Algarve) no que diz respeito á sua génese e evolução, até ao período de 10 anos compreendido entre 1415 a 1434 incluído, datas estas mais ligadas ao feito de Gil Eanes, além de caracterizar a área do “Cabo Bojador”, com base numa “Descrição e Roteiro da Costa Ocidental de África” de 1866, bem como nos elementos meteorológicos e oceanográficos actuais (em termos gerais, houve mudanças nas características climáticas nos últimos 600 anos mas a matriz original conservou-se), com a mesma influência na navegação na área;
  5. O estado da Tecnologia Naval da época (1415 - 1434), abordando os poucos instrumentos de navegação disponíveis na altura, bem como a existência ou inexistência de Portulanos e Roteiros respeitantes à Costa Ocidental de África;
  6. Por último, uma abordagem sobre a construção naval, existente, à época, no reino e em especial no Algarve.

 

Naturalmente que muita coisa ficou para trás, por desconhecimento meu da existência de outra documentação, bem como pela minha impossibilidade de pesquisa de fontes pertinentes para este assunto. E ainda bem pois apercebo-me agora que aduzi muita informação para tão poucas conclusões, ou seja, que “a montanha pariu um rato”.

O que ressalta – e não sou só eu a dizê-lo – é a quase total ausência de informação pertinente sobre estes dois tipos de embarcações (entre outras coisas)– A “Barca” e o “Barinel” o que põe em causa qualquer afirmação final definitiva. Isto leva a uma situação de “qualquer coisa e o seu contrário” serem admissíveis.

Durante a leitura das fontes consultadas – e foram muitas – apercebi-me também que, na maior parte das vezes no que diz respeito a acontecimentos antigos pouco documentados, as “certezas” apresentadas em algumas fontes ditas de referência baseiam-se em suposições e deduções, por vezes sem muita lógica – na base de que já foi dito pelo “fulano de tal” que se cita – caindo-se no risco não só da alteração do conteúdo como de se estar a repetir qualquer coisa de menos bem. Por outro lado existiu (existe?) por vezes alguma manipulação de factos tendente a provar afirmações iniciais. Temos, como exemplo, o uso da história pelo Estado Novo para o “engrandecimento da Pátria”.

Também me apercebi de que, qualquer dedução errada, feita por um historiador de referência, com muita dificuldade se consegue alterar, permanecendo, através dos tempos, como “a verdade”, apesar de ter sido manipulada.

Mas passemos então às conclusões “inconclusivas”.

 

8 - Conclusões (algumas, inconclusivas)

 

          8.1 – As primeiras embarcações da Descoberta – a “Barca” e o “Barinel”

Muitas obras escritas sobre a História dos Descobrimentos omitem (ou desconsideram), quando se referem às embarcações, que os portugueses usaram durante esta aventura a “Barca” e o “Barinel”, referindo apenas a existência de Caravelas, Naus e Galeões.

Sem dúvida que estas duas embarcações fizeram parte da panóplia usada nos Descobrimentos logo no início, embora tenham desaparecido quase completamente após as primeiras viagens feitas para além do Bojador e foram as percursoras desta odisseia dos Descobrimentos durante perto de vinte anos.

No entanto e de uma forma plausível, deve ser considerado que, há quem defenda que as primeiras viagens foram feitas em embarcações de pesca dos pescadores algarvios que iam pescar para o Atlântico no Noroeste de África. Sem dúvida que contribuíram para o conhecimento de parte da costa embora o objectivo não fosse esse. No entanto, deve ter sido desse Povo anónimo que saiu a maioria dos marinheiros que serviram a bordo das embarcações desta primeira fase dos Descobrimentos, pelo menos até â passagem do Cabo Bojador.

Muito possivelmente, embarcações deste tipo, com poucas melhorias nas condições de navegabilidade mas tendo aumentado o arqueio das mesmas e possivelmente com outro tipo de velame, foram utilizadas pelos homens do Infante nas primeiras viagens em direcção ao Sul pela costa de África.

Mas as Barcas, devido a vários novos problemas que foram postos durante estas viagens, rapidamente tiveram a par, primeiramente  Barinéis, e por vezes navegaram em conjunto.

Mas o que são estas embarcações que dão por nome de “Barca” e de “Barinel”? Existe pouca informação sobre elas. Sobre o” Barinel” é quase nula. Sobre a “Barca” existe um pouco mais.

Sobre o “Barinel” a sua origem parece ser o Mediterrâneo, mais concretamente uma das cidades república que integraram a Itália – Veneza (?) Seria uma embarcação um pouco maior (?) do que a “Barca” (1) e teria uma proa parecida com as proas das naus e uma popa redonda como a “Barca”. Calava mais fundo do que a “Barca” (calar-ocupar um determinado espaço abaixo da linha de flutuação). O número de mastros seria de um a dois (três?) e teria um aparelho redondo quando de um mastro e um aparelho misto quando de dois mastros, envergando um dos mastros (o da popa) uma vela latina. Poderia ter remos para navegar sem vento e para algumas manobras de navegação.

Depois da passagem do Bojador, na viagem posterior a “Barca” de Gil Eanes tornou a passar para além do Bojador e foi acompanhada (ou acompanhou) um “Barinel” comandado por Afonso Baldaia. A informação que existe sobre esta embarcação é a que se pode retirar de um modelo da época medieval, o Modelo de Mataró, (uma Coca?) que se encontra exposto no Museu Marítimo de Roterdão, datada de entre 1456 e 1482 e que tem como proveniência uma pequena igreja duma aldeia chamada Mataró, na costa da Catalunha, em Espanha, perto de Barcelona.

Até agora, não existe nenhuma outra representação ou descrição da época desta embarcação. E as referências pelos cronistas da época a esta embarcação são escassas.

É uma caso de ”pensa-se que…”! Por mim, tenho as minhas dúvidas! Mas, se dizem que é um “Barinel, parece um “Barinel” e navega como um “Barinel”, então é um “Barinel”! Vamos por aí! (2)

(1) – Na “Chronica do Conde D. Pedro de Menezes”, no cap. XLII, Azurara fala de uma barca ao “serviço do barinel” o que chama a atenção para a relação de tamanho entre “Barinel” e “Barca” sendo possivelmente esta última, bem mais pequena;

(2) – Segundo Carbonell Pico (Bibliografia 36, p. 55) o termo “Barinel” aparece pela primeira vez no Português em documento de 12 de Abril de 1436 <…E que ajnda mandarom hu Barinel a Ingraterra…>. O verbete diz que o termo pode ser de origem Francesa (balenier), Espanhola (ballener) ou Italiana (barinello).

 Nau de Mataró.jpg

“O Modelo de Mataró”

Mas é um “Barinel”, uma “Coca”, uma “Nau”, ou uma “Caravela? (não Portuguesa)

 

Quanto à “Barca”, cuja informação é maior e mais consistente, na sua versão mais simples de pesca costeira, navegação de cabotagem e fluvial, era um barco de boca aberta, de popa e proa redondas, com leme de “espadela” normalmente a estibordo e era usada no tráfego marítimo e fluvial, havendo um grande número de aplicações para os seus serviços e tomavam os nomes conforme os tipos de serviços que prestavam.

Tinham entre 10 a 20 metros de eslora e uma boca de 2,5 a 3,5 metros. Em viagens mais longas e distantes teriam uma “coberta”.

Podemos considerar a existência de dois modelos de barca a saber:

  • Uma barca redonda com origem nas barcas do norte da Europa, de um único mastro (por vezes dois, um grande e um traquete) com leme de espadela (a estibordo ou a bombardo ou nos dois bordos) e vela redonda (quadrada) nos dois mastros, se existissem dois. Apesar dos cascos das barcas nórdicas serem “trincados”, estou em crer que, se construídas em Portugal, principalmente no sul, teriam casco liso. Podiam ser de “boca aberta” ou, se destinadas a grandes viagens, com um “convés”;

 

Barca Redonda.jpg

Barca Redonda

Modelo no “Museu de Marinha” – Lisboa

 

 

  • Uma barca com origem nas Barcas do Levante do Mediterrâneo, com 13,5 metros de comprimento, ou mais pequenas, que também era de boca aberta, tendo 4,2 metros de boca e com popa redonda. O leme devia de ser axial, montado no cadaste da popa, sem painel. Com um só mastro, envergando pano latino. Chamava-se Barca Pescareza e, por vezes Caravela Pescareza (não confundir com a Caravela dos Descobrimentos).

Barca Pescareza.jpg

Barca Pescareza

Modelo no “Museu de Marinha” - Lisboa

 

Nota: As medidas indicadas não são fixas por impossibilidade de as fixar pois não existe informação nesse sentido. Portanto poderiam ser maiores ou mais pequena.

Como, conclusões teremos:

1 – Existiram simultaneamente (1415 – 1434) dois tipos de “barcas” sendo um de origem nórdica e a outra de origem Mediterrânica;

2 – O “barinel” existiu em Portugal, como embarcação, pelo menos desde 1435 (data da viagem a sul do Bojador de Gil Eanes numa “barca” e de Afonso Baldaia num “barinel”), (Bibliografia 1); embora Carbonelli Pico registe o aparecimento do termo escrito em documentação portuguesa só no ano de 1436. (Bibliografia 36).

A sua morfologia é incerta, tendo no entanto sido adotada uma morfologia parecida com o modelo da “Nau de Mataró”;

 

            8.2 – A diferença (se houver), entre o termo “Barca” e “Barcha”

A embarcação denominada hoje “Barca” (3) aparece em documentos da época dos descobrimentos ou anteriormente, também grafada como “Barcha” e “Barqua”. Pondo de parte esta última grafia que não suscitou qualquer polémica sendo pacífica a consideração que se tratava da mesma embarcação denominada “barca”, seriam a “barca” e a “barcha” duas embarcações diferentes? Embora existam opiniões de que eram diferentes não morfologicamente mas sim em capacidade de carga, possivelmente eram o mesmo tipo de embarcação com dois tipos diferentes de grafia, conforme a época.

(3) – Em referência às “barcas” medievais e do séc. XV, hoje em dia, na classificação dos Grandes Veleiros, o termo barca classifica, pelo tipo do aparelho desses veleiros, como barca, um veleiro com o aparelho como o do Navio Escola “Sagres”, com três mastros (não contando com a Bujarrona) a saber: Traquete à proa. Grande na meia-nau e Mezena à popa. Os dois primeiros envergavam velas redondas e o terceiro uma vela latina trapezoidal, a vela de Ré e uma vela de Gavetope. Muitas vezes este aparelho vinha de uma transformação da aparelhagem inicial dos navios que era de galera, como é o caso da “Sagres II”, que se encontra hoje no porto de Hamburgo, como navio museu, tendo voltado á sua cor original de 1896 e também mudado o nome para o original “Rickmer Rickmers”.

Rickmer.jpg

Rickmer Rickmers”

 

 

Nota:

Actual navio-museu ancorado no rio Elba no Porto de Hamburgo, construído nos estaleiros de Bremerhaven – Alemanha em 1896, tendo servido na Marinha Mercante Alemã como transporte de algodão do Extremo Oriente para a Europa. Em 1912, foi vendido a um outro armador alemão de Hamburgo e foi rebatizado como “Max”. Em 1916 (1ª Guerra Mundial) foi apresado por Portugal no porto da Ilha das Flores – Açores, a pedido do Governo Britânico e emprestado ao mesmo governo, tendo servido até ao final da guerra com o pavilhão Britânico e com o nome de “Flores” sendo devolvido a Portugal no final dessa mesma guerra. Em 1927 o navio foi convertido em navio-escola para a Escola Naval Portuguesa com o nome de “NRP Sagres II” (4). Em 1962 foi substituído, como navio-escola da Marinha, pela “NRP Sagres III“(antigo navio escola “Guanabara” da Marinha do Brasil e atual navio escola da Marinha Portuguesa), tendo sido rebatizado como “Santo André” e reclassificado como navio depósito.

Em 28 de Abril de 1983 o navio foi entregue à associação Alemã “Windjammer für Hamburg” por troca com o “NRP Polar”.

(4) – Antes desta “Sagres II” já tinha existido a “Sagres I” (Corveta Sagres), que foi lançada á água em 3 de Junho de 1858, em Portsmouth (Inglaterra) Tendo chegado a Portugal no dia 18 de Setembro de 1858 foi incorporada na Armada tendo “efectuado relevantes missões diplomáticas e de interesse nacional”. Em 13 de Novembro de 1876 passou ao estado de desarmamento, tendo sido adaptada como Navio Escola que estacionou no Cais do Bicalho, no rio Douro, no Porto

Em 1898, a Escola de Alunos Marinheiros do Porto, foi transferida para a corveta “Estefânia”. Em 7 de Setembro desse mesmo ano, a corveta “Sagres” foi abatida ao efectivo e desmantelada de seguida.

 

Mas vamos revisitar Maria Alexandra Carbonell Pico (M.C.P.) que, nestas coisas de filologia é considerada internacionalmente como uma referência, mesmo pelos que não estão de acordo com ela, que elaborou um extenso verbete sobre este assunto. (Bibliografia 36, pp. 33/51).

Segundo M.C.P. a palavra “barca” vem do latim barca, com abonações em Stº Isidoro (Etymologiae 19,I,19), em Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa – DEP)) e em Corominas (Dicionário Critico Etimológico de la Lengua Castellana – DCEC).

O termo aparece pela primeira vez no Português, com a grafia “barca” no ano de 911, continuando a aparecer até 22 de Abril de 1404, altura em que aparece grafado em documento português o termo “barcha” que continuará durante o séc. XV em que, na “Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal” de Fernão Lopes, aparece isoladamente o termo “barqua”. Com esta excepção, o termo “barcha” continua a ser usado (por vezes no mesmo texto) misturado com “barca”, principalmente por Fernão Lopes na sua “Crónica de D. Fernando I” que usa indiscriminadamente “barca” ou “barcha”.

Toda a documentação que M.C.P. estudou, tem as mais diferentes concepções de “barca/barcha”. Se por um lado considera a “barca/barcha” como “trazendo navios ao seu serviço” por outro lado fala delas como estando ao serviço de outros navios, como escaleres dos mesmos. As “barcas/barchas” poderiam ter tido todos os tamanhos possíveis. E o debate foi estabelecido no campo do tamanho das “barcas/barchas”.

Aqui, as “teses” defendidas dizem, que os termos “barcha” e “barca” referiam barcas maiores e barcas mais pequenas.

Das características conhecidas das “barcas/barchas” as três caracteristicamente mais marcantes, diziam respeito a terem a proa e a popa redondas em simetria, e a uma silhueta marcadamente bojuda e de baixo calado. As introduzidas com origem na Europa do Norte, com casco trincado e vela redonda e as introduzidas via Mediterrâneo com casco liso e vela latina (vela a la trina – de onde é possível ter derivado a designação de vela latina).

Há quem defenda que a “barcha” referia-se ao tipo de embarcação com origem no norte da Europa e “barca”, à embarcação originária do Mediterrâneo.

Azurara usa o termo “barcha” referente á barca de Gil Eanes se se consultar o códice de Paris da “Crónica da Guiné”, mas se a consulta for feita na mesma obra que nos chega pelo códice de Munique aparece “barcha” e “barca”, referente ao barco de Gil Eanes.

João de Barros, que escreve depois de Azurara, no livro I “Da Ásia”, num dos parágrafos, ao falar de uma determinada barca (não a de Gil Eanes) refere-a como “barca” e, para a mesmíssima barca, duas linhas a seguir refere-a como “barcha”!

Quem Sabe! Who knows! Chi lo sa!

Carbonell Pico por fim põe, para mim, um ponto final neste assunto que nada tem a ver com um debate entre Historiadores de Marinha mas sim com a Língua Portuguesa, considerando “Barcha” como uma variante ortográfica de barca, que se conservou ainda durante algum tempo depois da supressão por síncope do “h” passando a escrever-se “Barca”´.

Existem imensos exemplos em português destas alterações por supressão de letras. Neste momento lembro-me de Arquivo por Archivo.

Este é um facto que acontece em todas as línguas. De fato isto acontece, venha ou não venha melhorar a compreensão da língua

Como conclusão teremos:

3 - Os termos “barcha” e “barca” foram usados simultânea ou alternadamente para nomearem a mesma embarcação independentemente da sua origem;

Por hoje é tudo.

 

(continua)

Um abraço e...

Bons Ventos

10.05.23

77 – Modelismo Naval 7.3.9 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

ib-04.1.jpg 

(continuação)

Caros amigos

7 – Tecnologia Náutica no Início dos Descobrimentos – Meados do século XV

 

7.4 – Construção Naval

História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa: a Ribeira das Naus nos séculos XV e XVI no Vimeo 

VER 

Ribeira das Naus no Tejo.jpg

Ribeira das Naus no Tejo, em Lisboa – um estaleiro movimentado nos séculos XV e XVI

“Desconhece-se quase todos os pormenores da actividade neste período (séc. XII a XV): escasseiam os testemunhos fidedignos e os primeiros tratados de construção naval portugueses só aparecerão muito mais tarde, em fins do séc. XVI.”

“Navios, Marinheiros e Arte de Navegar (1139 – 1499) – Coordenador: Com.te Fernando Gomes Pedrosa 

Academia de Marinha, Lisboa, 1997 

Apesar da dificuldade de obter informação de pormenor sobre a construção naval em Portugal no séc. XV, vamos tentar, de uma forma mais geral, alinhar alguns conceitos básicos que serão suficientes no contexto deste post.

Enxó.jpg

“ Enxó” curva, de cabo comprido com que se afeiçoava a madeira (barrotes e tábuas)

No Portugal de meados do séc. XV, a construção naval já se tinha desenvolvido em termos artesanais e “eruditos” construindo a primeira diversas embarcações de pesca e de pequena cabotagem na costa Portuguesa e a segunda embarcações de alto mar para comércio e defesa do país, com uma tónica especial nas “galés” que existiam praticamente em todos os portos principais e que se destinavam a repelir os ataques de piratas que proliferavam na nossa costa como também a outras tarefas.

Na altura, já se encontravam consolidadas técnicas de construção naval provenientes das duas diferentes áreas de influência no reino, áreas essas que se radicavam no Norte da Europa e no Mediterrâneo, tendo métodos bem diferenciados de construção de embarcações, cada um adaptado às características de navegação dependente do tipo de mar e cada uma com os seus méritos.

No Norte da Europa a sucessão de tarefas para a construção das embarcações relativamente pequenas, rotundas, com uma proporção quilha/boca de 3:1 (uma concepção já existente no séc. XIII) de casco simétrico, com rodas de popa e de proa muito idênticas e a secção a meia-nau em forma de U e de abas verticais, cujo forro era trincado (sistema de união que consiste na sobreposição do bordo inferior das tábuas do casco ao bordo superior da tábua que lhe fica logo abaixo) que armavam um mastro sustentado por brandais fixos, com vela quadrangular/retangular, com rizes, pendente de uma verga horizontal e governados por um leme de “espadela” fixo na alheta de estibordo da embarcação e por vezes nos dois bordos, (1) era:

  • Primeiro construía-se uma espécie de “concha” como casco, (em tabuado trincado), com as tábuas ligadas com cavilhas (de madeira ou de ferro);
  • Depois de acabado o casco, seguia-se o reforço interno do mesmo através de longarinas e pseudo cavernas com os respetivos braços que iam tornar a embarcação mais resistente.

As embarcações mais conhecidas provenientes deste método de construção são a “Coca” a “Barca Nórdica” e o “Drakkar”. Este método ficou conhecido com o nome de “Clinker built”.

(1) No início do século XIII aparece o leme axial (centrado na popa) que veio substituir o leme de “espadela” tornando-se universal durante o séc. XIV.

um Drakkar.png

Um “Drakkar” viking no mar do Norte

No Mediterrâneo a construção das embarcações era efectuada de um modo diferente. As embarcações eram mais esguias e a secção a meia-nau tinha a forma de um V tornando-se mais esguia e afilada no sentido da proa e mais larga e abaulada no sentido da popa. Os navios com comprimento superior a 20 metros eram normalmente de casco duplo (forro exterior e forro interior) de modo a tornar mais resistente a “querena”, bem como tinham “vaos” salientes do costado. Desde muito cedo usaram aparelho latino constituído por um mastro colocado a meia-nau da embarcação e sustentado por ovéns e brandais volantes, uma vela latina e uma verga normalmente constituída por duas partes ligadas e sobrepostas uma á outra e que trabalhava no mastro no sentido proa/popa, onde a vela latina era envergada. Estas embarcações também podiam ter aparelho redondo, conforme o número de mastros (p.e. as galeras romanas movidas a remo e que tinham como auxiliar uma vela de pendão retangular usada conforme as necessidades) ou um aparelho misto (redondo e latino como por exemplo as naus e a caravela redonda).

O método usado na construção destas embarcações era:

  • Primeiramente era feito no estaleiro a construção da estrutura básica da embarcação constituída por uma quilha as balizas e as rodas de proa e de popa (espinha e costelas da embarcação);
  • Esta estrutura era depois coberta por tábuas, que constituam o costado da embarcação e que eram colocadas assentes na estrutura já existente, não sobrepostas mas sim encostadas topo a topo constituindo assim um “casco liso”.

Este método ficou conhecido como “Carvel (2) built”.

(2) Segundo o dicionário de Inglês/Português que eu mais uso, o “Comprehensive Technical Dictionary” de Lewis L. Sell, edição de 1953, o verbete para a palavra Inglesa “Carvel” diz o seguinte:

“CARVEL-BUILT; CARVEL-PLANKED, de construção com malhetes; liso// CARVEL-BUILT BOAT, escaler de costado liso// CARVEL-WORK, construção com malhetes”

e

“CARAVEL, caravela”.

Por outro lado, o dicionário do Comandante Marques Esparteiro de temas Ingleses Náuticos, edição de 1974, tem uma entrada que traduz CARVEL pelos mesmos significados do dicionário Sell e uma outra isolada que dá como significado Caravela.

Após algum debate com especialistas de História Náutica concluiu-se que uma coisa é CARVEL e outra coisa é CARAVEL e que CARVEL é um método de construção em casco liso e CARAVEL, é uma embarcação que, por acaso, usa esse método. Portanto a tradução direta de CARVEL como caravela só é aceitável quando estiver dentro desse contexto.  

Caravela réplica.jpg

Réplica atual de uma Caravela de dois mastros

 

7.4.1 – Tercenas, Ribeiras e Estaleiros

Tercena, tarcena ou taracena são palavras que, embora tenham origens diferentes, entraram no português com o mesmo significado de edifícios onde se guardavam as galés e que por vezes poderiam servir para a execução de pequenas reparações. Mas não tinham a função de estaleiros de construção naval que era feita nas praias onde houvesse espaço suficiente para montar uma embarcação de tamanho médio, espaços esses que até inícios do séc. XIV tinham o nome de “ribeiras” e a partir dessa altura ganharam o nome de “estaleiros” sendo já estruturas maiores onde se construíam “navios” e se guardavam as madeiras necessárias para a sua construção. O cronista Fernão Lopes usa pela primeira vez a palavra “stalleiro” na “Crónica de D. João I”.

Terecenas Régias.jpg

Reconstituição das Tercenas régias de Lisboa: com ampliação de quatro naves (à esquerda) durante o reinado de D. Afonso IV (c. 1355)

Ilustração de Nuno Fonseca

“As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca

 

A primeira referência documental à existência de tercenas régias em Lisboa, apenas surge no reinado de D. Dinis, em 1294, quando são referidas umas Casas das Galés pertencentes à Coroa, no contrato para a construção da muralha da Ribeira celebrado entre D. Dinis e o concelho.

Drassanes Reials.png

As “Drassanes Reials” de Barcelona (no século XX), que integram o Museu Marítimo de Barcelona

“As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca

Ao longo de todo o litoral do País, em quase todos os portos e nas fozes de rios, existiram ribeiras e estaleiros, uns mais famosos do que outros mas todos eles a produzirem embarcações, uns mais viradas para a pesca e cabotagem e outros mais para navios de longo curso. Os principais eram os seguintes:

 

Litoral NorteCaminha, Valença, Viana do Castelo, Esposende, Vila do Conde, Zurara, Pindelo, Estuário do Douro e Aveiro;

Litoral CentroBuarcos, Mondego, Foz do rio Liz e Vieira, Paredes, Portos de Alcobaça, Pederneira, S. Martinho de Salir, S. Martinho do Porto, Alfeizerão, Peniche e Atouguia da Baleira, Lourinhã, Lisboa (estaleiro da Ribeira das Naus com tercenas) e Estuário do Tejo;

Estuário do Sado e Costa AlentejanaSesimbra, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Nova de Mil Fontes e Odemira;

Costa AlgarviaLagos, Portimão, Faro e Tavira (com tercenas).

 

Depois, espalhados ao longo da costa e nas fozes de rios menores, existiam uma série de ribeiras esporádicas onde eram construídas embarcações para uso local.

 

7.4.2 - Os Carpinteiros e os Calafates

Para se exercer a profissão de carpinteiro naval e de calafate era exigido um exame que de início era feito perante um representante do rei e já no fim do séc. XIV era feito nos estaleiros na presença de um “mestre de carpintaria” que lhes fazia um exame e lhes passava uma certidão comprovativa que permitia a nomeação por alvará régio.

Também existia um “mestre de calafates”, pelo menos desde 1395. Em 1492 trabalhavam na “Ribeira das Naus” em Lisboa entre 100 a 300 carpinteiros navais e em 1503 um total de 200 calafates-

Também uma terceira profissão aparece mencionada, em relação às galés, como “petintais” que eram, ao mesmo tempo carpinteiros e calafates. Este ofício que estava associado às galés começou a extinguir-se no séc. XV com a diminuição do número de galés.

 

7.4.3 - Os Materiais de Construção

 

Eram variados os materiais usados na construção das embarcações. Embora o grosso das madeiras usadas na construção naval fosse na sua maioria cortada no reino muitos dos materiais também usados nessa construção eram importados. Estas importações eram isentas de taxas quando se destinavam á construção de naus com mais de 100 toneis, segundo carta régia de 1474 que nomeia os materiais isentos: “ não paguem dízima nem portagem de nenhuns tabuados, madeiras, liança, aparelhos, fio lavrado nem por lavrar, breu, resina, estopa, ferro, pregadura, qualquer pano para velas, âncoras, bombardas, pólvora, mastros, vergas, lanças, armas, gorguzes (1) e quaisquer outras coisas que sejam necessárias.

Na alfândega de Vila do Conde, à data, estão indicadas oito espécies de aprestos marítimos e de materiais que também eram normalmente importados: cabres (2), tomento (3), remos, guindaresas (4), bóias, adriças, vergas e polés (5).

(1) – Armas de arremesso, em forma de seta, que eram atiradas com uma espécie de “besta”.

(2) – Cabo mais grosso que o normal.

(3) – Parte sedosa e áspera da planta do linho.

(4) - Cabo que servia para laborar os guindastes antigos feitos com rodas de madeira.

(5) – Peça formada por dois moitões no prolongamento um do outro.

 

A proveniência principal era da Flandres e de Ruão. Os cabres vinham de La Rochelle e as bóias vinham da Irlanda. Outros materiais tais como alcatrão (de Londres, Flandres e Irlanda), fio (da Flandres, Galway e Ruão), breu (de Londres, Manga e Flandres), sebo (de Cardiff) e cordas (de Ruão). O ferro, era proveniente da Biscaia e da Flandres.

Também se importava madeira em especial para os mastros. As restantes partes do navio (cavername e forros) eram, segundo Fernando Oliveira construídas em madeira dura, o cavername (sobro ou na sua ausência podia ser azinho ou carrasco) e madeira branda, no tabuado (pinheiro-manso) O pinheiro bravo não servia para o tabuado porque é muito seco e apodrece em contacto com a água. Só é usado nas obras mortas em vergas, mastros e outras peças que requeiram madeira leve, branda e sem nós.

Apesar de Fernando Oliveira ter uma opinião negativa sobre o carvalho na construção naval, ele foi frequentemente utilizado principalmente nos estaleiros de Viana e Vila do Conde, região onde era abundante.

O pinho seria proveniente do pinhal de Leiria (embora hoje seja composto de pinho bravo – o que resta dele -  e D. Diniz não o tenha mandado plantar para esse efeito mas sim para criar uma defesa contra o avanço das areias), mas também das matas de Alcobaça, do Ribatejo e do pinhal de Alcácer. Mas a determinada altura, esta madeira começou a escassear e houve necessidade de recorrer à importação

As velas eram feitas de algodão importado do Oriente e de Génova, de lonas “Vitres” e “Pondavis” (de Vitré e de Pouldavy - Bretanha, França). O pano de “Treu” de linho, que era tecido no norte do país (Vila do Conde e outros lugares de Entre o Douro e Minho) tinha uma aplicação especial nas velas latinas e foi reforçado por alvará de 1556 tendo passado de 6 ou 7 cabrestilhos para 9 ou 10 (1 cabrestilho era formado por 24 fios) e em 1377 já tinha sido determinado que a largura deste pano deveria ser de “um palmo e dous dedos” (+/- 27cm)

O esparto, (uma gramínea perene) cultivada no noroeste da África e na parte sul da Península Ibérica era empregado no artesanato (cordas, cestos, alpercatas, etc.), existia em abundância no Algarve e, a certa altura do séc. XVI começou a rarear, tendo sido necessário importá-lo dos países nórdicos e da Espanha.

Os pregos que eram usados foram maioritariamente importados da Biscaia pois os pregos nacionais eram considerados como sendo de má qualidade. Tinham diversas designações tais como de “telhado”, “meio-telhado” “sátia” e “contares”. Uma carta de quitação relativa ao material que entrou e saiu no Armazém da Guiné entre 1480 e 1487 indica «… de pregaduras de telhado, 203.300; e de pregos de costados de caravelas, 310.246 …e de pregos de embraçar e cintar, 55.900 … e de pregos de rumo e meio telhado 5.450 … e de pregos estopares, 170.750 … e de pregos de meio telhado 12.300 …».

Santa paciencia para contar os pregos um a um!

 

Bibliografia consultada para este sector:

 

  • “Notas sobre a Tecnologia de Construção Naval nos Estaleiros Navais Portugueses do Século XVI” Paper

Carvalho, Carla; Fonseca, Nuno; Castro, Filipe Vieira de

  • “A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI)

Martins, Adolfo A. Silveira

  • “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499”

Pedrosa, Fernando Gomes

  • “Construção Naval em Madeira – Arte, Técnica e Património”

Câmara Municipal, de Vila do Conde

Actas do Congresso Internacional

  • “As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Silva, Manuel Fialho; Fonseca, Nuno (Ilustrações)

Actas XV Simpósio de História Marítima

 

 

E por hoje é tudo

 

(continua)

 

 

Bons ventos e …

Um abraço

 

 

 

 

 

 

 

 

26.04.23

76 – Modelismo Naval 7.3.8 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

ib-04.1.jpg

 

(continuação)

Caros amigos

 

Barca dos Descobrimentos.jpg

A “Barca” dos Descobrimentos?

7 -Tecnologia Nautica no Início dos Descobrimentos – Meados do século XV

Em 1433, ano da viagem frustrada de Gil Eanes ao Bojador para o ultrapassar, viagem essa que não passou das Canárias, a aventura das Descobertas tinha só começado havia 13 anos, em 1419 – não atendendo à data “oficial” das Descobertas como sendo a da tomada de Ceuta em 1415 vamos oficiosamente avança-la para a data mais aceitável de 1419, quando os Portugueses puseram as “boots on the ground” (independentemente de já terem sido feitas outras navegações anteriores).

Esta é data em que, ao que consta, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira descobriram a ilha do Porto Santo e no ano seguinte em 1420, com base na ilha do Porto Santo onde se encontravam na primeira acção de povoamento em conjunto com Bartolomeu Perestrelo, descobriram a Ilha da Madeira, havendo quem diga que Bartolomeu Perestrelo não esteve presente pois tinha regressado a Portugal.

Barinel dos Descobrimentos.png

“O Barinel” dos Descobrimentos?

Portanto, os Descobrimentos tal como os entendemos, tinham só 13 anos de idade à data da passagem do Cabo Bojador em 1434.

Um outro dado a reter é que, antes de se passar o Cabo Bojador, em direcção ao Sul, houve que resolver anteriormente uma outra situação que era a do Cabo Não, um obstáculo que só foi ultrapassado pelos Portugueses em 1422 por razões náuticas mas, principalmente por razões psicológicas tendo em conta o ambiente de crendice no sobrenatural existente na época medieval, com forte influência no meio marítimo. Por fim foi passado o Cabo Não, por alguém não identificado mas logo a seguir apareceu um outro cabo, o Cabo Bojador que apresentava os mesmos problemas sobrenaturais que foram transferidos do Cabo Não mas acrescidos, agora sim, de um problema difícil de resolver que tinha duas situações náuticas na sua base.

Uma primeira tinha a ver com a necessidade das embarcações rumarem a Oeste durante algum tempo para ultrapassarem os baixios que se apresentavam á frente da projecção do cabo no mar alto, também para Oeste, e por isso corria-se o risco de perder a costa de vista o que na altura era considerado problemático pois toda a navegação tinha como base a costa à vista.

Caravela dos Descobrimentos.jpg

A “Caravela” dos Descobrimentos

 

Uma segunda era relacionada com o aparelho velico das embarcações que, na altura eram, como se pode depreender das informações dadas por Zurara na sua “Crónica de Guiné” “barcas”. Só assim, “barcas” fosse lá que tipo de embarcação fosse na altura! Sendo de pano redondo, segundo o que se sabia e a interpretação da maioria dos historiadores talvez por “simpatia”, teriam muita dificuldade em voltar para trás rumando contra os ventos dominantes.

Durante doze anos foram feitas 14 ou 15 tentativas por vários marinheiros para passar o Cabo Bojador a mando do Infante D. Henrique, sempre sem sucesso.

Gil Eanes à primeira tentativa em 1434 – sim, a primeira, porque a anterior de 1433, nem sequer a tentou segundo informação de Zurara, tendo-se ficado pelas Canárias e voltado para Lagos, por qualquer razão obscura que Zurara não esclarece – consegue passar para o outro lado do Cabo, ir a terra, colher um barril de “Rosas de Santa Maria” e voltar para Lagos, rumo a Norte, donde vinham os ventos dominantes. É obra!

O Almirante Gago Coutinho, um digno explorador e sabedor destas coisas de navegação nos Descobrimentos, defendeu que Gil Eanes regressou pela Volta do Mar, inaugurando assim uma série de itinerários que foram tomando vários nomes (Volta da Mina, Volta da Guiné, Volta da Índia) que consistia no aproveitamento dos ventos dos Açores que correm de Oeste para a costa portuguesa tendo a sorte o ter conseguido descolar da Costa de África (zona do Bojador) para Oeste com ventos dominantes N-S, não sabendo até onde e também não sabendo onde se situava e até se existia vento que o pudesse levar até Oeste dos Açores para apanhar os ventos que o empurrariam para Este em direção a Lagos.

De facto os Açores já estavam descobertos (ou redescobertos) desde 1427 e colonizados desde 1431. Mas tenho dúvidas que Gil Eanes já soubesse alguma coisa deste regime dos ventos no Arquipélago dos Açores.

Poderá ter sido assim? Poderá. Mas também poderá ter sido de outra maneira.

Entendendo por “Tecnologia Nautica” o conjunto de técnicas e de práticas ligadas à navegação e construção das embarcações, no início dos Descobrimentos a tecnologia existente nessa altura – independentemente de outras influências, por exemplo dos países nórdicos – estava fortemente marcada pelos saberes do Mediterrâneo, já adaptados às necessidades da navegação no Atlântico Mediterrânico mas ainda necessitando de outros ajustes para se poder navegar no grande “Mar Oceano”, sendo esse o objectivo principal – a navegação para o Sul em direcção ao Oriente.

 

7.1 – Tecnologia Náutica c.1434

Na data atrás referenciada, já os portugueses navegavam no chamado Atlântico Mediterrânico e no Mar Mediterrânico. Estas viagens permitiram o contacto com os navegadores Italianos (Sicilianos Genoveses e Venezianos) bem como com o Norte de África que, em conjunto com a própria experiência de navegação, permitiu o acumular de uma soma de conhecimentos ligados quer à navegação quer à construção de barcos de tipos específicos a que se somava toda a experiência já obtida na navegação Atlântica para e desde a costa Ocidental/ Norte da Europa, bem como rumo ao Sul ao longo da costa Noroeste de África até ao Cabo Bojador, obstáculo ainda não ultrapassado por questões técnicas de navegação bem como pelos “medos” herdados da época medieval. Nesta altura a navegação era feita á vista da costa por rumo e estima de distâncias.

 

7.1.1 – Instrumentos de Navegação

Da variada panóplia de instrumentos hoje existentes só muito poucos existiam nesta época pois, a simplicidade (embora pouco rigorosa) da navegação, não exigia muito mais. Até um dia!

 

Prumo de mão 

Prumo de Mão.jpg

Prumo de Mão

Encontrado no Galeão Sacramento do séc. XVII

Museu Naval, Rio de Janeiro

O “prumo de mão” foi seguramente dos primeiros instrumentos a aparecerem como auxiliares de navegação – talvez mais propriamente a “vara” de madeira ou de cana, da qual os marinheiros se serviriam para “apalpar” o fundo do mar em pequenas profundidades – prumo de mão esse que é constituído por um peso, na altura de pedra, mais tarde de metal (chumbo ou ferro) atado na ponta de um cabo com um comprimento adequado á função e que era lançado ao lado da embarcação e “media” a profundidade. Muito possivelmente os primeiros foram “calhaus não rolados” tendo possivelmente depois, com base no uso prático, sido esculpidos em forma de tronco de cone e furados no topo para passagem do cabo.

Mais tarde, talvez ainda no advento dos prumos de pedra mas mais no tempo dos prumos de metal, estes eram escavados na base formando uma cavidade que era preenchida com um material moldável e pegajoso (talvez sebo ou outra gordura moldável e insolúvel) que, ao ser puxado para bordo trazia consigo, colada, uma “amostra” do tipo de fundo existente na área – areia, lodo, conchas, ou rocha – o último determinado pela ausência de quaisquer detritos. Isto permitia a escolha de um fundo para ancoragem no qual as âncoras fizesse melhor fixe e não garrassem.

É um instrumento que já aparece referenciado numa notícia de Heródoto (484-420 BCE) a propósito de uma sondagem efectuada no Mediterrâneo, nas proximidades do delta do Nilo.

Ainda hoje, em algumas embarcações atuais, se poderão encontrar prumos de mão, aí presentes para poderem ser usados na eventualidade de falha das novas tecnologias. Marinheiros de pouca Fé!

Este era seguramente um instrumento que se encontrava na “Barca de Gil Eanes”.

(Fonte: “Medir Estrelas” – António Estácio dos Reis p. 21)

 Ampulheta

Ampulheta 30 minutos.jpg

Ampulheta de 30 minutos ou “relógio” na linguagem de bordo, durante os Descobrimentos.

O tempo passa ao ritmo da areia, é o que se pode dizer quando é medido com ampulheta, instrumento que foi usado a bordo dos navios dos Descobrimento para medir o tempo.

Era um instrumento pouco fiável no que diz respeito à contagem do tempo pois o orifício de passagem da areia de um depósito para o outro com o tempo alargava com o atrito e a ampulheta “andava” mais depressa. Mas este era um problema que se levantava em termos de navegação astronómica, coisa que não preocupou Gil Eanes nesta viagem.

No entanto deve ter sido um instrumento a bordo da Barca de Gil Eanes pois a sua utilização também era a de determinar o tempo de duração dos quartos de vigia para rendição dos tripulantes de serviço e neste caso, havia a tentação de virar a ampulheta antes de esgotar completamente a areia encurtando assim o tempo de vigia.

Muito provavelmente este instrumento (talvez mais do que um) viajou com Gil Eanes.

(Fonte: “Medir Estrelas” – Estácio dos Reis p. 24)

Agulha de Marear 

 

Agulha de Marear séc. XVIII.jpg

Agulha de Marear – séc. XVIII

Feita na Real Fábrica do Trem do Rio de Janeiro. 1790. Museu de Marinha, Lisboa

A “Agulha de Marear” ou bússola – da qual pouco se sabe do seu aparecimento – pode ter sido inventada por um filho do “Império do Meio” há pelo menos 2000 ou 3000 anos desta data. Basicamente deve ter sido, no seu início, constituída por um pedaço de arame de ferro “cevado” com uma pedra chamada magnetite (magnetizado) que era posto num estreito tronco de bambu e colocado a flutuar num recipiente com água.

O seu uso a bordo das embarcações, segundo reza a história, ficou-se a dever a um napolitano que modificou a bússola por volta de 1302, ligando o ferro a uma rosa-dos-ventos, ficando assim independente do movimento das embarcações.

As rosas de ventos na Grécia antiga (Torre dos Ventos em Atenas) começaram por ter dois ventos (rumos) que evoluíram até aos doze rumos, passando, na primeira metade do século XVI, a ostentarem dezasseis rumos.

Em 1367, na Carta Portulano dos irmãos Pizzigani já se encontra traçada uma rosa-dos-ventos na sua forma atualmente conhecida de trinta e dois rumos traçado esse que nos tem orientado até hoje. O rumo Norte era identificado pelo desenho de uma Flor de Liz e o Este era identificado pelo desenho de uma Cruz. Os rumos entre si distam 11֯ e 15’ (uma Quarta).

A agulha de marear não indica diretamente o Norte Geográfico mas sim o Norte Magnético tendo a sua leitura que ser compensada pelo valor da Declinação Magnética que vai variando ao longo dos anos e dos locais do planeta. Esta situação só foi descoberta na segunda metade do século XV, já depois da viagem da Barca de Gil Eanes.

Apesar de ser, na altura, um instrumento um pouco “desnorteado”, esteve seguramente presente nesta viagem já que, Gil Eanes partiu de Lagos em direção ao Bojador, contornou-o, deu a volta e voltou a Lagos, aparentemente sem grandes problemas. Até porque a navegação que se fazia de momento, era de Rumo e Estima o que exigia uma Agulha de Marear.

São estes os instrumentos possíveis de elencar como usados por Gil Eanes. Todos os outros inventados ou adaptados de já existentes para outros usos, só apareceram mais tarde com o advento da navegação astronómica que só começou a ser praticada pelos portugueses não se sabe bem quando e essa data é origem de forte controvérsia em Portugal (Almirante Gago Coutinho, Comandante Teixeira da Mota, Comandante Quirino da Fonseca, etc.) e internacionalmente (Portugal, Espanha, Itália, Brasil, etc.). Há quem defenda que só foi depois da morte do Infante D. Henrique, que não se podem considerar como observações astronómicas náuticas as que foram feitas em terra, embora integradas em expedições navais, ou que foram iniciadas em meados do século XV (c.1450).

De qualquer forma sabe-se que não foi antes da “Barca de Gil Eanes” ultrapassar o Cabo Bojador em 1434.

(Fonte: “Medir Estrelas” – Estácio dos Reis p. 30)

 

7.2 – Cartografia

A navegação era, no tempo de Gil Eanes, feita basicamente com Carta e Bússola (ao que se chamava Rumo e Estima) e, acessoriamente, se e quando necessário, com o recurso ao Prumo de Mão, principalmente em manobras de fundear e que fornecia dados de profundidade do mar.

Este método foi desenvolvido nas águas do Mediterrâneo e consequentemente também passaram para o Atlântico Mediterrâneo onde se foi, quando e se necessário, adaptando às condições do novo mar e, também com o início dos Descobrimentos Portugueses passaram a ser integradas no conhecimento, a maioria das vezes empírico, dos marinheiros acompanhando-os em direcção ao Sul.

Durante a primeira metade do século XV, quando os Portugueses iniciaram as viagens de descoberta e exploração da costa do Noroeste de África, estava em pleno uso o método de Rumo e Estima para determinar o posicionamento de uma embarcação numa Carta Portulano cruzando a distância estimada do percurso efectuado com o rumo, com base na agulha de marear.

Era um método meio certo e meio errado, já que o rumo tinha como base a indicação da agulha de marear, cujo Norte é o magnético (pondo de lado o erro da declinação que, na altura, nem se sabia o que isso era) e um ponto no cruzamento com a distância percorrida que era determinada pela experiência e fantasia do piloto. Era o chamado “Ponto de Fantasia”. Podia bater certo mas teria sempre um erro de precisão que, em viagens curtas e à vista da costa não teria grande importância (caso do Mediterrâneo) ou, ao contrário, podia levar a que o navio se perdesse por acumulação de erros, em viagens de alto-mar sem vista da costa (caso das viagens no Mar Oceano).

Só com o advento dos Instrumentos astronómicos (Quadrante, Astrolábio, etc.) é que se conseguiu determinar a latitude que passou a ser introduzida no Portulano, em conjunto com o rumo e com a estima da distância “fantasiada” pelo piloto. Conseguia-se assim uma maior aproximação à realidade, com o senão de que se continuava a trabalhar com cartas portulano que tinham sido desenhadas com base em distâncias estimadas e rumos magnéticos que, ao lhe serem aplicadas escalas de latitude, se revelaram necessitadas de adaptação geométrica.

 

Portulano-Época Descobrimentos.png

Carta Náutica Portuguesa 

Esta Carta é uma “Carta Portulano” que mantem as “loxodrómicas” (loxodrómica é a linha que, à superfície da Terra, faz um ângulo constante com todos os meridianos, que nesta carta estão representadas pela “teia de aranha” formada pelas diferentes linhas que saem dos diferentes Rumos das Rosas dos Ventos e se cruzam entre si), à qual foi aplicada uma escala de latitudes passando a ser, tecnicamente, uma “Carta Náutica”. (Carta de Latitudes?)

Biblioteca Estense, Modena

Portulanos

O “Portulano” aparece pela primeira vez com o “Périplo do Mar Eritreu” possivelmente no séc. V BCE e era um conjunto de orientações técnicas escritas sobre a navegação no Oceano Índico Ocidental.

Para o Mediterrâneo, aparece o primeiro “Portulano” no séc. I CE (alguns fragmentos do “Périplo do Mar Interior”) e por volta do séc. XIII aparece um roteiro chamado “II Compasso da Navegare”.

Na realidade, estes Portulanos não o eram no conceito que hoje lhes damos pois eram documentos escritos com instruções de navegação e outras. Hoje, a este tipo de instruções damos o nome de “Roteiros” (que ainda são editados em muitos países do Mundo, essencialmente para navegação costeira).

Com a generalização da “Agulha de Marear” os Portulanos (Roteiros) passaram a incluir informação sobre os rumos magnéticos e as distâncias entre os portos das principais rotas.

O passo seguinte terá sido o desenho das costas e dessas rotas visualizando graficamente o que estava escrito, passando a haver um mapa que acompanhava as instruções escritas. Um pouco como os Mapas Turísticos de hoje. E também a cores. Mas sem publicidade!

É interessante como esta prática se manteve até hoje, embora hoje as Cartas Náuticas e os Roteiros apareçam separadamente, por vezes editados por entidades diferentes mas, em Portugal, foi uma prática que, ao ser adoptada, segundo dizem possivelmente por iniciativa do Infante D. Henrique, depois da passagem do Cabo Bojador, quando a informação começava a ser muita e se apresentou a necessidade de haver uma forma de a arrumar compreensivelmente, se estendeu até hoje.

A prova de que essa organização da informação ligada à navegação se manteve é, por exemplo, o “Regimento de Pilotos e Roteiro das Navegações da Índia Oriental “editado em 1642, já em pleno século XVII, pelo Cosmógrafo Real, em Lisboa.

Roteiro_Capa.jpg

Capa do “Regimento de Pilotos e Roteiro das Navegações da Índia Oriental “

editado em 1642, já em pleno século XVII

 

Roteiro_Texto.jpg

Uma folha do mesmo Roteiro anterior com instruções a seguir para entrar nos portos do Porto e de Aveiro com os devidos cuidados.

 

Roteiro_Carta.jpg

Do mesmo roteiro, a “carta portulano” das barras do Porto (à esquerda) e de Aveiro (à direita), em que estão referenciados os rumos com base numa Rosa dos Ventos de 16 rumos (o Norte é assinalado por uma Flor do Liz do lado esquerdo da rosa) e ao longo dos rumos e espalhados pelo mar encontram-se as profundidades encontradas em cada um dos possíveis percursos.

O roteiro português mais antigo que se conhece é o que foi transcrito no manuscrito de Valentim Fernandes e que se supõe ser ainda do séc. XV, segundo o Comandante Fontoura da Costa. O roteiro começa com a frase «Este livro he de rotear…»

Esta divagação sobre Roteiros e Portulanos, não se enquadra na “Barca de Gil Eanes”, pois ele não usou nenhum roteiro escrito, que ainda não havia, embora deva ter usado uma espécie de  Portulano com as rotas já percorridas até à data de 1433. Possivelmente o “roteiro” era “oral” e terá sido obtido em conversa com outros navegantes (e deviam de ter sido muitos, pelo menos 14) que já tinham feito aquela viagem.

Carta Pisana.png

Carta Pisana – a mais antiga carta portulano ainda preservada (já em mau estado), datada dos finais do séc. XIII. Atualmente pertence à coleção da Biblioteca Nacional em Paris

A “Carta Portulano” aparece primeiramente no Mediterrâneo e baseia-se no processo de navegação chamado de “rumo e estima” em que eram seguidas as linhas que saiam dos diferentes rumos da agulha de marear e a distância percorrida era “estimada”.

As cartas eram desenhadas sobre pergaminho, que foi o único material encontrado até hoje neste tipo de cartas. Os dados para o desenho das costas eram os que constavam dos roteiros e/ou os que eram fornecidos pelos navegantes.

A carta era iniciada pelo traçado da “teia” das linhas de rumo que saiam das Rosas-dos-ventos existentes pelo menos uma central, por vezes mais duas laterais e por vezes algumas mais e depois era traçada a linha da costa a que a carta dizia respeito.

Portugal teve uma forte contribuição com cartógrafos para a feitura das mais bem elaboradas cartas no mundo dos Descobrimentos, cartas essas hoje conhecidas graças ao facto de terem sido elaboradas para deleite e contemplação e por isso conservadas de geração em geração nas famílias e depois preservadas em museus.

Essas cartas nunca foram usadas a bordo. A sua feitura devia de repousar nas informações dos navegantes passadas aos cartógrafos que depois as “desenhavam” e embelezavam consoante a sua inspiração e destinavam-se às classes possidentes que, muito possivelmente as tinham encomendado para deleite próprio ou para oferta de agrado a outras pessoas. Estas foram as que passaram para a posteridade.

É com certeza verdade que os pilotos e os capitães das embarcações necessitavam, para facilitar as viagens, da informação anterior das mesmas, quando a havia. Mas também é certo que as cartas desenhadas pelos cartógrafos, em termos de informação útil só a davam a “traços largos” já que os “traços finos” desapareciam no emaranhado de informação.

Ao contrário dos “Roteiros” a informação útil destas cartas era bastante menor. Possivelmente os pilotos a bordo tentavam fazer esboços para seu uso pessoal, que lhes fossem úteis para a navegação e possivelmente faziam-no a um pormenor bastante fino que não era possível transferir posteriormente para as grandes cartas elaboradas nas “oficinas” de cartografia, por falta de espaço útil nessas mesmas cartas.

Estes desenhos de base do pessoal navegante naturalmente não seriam mais do que esboços e o material de suporte não seria impermeável à água salgada e à degradação pelo salitre. Seria com certeza pergaminho de baixa qualidade. Por isso desapareceram!

Existe um problema com um possível portulano que pudesse existir com base em todas as viagens realizadas pelos diferentes navegadores do Infante até ao Cabo Bojador, anteriores a 1433.

O livro “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499”, no capítulo II com o título de “Tábuas, Cartas e Roteiros” da autoria de Inácio Guerreiro ao falar das Cartas, no ponto 2.1, pág. 286, diz o seguinte: (cópia directa do livro)

NMAN 1.jpg

 

NMAN 2.jpg

Se as conclusões são estas, que o Infante D. Henrique só iniciou a elaboração de uma Carta Portulano que abrangesse a descida da Costa Ocidental de África em 1443 segundo uma carta privilégio mandada passar por D. Pedro, Regente do Reino em nome de seu sobrinho D. Afonso, carta essa posteriormente corrigida em menos 400 léguas em 1446, segundo Zurara, então Gil Eanes em 1434 passou o Bojador só com informações verbais, sem portulano algum. E de facto, só a partir da passagem do Bojador é que começou a haver o cuidado de cartografar o que era descoberto.

 

Resumindo

Gil Eanes, na sua Barca, quando passou o Cabo Bojador, deveria de levar com ele os seguintes instrumentos de apoio à navegação: um ou vários Prumos de Mão, uma ou várias Ampulhetas, uma ou duas Agulhas de Marear e, quanto muito um Esboço da Costa e uma Mão Cheia de Informações Orais prestadas pelos navegadores anteriores a ele pois, conjugando as anteriores informações, seria o que estava disponível. Possivelmente também levava um Piloto já conhecedor da rota até ao Cabo Bojador.

 

 

Quatro Cartas Portulano elaboradas a partir do meio do século XV até finais do mesmo século, que já contêm informação sobre as viagens no Atlântico, efectuadas pelos Portugueses.

 

1 – 1448 – Andrea Bianco

Carta 1-Andrea Bianco - 1448.jpg

Carta de Andrea Bianco de 1448

É a primeira representação cartográfica dos descobrimentos geográficos portugueses para além do Bojador.

Biblioteca Ambrosina, Milão

2 – 1471 – Anónimo

Carta 2- Anonimo - c. 1471.jpg

Carta Náutica Portuguesa de c. 1471.

Estudada por Fontoura da Costa numa edição da Agência-Geral das Colónias de 1940, esta carta anónima foi a primeira das três cartas quatrocentistas portuguesas de que houve conhecimeno em Portugal apenas a partir de 1938

Biblioteca Estense, Modena

3 – 1483 – Pedro Reinel

Carta 3- Pedro Reinel - 1483.jpg.png

"Pedro Reinel me fez": Portulano de Pedro Reinel (c. 1483), actualmente nos “Arquives Departementales de la Gironde”, em Bordeaux.

 

 4 – 1492 – Jorge de Aguiar

Carta 4 - Jorge Aguiar 1492.jpg

Carta Náutica de Jorge Aguiar de 1492

É a única carta portuguesa conhecida do século XV que tem uma legenda de autor com a data em que foi desenhada. A sua existência nos Estados Unidos da América foi revelada em Coimbra em 1968.

Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale University

“Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499” Inácio Guerreiro

E por agora é tudo.

 

Um abraço e...

Bons Ventos

 

(continua)

 

 

17.04.23

75 – Modelismo Naval 7.3.7 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

ib-04.1.jpg

(Continuação)

Caros amigos

 

6.2.3 – O “Bojador” 2

Vejamos agora qual é o “Estado da Arte” no que diz respeito às ajudas á navegação, no que toca á informação disponível sobre a situação meteorológica geral e sobre a oceanografia (correntes, profundidades, escolhos, etc.), também de uma forma geral.

 

Elementos Meteorológicos e Oceanográficos atuais

 

Os dados que são apresentados nos mapas seguintes, foram colhidos do site cuja morada é a que indico abaixo: para determinadas zonas 

Site ”heart”: https://earth.nullschool.net/pt/

que qualquer um pode consultar, se tiver um telemóvel (ou computador), em qualquer ponto do Globo e apresentam os valores para os ventos e correntes não ao minuto mas sim quase ao segundo. Seria uma boa “Ajuda à Navegação” para Gil Eanes – mas ele não tinha Tm.

 

Condições em 03/04/2023  

 

Circulação Atmosférica

1-Atlantico Norte (1).jpg

1 – Atlântico Norte – Circulação Atmosférica na zona que abrange o Cabo Bojador

1 - O ar marítimo, (tendo como referência o ponto vermelho ao Sul de Portugal, que se encontra no canto superior direito do mapa acima, situado na Costa Ocidental de África e que tem as coordenadas aproximadas do Bojador), circula essencialmente do Norte para o Sul descendo quase ao sul de África com três ramificações a saber:

  1. Uma, por alturas das Canárias que deriva nitidamente para uma direção de Este para Oeste que se prolonga até às costas das Caraíbas/América Central;
  2. Outra, continua de Norte para Sul até às paragens do Arquipélago de Cabo Verde, onde sofre uma divisão em dois ramos, continuando um para o Sul e;
  3. O outro toma a direcção de Este para Oeste até às costas do Brasil derivando depois para Noroeste onde se volta a encontrar com o ramo referido em 1 por alturas da Florida.

 

 

Regime de Ventos

2 - Atlântico Norte (1).jpg

2 – Costa Noroeste de África – Canárias/Bojador – Sentido dos Ventos Marítimos, N/S e do Vento do Sahara E/O

 

2 -Devemos atender que a navegação de Gil Eanes era a mais arrimada possível à costa pois, numa altura em que se navegava por conhecenças, o perder a visão da costa era problemático.

Esta opção restringia a fuga de alguns perigos, que por vezes afloravam no mar (visíveis mas por vezes detectados só muito perto para se poderem evitar) que podiam levar à perda dos navios.

Neste caso, os navegantes deviam passar as Canárias por dentro ou seja entre o arquipélago e a costa de África onde o regime de ventos era do Norte para o Sul, que aceleravam canalizados entre o arquipélago e a costa. Para baixo todos os santos ajudam mas podiam “ajudar” demais.

E esta predominância do sentido Norte-Sul nos ventos junto à costa dificultava em muito o “regresso a casa”, pelo menos enquanto os navios tivessem só “aparelho redondo”

 

 

3-Atlântico Norte.jpg

3 – Costa Noroeste de África – Canárias/Bojador –  Sentido dos Ventos  Predominantes – NNE/SSO e ENE/OSO

3 - A passagem por fora das Canárias era na altura impensável embora fosse possível, mas os navios sujeitavam-se a ser arrastados para onde não queriam ir e perderem assim o seu rumo, que os afastaria cada vez mais da costa, o seu único ponto de referência. Isto conjugado com o regime de correntes existentes na zona tê-los-ia levado às costas do Brasil. Os ventos predominam vindos do quadrante Norte com maior ou menor intensidade no sentido do Sul havendo, no entanto, numa passagem por fora o perigo de serem apanhados pelos ventos que se dirigiam para SO diretos ao continente Americano que, na altura, ainda não estava descoberto (achado?)

Estes são os ventos que, mesmo tendo em conta todas as “alterações climáticas” atualmente existentes possivelmente não seriam muito diferentes dos da altura, com excepção da “poluição” de que podiam ser portadores que era muiiiiiiii…to inferior á de hoje.

 

 

Regime de Correntes

4 - Atlantico Norte.jpg

4 – Costa Noroeste de África – Canárias/Bojador – Sentido das Correntes Marítimas Principais ENE/OSO e ESSE/ONO

4 – As correntes na zona já não têm a tendência para o Sul, mas sim para Oeste o que tornaria a passagem por fora das Canárias mais problemática já que, conjugadas com o regime de ventos, iam levar os navegantes diretamente para as costas do Brasil (o que não podia ser pois Pero Vaz de Caminha não estava matriculado naquela tripulação – ainda não tinha nascido – e também porque nós íamos perder a famosa carta a D. Manuel I).

Praticamente a não ser por alturas das Guinés em que se inicia uma corrente junto à costa que ondula para o Sul que, sensivelmente a partir do paralelo 10֯ N, se começa a desenvolver e “desagua” nas correntes equatoriais que correm de O para E empurrando as embarcações para dentro do Golfo da Guiné, levando-as na direção de E, virando depois para Sul até sensivelmente o paralelo 16 ֯ S, onde se começam a fazer sentir os efeitos da corrente fria de Benguela, que corre do S para o N, vinda de Cape Point, Península do Cabo, África do Sul, localizado +/- a 34 ֯ S.

E é tudo sobre os ventos e as correntes que podem ter influenciado a rota de Gil Eanes.

 

As “Pilot Charts”

Hoje em dia, qualquer um, desde que saiba manobrar instrumentos digitais e electrónicos e, minimamente ler uma carta marítima, consegue orientar-se nos oceanos e chegar a bom porto. Na altura, ainda no começo da aventura dos Descobrimentos, tudo era muito novo, ainda não descoberto ou suficientemente estudado de forma a ter uma aplicação prática no governo das embarcações que, muitas delas, abriam caminhos no mar pela primeira vez.

 

Carta Atlantico 1 Post74 (1).jpg

5 – “Pilot Chart” do Oceano Atlântico Norte e Mediterrâneo, a solução de 3 em 1 e mais qualquer coisa

Carta piloto das condições médias do mês de Janeiro

Carta Atlantico 2  Post74 (1).jpg

 

6 - Sector da Costa Ocidental de África que estivemos a analisar, entre o Cabo Espartel (Marrocos) e Dakar (Senegal)

Carta Atlantico 3  Post74.jpg

7 – “Manual de Instruções para uso da “Pilot Chart

Hoje em dia, as “Pilot Charts” são uma espécie de “Quase tudo em 1”. Estas cartas não são feitas para trabalharem sozinhas mas sim em conjunto com os outros meios de navegação existentes nas embarcações.

Exibem de uma forma gráfica as médias de séries de dados obtidos ao longo dos anos mensalmente, em meteorologia e oceanografia, que são trabalhados por potentes computadores que traçam as cartas mensais que servem de ajuda aos navegadores na selecção das melhores e mais rápidas rotas.

Apresentam rica e variada informação sobre vários aspectos meteorológicos e oceanográficos apresentados em cartas para cada um dos meses do ano, sendo sistematicamente atualizadas.

As principais informações que contêm são codificadas nas cores de preto, vermelho, verde e azul , e dizem respeito a saber:

 

Tempo Local, Variações Magnéticas, Principais Rotas;

Altura das Ondas, Vendavais, Ciclones Extratropicais, Temperaturas do Ar;

Correntes Oceânicas, Ciclones Tropicais;

Rosas-dos-ventos (com a respectiva explicação do seu funcionamento), Pressão Atmosférica, Visibilidade.

 

Uma Ponte de Comando.jpg

Uma “ponte” de um navio moderno – Tudo em dois

Normalmente uma "ponte" deste tipo tem, projetadas para bombordo e estibordo, duas "asas" ao ar livre que têm consolas com duplicação de alguns dos instrumentos das consolas interiores e que são usadas para manobras do navio mais  sensíveis pois, os locais, possibilitam a visão direta dessas manobras (p.e. manabras de atracação ao cais)

 

Todas a informação disponível em cima da hora bem como as cartas atualizadas, podem ser carregadas através da internet (ou mais propriamente, compradas) dependendo da maior ou menor sofisticação do equipamento informático existente nas embarcações (equipamento esse que pode incluir software de gravação de tudo o que se passa na embarcação tais como rotas, acidentes, incidentes de percursos, ventos, correntes, etc. que, no seu conjunto, constituem o "Diário de Bordo" da embarcação) permitindo sectorizar parcelas mais pequenas conforme as necessidades de cada um, através da expansão/diminuição dos displays dos monitores. Isto, aliado aos sofisticados telefones de satélite, “transponders”, radares de meteorologia e de detecção de proximidade, sondas, GPS, pilotos automáticos, etc. Uma panóplia de equipamentos que, comparado com a que existia em meados do século XV para uso dos navegadores portugueses tem uma diferença abismal. Para melhor, claro!

 

Bons Ventos e…

 

Um Abraço

 

 

15.04.23

74 – Modelismo Naval 7.3.6 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

ib-04.1.jpg

(continuação)

 

Caros Amigos

Um Aviso à Navegação

Quando o 1º Tenente Alexandre Magno de Castilho andou pelas “bandas” de África (década de 80 do século XIX) a fazer o levantamento hidrográfico e a descrição da Costa Ocidental Atlântica, tinha como porto de origem o porto de Lisboa.

Para calcular a longitude da localização de vários pontos ao longo do percurso, o método usado nessa altura era o de 1 cronómetro (ou dois para comparar atrasos ou adiantamentos dos mecanismos, ou até mesmo três para ter um testemunho de qual dos outros dois se adiantou ou atrasou), acertados com a hora aferida num representante de um Observatório Astronómico do local de saída, que eram mantidos a funcionar na perfeição e cuja hora era comparada com a hora local determinada por Sextante pela altura dos astros.  Na prática, um cronómetro com a hora local de origem, a leitura das “alturas dos astros” por sextante, um almanaque de navegação e a consulta de algumas tabelas trigonométricas, permitiam aos navegadores deduzir as suas coordenadas a partir da posição do Sol, da Lua, dos planetas visíveis, ou de qualquer uma das 57 estrelas de navegação tabuladas (a qualquer momento elas são visíveis acima do horizonte).

Greenwich 1.jpgRoyal Observatory Greenwich England

A linha que nos divide...

Mas, também nesta altura os Estados ainda não se tinham entendido sobre estas questões de “Cosmografia/Cartografia/Fusos Horários” e cada um (qualquer estado que se prezasse, por todo o mundo) tinha o seu próprio meridiano de referência. entre eles Portugal com um Observatório Astronómico instalado em Lisboa. Portanto, o navio em que se encontrava o 1º Tenente tinha nesta viagem a hora acertada pelo meridiano de Lisboa. Nesta altura já existiam na Europa, entre outros, os meridianos de Madrid, Paris e Londres (Greenwich) este último tendo sido aceite como Marco Zero Mundial, depois de ter sido adoptado por várias nações em 1884, dois anos antes da publicação deste livro.

Por haver a possibilidade de serem usados mapas com diferenças de referência de longitude base, por exemplo, Paris e Greenwich, em relação ao Observatório de Lisboa, o 1º Tenente alerta para a necessidade de, quem os usar para acompanhar este Roteiro, dever ter em atenção que o Observatório de Lisboa se encontrava a 11֯ 28’ 30’’ para o Oeste do Observatório de Paris e a 09֯ 8’ para Oeste do de Greenwich. Valores que devem ser tidos em conta em mapas com essas longitudes zero.

Greenwich 2.jpg

Royal Observatory Greenwich England

...e o relógio que nos une

 

Para nós, que vivemos nos tempos modernos e usamos o GPS para encontrar tudo e mais alguma coisa devemos, para localizar alguns dos pontos referidos nas cartas modernas atuais, de ter também em conta que o Meridiano de Referência Internacional (IMR) referente ao posicionamento por satélite está colocado a cerca de 5´´,3 do meridiano de Greenwich, para Este. este aviso não é o 1º tenente que o faz no Roteiro. Sou eu!

Além deste cuidado, o 1º Tenente diz-nos que os valores que se devem considerar, para todos os ventos e correntes, e todos os rumos, marcações e direcções da costa, quando não se declare o contrário, são os verdadeiros, não se entrando em linha de conta com o Desvio Magnético.

Também para a altura das marés consideram-se as profundidades iguais á maior baixa-mar, quando não houver outra indicação.

 

Vamos então analisar a Costa Ocidental de África entre os pontos conspícuos a Norte e a Sul do Cabo Bojador.

 

Capítulo II

65

Texto 65 (1).png

66

Texto 66 (1).png

Capítulo III

71

texto 71 (1).png

72

Texto 72 (1).png

73

Texto 73 (2).png

 

Notas prévias

  • Milha Náutica (Nm) = 1.853,25 m;
  •  é uma unidade de medida de velocidade equivalente a uma milha náutica por hora, ou seja 1,853,25 km/h
  • Visibilidade no Mar, à vista desarmada, em óptimas condições = 5 a 6 Km;
  • Quarta é cada uma das 32 partes em que se considera dividida a Rosa dos Ventos o que corresponde a um quarto de 45֯ = 11֯ 15’; É o mesmo que ponto subcolateral; Em alguns diários de bordo antigos (e em filmes) é usual aparecerem indicações e comandos de,  p.e. – Sul, quarta de Sudoeste, ou S4SO, – o que equivale ao ponto subcolateral SSO; Marinhices!

 

Rosa dos Ventos CCS (1).jpg

Rosa de Ventos com os pontos Cardeais, Colaterais e Subcolaterais

 

O que o 1º Tenente diz, nesta descrição da costa e do mar antes e depois ou seja do numa viagem do Norte para o Sul do Cabo Bojador (26 ֯ e 48’ N) é, resumindo e traduzindo do Marinhês para Português, o seguinte:

Das folhas do Roteiro

Capítulo II

  • Até ao paralelo de 26 ֯ e 46’ N a costa que fica a Norte deste paralelo é maioritariamente de areia;
  • Neste paralelo, começam uma série de rochedos que se projectam para as direcções de SSO e de OSO;
  • Durante 38 Nm ou, se quiserem até 3 Nm do Falso Cabo Bojador (que fica logo a seguir ao verdadeiro Cabo Bojador para Norte, na carta de localização anteriormente apresentada) existe um baixio;
  • Este baixio é na sua maioria composto por areia e projeta-se no sentido do Norte e durante 1,5 Nm, tendo na sua ponta um recife de pedra;
  • A 6 Nm para ONO existe um outro baixio à profundidade de 14m e entre ele e o anterior baixio a profundidade achada é de 30 m;
  • O Cabo Bojador encontra-se logo a seguir, a 25 Nm para Oeste quarta de Sudoeste do Falso Cabo Bojador e a 140 Nm para Sudoeste quarta de Sul do Cabo Juby (já antes ultrapassado ficando na “fronteira” entre Marrocos e o Sahara Ocidental, mesmo em frente do Arquipélago das Canárias);
  • Aqui, o 1º Tenente informa que este foi o ponto de paragem dos portugueses no caminho das Descobertas, por “Parecer muito estranha aos navegantes apartarem-se do rumo que levavam (para o Sul) e seguirem outro tanto para O” e continua;
  • O Cabo Bojador é baixo, pedregoso e coroado na parte meridional, de dunas de areia. Segundo o almirante Roussin (almirante Francês que esteve nas Guerras Liberais em Portugal), quando o cabo é visto pelo norte, aparece uma praia de areia vermelha com declive suave para o mar em que a extremidade que se projecta para oeste (a ponta do cabo) que é muito baixa, forma uma pequena baía com o rochedo seguinte a Sul. Este rochedo eleva-se, na sua parte oriental a 23 metros de altura sendo o ponto mais notável do cabo; (Interessa saber que atualmente existem dois faróis no Cabo Bojador: um na altura de 23m  e outro rés vez o mar, na parte mais baixa da ponta do cabo. Isto acontece porque na zona existem muitos nevoeiros e nuvens baixas que, por vezes, encobrem os flashes de luz do farol mais alto, havendo a alternativa de detetar o mais baixo a nível do mar. Por vezesf unciona mas outrasvezes nem um nem outro se conseguem localizar);
  • Segue-se uma informação sobre a localização do Sahara que é confusa pois informa que os Árabes têm, como início deste deserto, a zona do Cabo Bojador quando, na realidade ele se inicia junto à costa, por volta de Agadir (Marrocos) muito mais a Norte, e termina por volta de Dakar (Senegal), muito mais a Sul;

Ventos

As informações gerais sobre ventos e correntes nesta zona abrangida pelo sector 2 do Roteiro e que nos interessa, diz respeito aos ventos e correntes existentes, que serão complementadas pelas do Sector 3, a Sul do Cabo Bojador apresentadas a seguir;

  • Quanto aos ventos para Norte do Cabo Não, serão predominantes do quadrante de NE donde sopra oito ou nove meses seguidos de Fevereiro ou Março até Dezembro. Nos outros três meses sopra vento do S e do SO que é que é a altura de chuvas e de mau tempo;
  • Para Sul do Cabo Não, em Dezembro, o vento prevalecente é de NNE ou NE causando bom tempo. A partir de Janeiro o vento, muda de sector para NNO e O com tempestades rijas que levantam vagas alterosas. O vento é tanto mais forte quanto mais perto da costa sopra;
  • Um aviso aos navegantes segue-se e diz que se deve fugir da costa de Marrocos de Outubro a Abril que são os meses péssimos do ano pois além do mais são muito atreitos a nevoeiros quase constantes;

Correntes

  • Quanto às correntes, correm normalmente de N para S em toda a Costa Ocidental de África variando um pouco para SE ou para SO desde o cabo de Cantim até à ponta Hadid e daí para Mogador (Actualmente Essaouira que é uma cidade da costa sudoeste de Marrocos) vão na direcção de S4SE, sendo fracas perto de Mogador, seguindo para N junto à costa e bifurcando um pouco mais para fora, no sentido de SO;
  • Entre Mogador e o Cabo Bojador correm para S e O, com uma velocidade de 1 Nó, numa distância de 3 a 6 Nm da costa e com uma maior força junto à costa;
  • A corrente que passa junto à costa em Marrocos, não é sentida perto de Santa Cruz pois é desviada, pelo cabo Gué (Marrocos) para 7 ou 8 Nm da costa;
  • Esta corrente, por volta do cabo Juby onde se desvia mais para terra, passa entre ela e as Canários sendo a sua velocidade de 1 Nm e ¼ e em frente ao Cabo Bojador, passa a ser de 1 Nm.

                                                                    

Capítulo III

Do outro lado do Bojador, onde Gil Eanes lançou um bote ao mar e foi a terra (mais propriamente à “areia”) onde a única coisa viva que encontrou foram rosas de Santa Maria, que colheu e colocou num barril cheio de terra (novamente, mais propriamente “areia”) que levou ao Infante D. Henrique como prova da passagem, a paisagem era igual à de antes do Cabo. Nem uma pegada nem o rasto de um camelo. Vejamos então o que o nosso 1º Tenente viu:

  • A terra recua e forma uma abra (uma pequena enseada) à qual os ilhéus naturais das Canárias chamam “Ancoradouro dos Pilones” ou “da Bumbalda”;
  • A profundidade encontrada nesta zona anda pelos 16 a 18m e é uma zona bastante calma. Nesta enseada desaguam três riachos e, para sul do terceiro riacho, ergue-se a barreira da Bumbalda;
  • Mais à frente, encontra-se o banco do Malouine, pelos 25֯ 38’ N e 5֯ 20’ 22’’ O, a 21 Nm do Cabo Branco e a 1.600 m da costa. Sobre este banco do Malouine, que tem 216 m de comprido, o mar rebenta com grande fúria, quando a maré está baixa (seria aqui a zona, referenciada pelos marujos do século XV como o mar a ferver?);
  • O 1º Tenente usou cartas elaboradas anteriormente noutras expedições (Inglesas e Francesas e penso que Holandesas que também andaram por aqueles mares), durante o século XVIII, que estavam em uso na Marinha Portuguesa e diz que a carta de Van Kelen (Holanda) assinala a 25֯ 38’ N e 7 ֯ 23’ 38’’ O, um baixio que possivelmente nunca existiu, já que variados barcos já o tinham procurado e nunca o encontraram;

Carta de Van Kelen (1).jpg

 

Carta da “Guiné e Brasil” desenhada nas oficinas de impressão de Van Keulen, Cartógrafo, Amsterdam, Holanda, século XVIII

  • A carta mencionada por Alexandre Magno de Castilho, pode bem ser a que encaixava no topo desta que continha, na sequência , o Norte de África e o Sul da Europa. Não a consegui arranjar!
  • A descrição da costa a Sul do Bojador continua, dizendo que ela se estende por 64 Nm na direcção S 4 ¾ SO até Penha Grande que fica a 25º 6’ N, costa esta que tem uma altura por volta de 150 m, muito superior ao normal de 50/60 m o que se destaca como ponto de referencia que se identifica facilmente;
  • Esta elevação é coroada por rochedos achatados e existem bastantes pequenas praias na sua base
  • A latitude que se indica neste roteiro para a Penha Grande, difere bastante da que é indicada nas cartas antigas, sendo no entanto a única referência de monta existente na zona e, por isso deve ser mesmo a Penha Grande indicada nas tais cartas antigas.

E é isto o que se pode extrair do roteiro analisado, no seu trecho do antes, durante e depois do Cabo Bojador, um percurso que apresenta algumas dificuldades difíceis de superar para quem navegue nas águas costeiras desta zona.

Tendo analisado a viagem de Gil Eanes à luz dos conhecimentos dos finais do século XV, altura em que Gil Eanes fez esta viagem e aos do século XIX quando o 1º Tenente Alexandre Magno de Castilho fez o levantamento da costa Ocidental de África, resta agora, e à luz dos conhecimentos atuais, do século XXI, quando qualquer veleiro de turismo pode percorrer esta costa com base nos sofisticados meios de navegação e de comunicação hoje existentes, analisar dois pontos que em muito podem ter contribuído para algumas das hesitações e dos receios dos marinheiros do Século XV que hoje são muito melhor conhecidos: o regime de Ventos e o regime das Correntes oceânicas existentes na zona do Bojador.

 

Uma Escuna

Uma Escuna.jpg

“Uma Escuna” que podia ser a "Conceição"

Este levantamento foi feito num navio da armada Portuguesa que, segundo o 1º Tenente Alexandre Magno informa no seu livro, ele comandava em 1852 numa viagem a Lisboa e chamava-se “Conceição” Era uma “Escuna” e possivelmente devia ter como porto base, para este trabalho, o de Luanda em Angola.

Sendo uma “Escuna”, teria uma armação parecida com a deste quadro, com 2 mastros, sendo o da frente o “traquete” que envergava pano redondo, sendo a inferior a vela “do traquete” ou “papa-figos”, a seguinte  a “vela do “velacho” (que aparece nesta pintura, dividida em duas – chamadas gáveas partidas, inferior e  superior - um tipo de armação que começou a ser usada  em Portugal, posteriormente a 1852) e a última, a do “joanete de proa”.

O mastro da “mezena” podia ter várias configurações mas a mais normal era que envergasse dois latinos sendo o inferior (latino quadrangular) a “vela de ré”, e a superior (latino triangular) um “gave-tope”, um tipo de velas que equipou os nossos “Lugres Patacho” bacalhoeiros.

Eram navios ligeiros, com baixo calado e muita agilidade e elegância e necessitavam de uma pequena tripulação. O ideal para o tipo de trabalho que estava a ser executado. A “caravela” da altura! Houve escunas com mais mastros e com outros tipos de armação ao longo dos tempos.

No próximo Post vamos analisar esta costa com GPS.

(continua)

 

Bons Ventos e…

Um abraço.