17.09.23
83– Modelismo Naval 7.3.15 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”
marearte
(continuação)
Caros amigos
9 - Conclusões, (inconclusiva) segundo a minha perspectiva, sobre a “Barca de Gil Vicente”
Se bem se lembram, esta série de posts foi iniciada com o sentido de procurar provas sobre o tipo de barca usada por Gil Vicente já que, apesar de a maioria apontar como sendo uma barca tipo nórdica com vela redonda, haver quem, mais logicamente, defenda de que foi uma barca tipo mediterrânica, com vela latina.
Vou aqui alinhar algumas convicções (conclusões inconclusivas) que me levam a acreditar que esta barca envergava pano latino e já era um protótipo da caravela, se não mesmo uma caravela inicial.
A história tem várias verdades (todas elas fundamentadas) e quanto mais antiga é, mais se arrisca a ser posta em causa por novos factos, novas provas ou novas interpretações.
Ao longo desta série de posts dedicados à “Barca de Gil Eanes”, afirmei repetidamente que não sou um historiador nem tenho pretensão a tal. A minha “demanda” tem um fim mais prosaico: tentar construir um modelo desta barca que seja o mais próximo possível do real. E penso ter conseguido. Esta é a “minha verdade” que considero ser mais lógica do que a que nos foi apresentada desde os tempos da Escola. E não vai contra nenhuma outra. É a minha.
A – Insofismavelmente tratava-se de uma “Barca” que é assim que Azurara designa a embarcação, mas essa barca não é caracterizada quanto ao aparelho em toda a “Crónica da Guiné”. Mesmo procurando em textos de outros cronistas da época, tal caracterização não se encontra.
A ligação entre barca e aparelho redondo (1) aparece muito mais tarde pela pena de historiadores mais modernos que abordaram a viagem de Gil Eanes baseados nos cronistas coevos. Partiram do princípio que o termo “barca” só podia significar” tipo nórdico” com alguns acrescentos, até à data não comprovados, a não ser que todos os historiadores dizem o mesmo, citando-se mutuamente. Assim, o pano redondo da barca, não sendo baseado em factos, é uma suposição com uma probabilidade de ter alguma certeza.
(1) – Vela redonda – Vela latina – A Vela quadrada ou Vela redonda é o tipo de vela mais antigo da Europa pois foi utilizada do Báltico ao Mediterrâneo nos navios mercantes e militares, que não podiam navegar aproados a menos de 600 em relação à direcção do vento. Rapidamente substituída a partir do século IX no Mediterrâneo pela Vela latina por permitir navegar próximo da linha do vento, a vela quadrada perdurou no Atlântico para lá do Idade Média nos dracares dos viquingues e nas cocas da Liga Hanseática. A Vela Redonda desaparece durante a primeira metade do século XX com o fim da construção dos veleiros, mantendo-se no entanto nos Grandes Veleiros históricos ainda existentes, como a Sagres.
Por outro lado existem “historiadores” não tão ”qualificados” que teimam em ligar a “barca de Gil Eanes” a um outro tipo de “barca”, originária do Mediterrâneo, com “vela latina”. (1)
É uma hipótese que tem muito mais lógica (embora também seja uma suposição) pois o porto de partida desta “barca” foi Lagos, no Algarve, que fica ali mesmo ao lado do Mediterrâneo – onde existiam barcas de pano latino (“Barca do Levante”, “Barca Valenciana”), incluindo em Lagos donde há notícia da “Barca típica de Lagos” (2) – que sofreu, tal como o resto do Algarve e a Costa Ocidental de Portugal, influências de todo o tipo na construção naval (casco liso), navegação (portulanos) e aparelho (velas latinas).
(2) – Esta informação, embora importante não está confirmada embora apareça em muitos textos. Encontrei-a num documento avulso, sobre os Descobrimentos Portuguesas, que já não consigo localizar, em que é citada a obra de Alberto Iria “O Algarve e os Descobrimentos” edição de 1956. Passei algum tempo a pesquisar a referida obra (2 volumes) mas não consegui encontrar esta referência. O que mais perto encontrei foram referências a barcas “ de pesca, do Algarve romano (p.201) ” e “pesqueiras e mercantes, construídas no Algarve, pré-romano e romano (p. 203). Uma nota curiosa que eu desconhecia é que os pescadores do antigo porto da Pederneira (Nazaré) também iam pescar para o Algarve em barcas.
B – Foi Lagos a localidade escolhida pelo Infante D. Henrique a partir de 1418, para estabelecer a base para as viagens de descoberta rumo ao Sul.
Lagos era na altura um porto comercial com uma forte componente de pesca quer de costa, quer do alto. Embora se vissem velas redondas a navegar – de eventuais embarcações dedicadas ao tráfego comercial, podendo ser algumas da propriedade de comerciantes ou armadores portugueses – a maioria eram embarcações de pesca, de vela latina que se chamavam “Barcas Pescarezas” ou “Caravelas Pescarezas” e outras, que vogavam percorrendo a costa algarvia indo, algumas delas, de maior dimensão, que se dedicavam à pesca da “pescada”, pescar até â costa de Marrocos.
Barca da Armação
Existiam também, nas armações do atum as chamadas “Barcas da Armação” que tinham como funções, o cerco do atum na última porta da armação, base para o copejo do mesmo e transporte para terra do atum pescado bem como dos pescadores. Todas estas barcas tinham um casco liso embora também possuíssem proa e popa redondas e eram movidas por velas latinas e remos. É de notar que o Infante D. Henrique tinha o monopólio destas armações, concedido pelo rei.
C – Duas citações lógicas que sustentam esta hipótese:
- “Estudos de Arqueologia Naval” Volume I – João da Gama Pimentel Barata, p.p.220-221, INCM, 1989
“Não dispomos de elementos sobre a arquitectura e aparelho dos diversos tipos de barca, mas parece inferir-se, por contraposição da descrição de Valentim Fernandes (3) da “bartscha”, (outra grafia para barca) que a barca portuguesa teria aparelho latino. Além disso, era a traça mediterrânica que dominava há séculos em Portugal e todas as probabilidades são a favor do aparelho latino. Acresce que a barca foi um dos navios usados nas primeiras viagens de descobrimento da costa de África e, como se sabe, aquelas navegações eram muito mais fáceis com navios de aparelho latino”.
(3) O Manuscrito Valentim Fernandes, também denominado como Relação de Diogo Gomes (Morávia, c. 1450 — Lisboa, 1518 /19), também conhecido por Valentim Fernandes Alemão ou Valentim Fernandes da Morávia, foi um impressor e tradutor germânico), é um manuscrito que se constitui num relato essencial para o estudo do início da navegação marítima portuguesa. Redigido em Latim, compreende três partes:
- "De prima invencione Guinee"
- "De insulis primo inventis in mare Occidentis"
- "De inventione insularum de Açores"
Banha de Andrade divide os textos em duas séries, a africana — [descrição da costa africana (Ceuta à Serra Leoa), com base nos testemunhos portugueses (“Ceuta, cidade num estreito hercúleo em frente a Gibraltar”); descrição de diversas ilhas atlânticas (Canárias, Madeira e Porto Santo, Açores, Cabo Verde, São Tomé, Ano Bom) e mapas também da autoria de V. Fernandes (“Das Ilhas do Mar Oceano”); sumário da Crónica de Gomes Eanes de Zurara (“Crónica da Guiné”); relato de Diogo Gomes de Sintra sobre o descobrimento da Guiné (“Relato Behaim-Gomes”/“De Prima Inventione Guinee”); roteiro para a navegação da Galiza a São Jorge da Mina] —, e a oriental [relato de Hans Mayr sobre a expedição à Índia (1505-1506), talvez ditado por Fernão Soares, capitão da nau em que a viagem foi feita (“Da Viagem de D. Francisco de Almeida, Primeiro Vice-rei da Índia”); descrição anónima sobre a “India” e as Maldivas].
- “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139 – 1499” – Com.te Fernando Gomes Pedrosa, p. 119, Academia de Marinha, 1997
“… Assim, não será arriscado presumir que algumas barcas portuguesas seriam iguais às inglesas (Europa do Norte), como supõem Lopes de Mendonça e Quirino da Fonseca: até ao início do séc. XV, com remos e um mastro de vela redonda; durante o séc. XV, com menos remos ou mesmo sem eles, e um, dois ou três mastros. … Eventualmente terá existido outro modelo de influência mediterrânica, com velas latinas…”
D – Há notícia de que as primeiras embarcações usadas nos descobrimentos foram barcas de pesca, o que tem lógica atendendo a que já existiam localmente, possivelmente algumas com dimensões razoáveis, pois iam pescar para a costa de África.
As dimensões reais da barca que está representada nos planos do Museu de Marinha são: Comprimento de Fora a Fora (inclui o gurupés amovível) – 15,45 m (4); Comprimento de Roda a Roda – 14 m; Boca – 3,9 m).
(4) – Segundo Quirino da Fonseca, apoiado numa citação de Azurara, as barcas raramente excediam os 30 tonéis de arqueação, o que é compatível com as viagens de descobrimento, pois nestas participaram caravelas de 40 e 50 tonéis.
E – No Museu da Santa Casa da Misericórdia na Lourinhã encontra-se (ou encontrava-se pois atualmente não sei se ainda lá está) uma pintura da autoria do “Mestre da Lourinhã” (possivelmente trata-se do iluminador régio Álvaro Pires) datada de c.1510 intitulada “S. João de Patmos”.
Esta obra foi encomendada ao pintor por D. Maria, esposa de D. Manuel I destinando-se ao Mosteiro da Ordem dos Jerónimos na Berlenga (ilha). Devido aos ataques de piratas à ilha bem como à insalubridade da mesma, os monges mudaram-se para o continente para o Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale Benfeito, perto de Óbidos.
Em 1834, no âmbito da reforma eclesiástica, a Ordem foi extinta e o seu património foi incorporado na Fazenda Nacional. Não sei como foi parar ao Museu da Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã.
Embora seja uma obra de arte provavelmente de 1510, representativa da época do Renascimento, não é o interesse pictórico que me levou a colocá-la neste post mas sim a figuração em fundo de embarcações do princípio do séc. XVI que se encontram à esquerda da pintura.
A ilha de Patmos fica no mar Egeu (Grécia) e a paisagem que se encontra a rodear S. João deve ter sido imaginada pelo pintor que vivia em Portugal. As embarcações que ele acrescentou ao fundo eram provavelmente, as que ele conhecia e na altura mais existiam em Portugal e não na Grécia.
“S. João de Patmos”
Uma nau e duas barcas latinas
Estão representadas em primeiro plano uma “Nau” e à esquerda uma “Barca” com pano latino envergado e, curiosamente, com leme de espadela a estibordo, numa altura (1510) em que já não se usava, tendo sido substituído pelo leme axial, que nitidamente não tem.
Ao fundo aparece outra “Barca Latina” possivelmente com o pano ferrado tendo ao lado um “Batel?”.
Isto vem em abono da existência da “Barca Latina” já há algum tempo, levando em linha de conta a “antiguidade” do leme de espadela em relação à data do quadro.
F – “Em 1434, Gil Eanes dobra o Cabo Bojador numa embarcação ainda tradicional, a barca – um pequeno navio de cerca de 30 toneladas, com um aparelho latino, isto é, com uma só vela triangular, sem qualquer coberta e utilizando também remos; … “
In: “Navios dos Descobrimentos”, Luís Filipe Barreto, Ph.D. em Cultura Portuguesa, 1991, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Bibliografia aqui
https://www.goodreads.com/search?q=Lu%C3%ADs+Filipe+Barreto&qid=hFfhridcGv
G – Pelo exposto aqui e pela totalidade dos posts desta série podemos deduzir que, muito possivelmente (pessoalmente estou convencido), existiram simultaneamente nas costas portuguesas dois tipos de barcas, com as seguintes características, a saber:
Tipo Nórdico
- Vela quadrada (rectangular) ou também chamada “redonda”;
- Possuíam um só mastro (eventualmente, outro mais pequeno, á proa também de vela redonda). O mastro grande encontrava-se implantado a meio da quilha;
- Uma tonelagem de 100 a 150 tonéis;
- O comprimento da quilha seria até 15m;
- Casco bojudo, com popa e proa redondas e quase simétricas, montado com a técnica Klinker Built (casco primeiro com tábuas sobrepostas);
- Melhor adaptadas às águas agitadas do Norte da Europa;
- A resistência era inversa ao tamanho;
- Muito manobráveis devido à vela redonda que facilitava a manobra;
- Morfologia de navios de alto bordo;
- Nos séculos XII e XIII, os Cruzados viajaram para Sul e Oriente em “cogs”, que não eram senão “barcas”.
Tipo Mediterrânico
- Vela triangular, latina (a la trina) ou bastarda; (5);
- Podiam arvorar um, dois ou três mastros conforme o tamanho;
- A tonelagem podia ser superior a 250 tonéis, como por exemplo as embarcações que transportavam os peregrinos á Terra Santa;
- A quilha podia ter um comprimento até 26m;
- O casco era liso em que as tábuas do mesmo eram encostadas e calafetadas a topo e não sobrepostas;
- Tornavam-se mais económicas que as nórdicas já que não havia o desperdício da sobreposição das tábuas;
- Sendo construídas com o método Carvel built eram estruturalmente mais fortes do que as nórdicas e poderiam ser muito maiores;
- Com a vantagem de poderem navegar mais chegadas ao vento (4 quartas contra as 6 quartas da vela redonda) tinham a desvantagem de que a manobra das velas era mais complicada do que a do pano redondo;
- O pano latino estava espalhado por todo o Mediterrâneo, pela costa Ocidental da Europa e, no princípio dos descobrimentos pela costa Ocidental de África.
(5) – Vela bastarda é uma vela quadrangular, mas em que um dos lados – o da amura – é tão pequeno que a vela é aparentemente triangular. Enverga de proa à popa numa verga bastante comprida içada num mastro curto e em geral inclinado para a ré. É a vela característica dos “Caiaques” do Algarve (que uns defendem que o seu aparecimento foi posterior à caravela ser usada nos descobrimentos e outros, que é um ancestral da caravela. Sabe-se lá!).
Primeiro correio marítimo de Portugal
Réplica do Caíque “Bom Sucesso” (cerca de 18 m de comprimento fora a fora e 5,5 m de boca) que, em 1808 navegou de Olhão ao Brasil com uma tripulação de 18 marítimos em condições deploráveis para levar a D. João VI a boa nova da expulsão dos Franceses do Algarve, constituindo-se assim o primeiro correio marítimo de Portugal.
As embarcações usadas no início dos Descobrimentos estariam com certeza relacionadas com as usadas na costa sul de Portugal e com o Mediterrâneo pela situação geográfica do início dos Descobrimentos, no Algarve, onde se usava o pano latino, passando-se o mesmo na restante costa ocidental do país. Devido às características de navegação junto à costa que as embarcações das Descobertas tiveram de fazer, deviam de estar adaptadas para navegar em fundos pouco profundos, costas recortadas, estuários de rios, etc.
Por outro lado o pano latino facilitava a navegação fosse qual fosse o sentido do vento pois podia-se bolinar mudando de bordo por singraduras, mesmo não tendo o vento a favor (6).
O método de construção de casco liso, que passava de geração em geração, há milhares de anos que era praticado. Os mestres carpinteiros passavam-no para os seus aprendizes e estes, por sua vez, quando chegasse a altura de serem mestres, passavam-no para a geração seguinte.
(6) – As embarcações de que aqui se trata, tinham uma única vela e as dimensões não seriam muito grandes no início. Nessa altura, o mudar de bordo, para estas embarcações, não exigia mudança de bordo da verga da vela. Limitavam-se a aproar num rumo no outro bordo, de mais ou menos 8 quartas, deixando a linha do vento para bombordo ou para estibordo conforme os casos. No Algarve, esse tipo de navegação foi seguido nas Barcas das Armações e noutras embarcações à vela que navegavam na costa algarvia e tinham “as velas à boa volta, (velas soltas em balão) quando navegavam de Sotavento para Barlavento bem como as velas sobre o pau (velas em balão encostadas ao mastro, o que necessariamente retirava rendimento ao andamento) quando ao contrário. Eu próprio naveguei nas Quirimbas, Índico, no norte de Moçambique, entre Pemba/Ibo/Pemba, durante dez dias, num barco de pesca local tipo “Dhow” que adotava esta “técnica”. Depois, com as caravelas, as coisas mudaram para muito maior dificuldade pois, para mudar de bordo, havia de deslocar a vela em conjunto com a verga passando-as pela frente ou por detrás do mastro para o outro bordo, o que exigia força e boa coordenação.
H – Nesta situação há que reter as datas das referências existentes no que diz respeito á construção e uso das “Caravelas de Descobrir” que nos são dadas pelos cronistas e por outras fontes e daí tirar alguma ilação para o feito de Gil Eanes ter passado o Bojador em 1434.
As tentativas feitas anteriormente (14 ou 15) durante 12 anos segundo as fontes devem ter-se iniciado aproximadamente em 1422 levando em linha de conta que a ida do Infante D. Henrique para Lagos se deu em 1418.
A “Crónica da Guiné” de Azurara já referida (página 69) dá-nos uma informação que é a seguinte: … “ Bem he que no anno de quarenta (1440) se armarom duas caravelas afim de irem a aquella terra, (além do Cabo Bojador) mas porque ouverom aqueecimentos (acontecimentos) contrairos (7), nom contamos mais de sua vyagem. …”
Esta é a primeira referência de Azurara a “Caravelas” que, supõe-se, seriam de “Descobrir”. Partindo do princípio que se pode considerar o ano de 1440 como o primeiro ano em que as Caravelas de descobrir navegaram (talvez antes) mediaram entre 6 e 5 anos o tempo decorrido depois da passagem do Bojador com uma Barca;
(7) -“ aqueecimentos contrairos” – Não sei a que é que Azurara se refere com esta frase, se a algum acontecimento com as Caravelas que em vez de navegarem se afundaram ou se aos acontecimentos no Reino, que tiveram a ver com a disputa da Regência após a Morte de D. Duarte. Para este caso tem pouca importância. É só curiosidade!
A segunda referência data de 1444 e diz; “Porem ajuntou Lançarote seis caravelas bem armadas pera seguir sua tençom, … O principal e primeiro capitam, como já dissemos, era Lançarote, e o seguinte Gil Eanes, aquelle que screvemos que primeiramente passara o cabo Bojador”.
Foi este o primeiro caso em que se raptaram pessoas (mouros) em grande quantidade, que foram trazidos para Portugal, para Lagos, onde foram distribuídos, conforme a tradição de partilha de despojos entre os vencedores. Ao Infante D. Henrique calhou-lhe um quinto.
Para este caso e referente a outras datas, juntamos o que Francisco Contente Domingues no seu livro “Os Navios do Mar Oceano – Teoria e Empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII” (página 233), nos diz é…
- O Duque de Borgonha, Filipe o Bom tinha casado com D. Isabel de Portugal em 1436. Esta D Isabel era irmã de D. Henrique e do Rei de Portugal, D. Duarte que reinou entre 1433 e 1438, bem como dos restantes Infantes da “Ínclita Geração”.
- Entre 1438 e 1439, nos estaleiros de Borgonha, foram construídas uma galé e uma pequena caravela e depois, mais duas caravelas. Os trabalhos destas construções foram dirigidos pelos mestres portugueses João Afonso e outros, que introduziram na construção naval nórdica a técnica de construção de “Forro Liso” (Carvel), onde se usava exclusivamente o “Forro Trincado” e aprenderam com os Borgonheses a construir “navios de alto bordo” com técnicas que os portugueses ainda não conheciam que possibilitavam a integração dos castelos de Popa e de Proa directamente durante a construção do casco. Este “intercâmbio” deve-se à iniciativa do Infante e do Rei D. Duarte e foi de mútuo aproveitamento. Se havia “política de segredo” nesta fase dos Descobrimentos, não parece! (1438/1439).
Para reforço desta opinião de Francisco Contente Domingues consultei a fonte original publicada na revista “Oceanos” nº 16 de 1993 que nas páginas 86 a 92 tem um artigo com o título ”Um Relatório sobre a Construção de Caravelas Portuguesas em Bruxelas (1438 – 1439) ” da autoria de Jacques Paviot e Éric Rieth ambos investigadores no “Laboratoire d’Historie Maritime, C.N.R.S” em Paris que encontraram, entre os registos da Câmara de Contas dos Duques de Borgonha, um relatório e contas sobre a construção de duas caravelas, por mestres carpinteiros portugueses, em Bruxelas, em 1438 e 1439, por encomenda do Duque de Borgonha.
O Duque de Borgonha, Philippe le Bon era casado, em terceiras núpcias, com a Infanta de Portugal Dona Isabel, irmã do Infante de D. Henrique.
Duque de Borgonha, Filipe o Bom, que aparentemente, em termos de chapéus, partilhava os mesmos gostos do cunhado Infante D. Henrique
Estes mestres carpinteiros (conhece-se somente o nome de um – João Afonso) são reconhecidos como “mestres em construir navios de mar no país de Portugal”.
Os carpinteiros portugueses construíram, em 1436, uma galé no porto de Écluse; em 1438, uma caravela pequena também em Écluse; em 1438 e 1439 as duas caravelas já mencionadas, em Bruxelas e, entre 1439 e 1441 uma grande nau em Anvers. Portanto, permaneceram 5/6 anos no Ducado de Borgonha.
O relatório, além de outras coisas, dá pistas sobre o modo de construção das embarcações no Ducado e portanto, indirectamente, sobre o método de construção em Portugal, mas não é este o lugar para aprofundar essa informação.
Existem neste relatório 3 pontos interessantes:
1 - Diz-se que as duas caravelas foram construídas em Bruxelas, o que é no mínimo surpreendente já que fica mais ou menos a 150km de distância do Mar do Norte. Uma hipótese que é de considerar é que na altura poderia coincidir com a residência do Duque. Bruxelas era atravessada pela Ribeira de Senne (sendo dito que o estaleiro era nas suas margens), que é uma tributária do Sholt que por sua vez desagua no Dyle, tributário do Rugel e por fim do Escalda e toda esta água vai ter ao Mar do Norte, por alturas de Breskens (hoje em dia na Holanda).
Não sei se na altura já havia os canais que hoje existem nesta zona. Penso que não. Deve ter sido uma “trabalheira” levar as caravelas até ao mar, à “sirga”;
2 – Pode parecer estranho que tenha sido o próprio Infante D. Henrique a divulgar junto do Ducado o modo de construção das caravelas. Na altura, para quem acredita nisso, não havia ainda uma “política de sigilo” pois ela, segundo dizem, só foi adoptada nos reinados de D. João II e D. Manuel I, portanto a partir de 1477, muito depois destes acontecimentos;
3 – Por último a questão das datas:
1418 – Ida do Infante D. Henrique para Lagos;
1419 – Descobrimento da ilha da Madeira;
1422 – Passagem do Cabo Não;
1434 – Passagem do Bojador;
1436 – Ida para o ducado de Borgonha de mestres carpinteiros portugueses peritos na construção de caravelas;
1440 – Primeira menção das caravelas por Azurara.
Entre a passagem do Cabo Não e a passagem do Cabo Bojador medeiam precisamente 12 anos com 14/15 tentativas para passar o Bojador. Tudo isto feito em “Barcas” de pano redondo.
No entanto, em 1436 o Infante envia ao seu cunhado um grupo de mestres carpinteiros peritos na construção de caravelas.
Dois anos depois da passagem do Bojador com uma barca, já havia peritos na construção de caravelas? Onde é que ganharam essa perícia? Em dois anos foi possível “inventar” a caravela e construí-la em número suficiente para alguém ser perito?
Qualquer coisa aqui não bate certo!
Não pondo em causa as conclusões que os historiadores portugueses “tiraram” sobre esta parte da nossa história e procurando uma saída lógica parece-me:
1 – A caravela não foi pensada de raiz mas sim deriva do aperfeiçoamento da “Barca de origem Mediterrânica” através da “Barca Pescareza” ou “Caravela Pescareza” usada na pesca. De notar que é referido que as primeiras embarcações usadas nos descobrimento eram de pesca;
2 – Poderia ter havido, durante um curto período inicial dos Descobrimentos, o uso de uma ou outra “Barca Nórdica” (possivelmente até à passagem do Cabo Não – 1422) que foi substituída pela “Barca Pescareza” pela razão que esta última, por ser de pano latino, tinha mais facilidade de navegar com vento a soprar da banda da proa;
3 – Não era possível para os navegantes portugueses, conhecerem o regime de ventos a sul do cabo Bojador, pela simples razão de que ainda não tinham passado para o outro lado. Mas, depois de passado o Cabo Não (1422), o regime de ventos até ao Cabo Bojador era (segundo o “Atlas of Pilot Chart North Atlantic” predominantemente N/S junto à costa, (havendo por vezes ventos que sopravam do Sahara para o mar – E/W e formação de nevoeiros). Os ventos N/S teriam uma intensidade média de 5/6 (muito fresco) ou meio forte (Escala de Beaufort modificada) ao longo do ano. Isto é bom para descer a costa com pano redondo, mas difícil para voltar em rumo contrário. Diz a tradição que os portugueses chegaram à Ilha da Madeira a 1 de julho de 1419. Porém, 1418, é o ano apontado como o do descobrimento da Ilha do Porto Santo, circunstância ocorrida após uma tempestade que desviou da rota uma embarcação que seguia pela costa africana, muito provavelmente para passar o Cabo Não, possivelmente numa barca tipo nórdico;
4 – A data da ida dos “mestres carpinteiros” para o Ducado de Borgonha – 1436 – como peritos construtores de caravelas, indicia que já há algum tempo se construíam caravelas em Portugal atirando a data do início da construção de caravelas para uma data antes de 1434;
5 – Ao falar em “construção de caravelas” teremos que ter em atenção que, embora baseadas numa embarcação já existente, elas não aparecem por geração espontânea. Na minha opinião demoraram algum tempo para a adoção de um “desenho”, mais consentâneo com a sua futura função, que era percorrer a Costa de África no sentido de fazer o seu reconhecimento geográfico e a sua cartografia, com pontos reconhecidos e nomeados, bem como as condições dos regimes de vento, das condições do mar e dos rumos mais fáceis. No fundo, criar um novo modelo de embarcação que se adaptasse à função de exploração, no sentido de abrir caminho para o Oriente;
6 – Existe um período de tempo de 12 anos – 1422 a 1433/1434 em que a actividade dos descobrimentos não está bem definida. Sabe-se que foram feitas 14/15 tentativas todas infrutíferas segundo Azurara, que diz que os navegantes não passavam o Bojador:
“ … ca doze annos continuados durou o Iffante em aqueste trabalho, mandando em cada huu anno a aquella parte seus navyos, com grande gasto das suas rendas, nos quaes nunca foi alguu que se atrevesse de fazer aquella passagem.”
7 – Continuando a ler Azurara, os navegantes não voltavam de mãos a abanar depois de não conseguirem passar o Bojador (se é que o tentavam) pois dedicavam o resto do tempo indo para a costa de Granada e para a costa do Levante (Mediterrâneo), onde “filhavam grossas presas dos infiéis” com os quais voltavam para o reino.
8 – Os navegadores (capitães) do início das Descobertas, pertenciam maioritariamente à Casa do Infante D. Henrique e como tal deviam-lhe obediência e não teriam o arrojo de, propositadamente, não cumprirem a sua missão. Não desmentindo Azurara (apesar de Azurara ter feito menção de se ter baseado nos relatos das expedições, constantes de um manuscrito compilado por um suposto «António Cerveira», que no entanto, nunca foi encontrado nenhum exemplar desse relato original, ou seja numa fonte não comprovada), penso que, atendendo às datas de início da construção das caravelas, as viagens de exploração ao Bojador, apesar de não resultarem na sua finalidade, estas viagens (quantas não sei mas não deviam ter sido a totalidade das 14/15 já indicadas) tiveram como objectivo testar um modelo de embarcação, com base nas barcas pescarezas modificando-as a cada viagem quando necessário a fim de poderem cumprir o papel a que se destinavam que era correr o mar junto à costa. Baixo calado, carcomais estreito e afilado, amuradas altas, solidez de construção, zonas de armazenamento protegidas, convés para facilitar as manobras, melhoria do aparelho latino, velocidade, agilidade, etc.. Estas características, na altura, só podiam ser atingidas se houvesse tempo para imaginar, criar, experimentar e adaptar, ou seja, adquirir, o que Camões escreveu noutro contexto, “um saber de experiência feito”;
9 – A passagem do Bojador foi feita por Gil Eanes em 1434. Gil Eanes também era um homem da Casa do Infante (escudeiro) e, pela narrativa de Azurara, um homem em quem o Infante confiava. Uns dizem que era um jovem outros que era um homem de meia-idade. Eu penso que era um homem de meia-idade com provas dadas no mar – embora nada se saiba nesse sentido, anterior a 1433.
Em 1433 Gil Eanes faz uma primeira tentativa que falhou. Azurara diz que não passou das Canárias. Porque é que não passou? Segundo Azurara porque, como os anteriores navegadores, teve receio. Eu tenho uma explicação mais prosaica, talvez mais real. Ou apanhou uma tempestade que o obrigou a arribar às Canárias ou teve uma avaria qualquer que o obrigou a fazer o mesmo e a regressar a Lagos.
Neste momento Gil Eanes comandava uma barca pescareza mas muito possivelmente, uma barca pescareza já bastante alterada pelos ensinamentos que os navegadores anteriores tinham aprendido nas 14/15 viagens que fizeram, viagens essas que, para mim, foram essencialmente de teste de novas ideias e alterações- Honestamente, apesar do que diz Azurrara, não acredito que o Infante D. Henrique teimasse 14/15 vezes em ”esbarrar-se” contra o Bojador sem, expedição a expedição, ir tentando introduzir as melhorias necessárias.
Em 1436 carpinteiros portugueses especializados foram para o Ducado de Borgonha construir, entre outras embarcações, 3 caravelas (uma pequena e duas médias sendo uma das “médias” com 3 mastros). Antes da ida com certeza adquiriram a “expertise” necessária para isso, construindo caravelas em Portugal. Quando? Atrevo-me a dizer que alguns anos antes de 1434.
10 – Tudo o que para trás ficou dito leva-me a deduzir que, na altura de Gil Eanes passar o Bojador o fez, não numa caravela de um mastro (para não contrariar a barca que Azurara refere) mas sim numa “Barca Pescareza” já transformada e melhorada de tal modo que estava perto de uma caravela (um protótipo avançado). Penso ter sido esta a vantagem de Gil Eanes, para passar o Bojador à primeira. Como o passou, não o sei! Deverá ter ir tentando arranjar uma passagem na restinga de pedra que se projecta para o mar entre 4 a 5 léguas (usando a medida oficial da légua marítima mais ou menos 28 Km. (8) até chegar ao fim ou descobrindo uma passagem em qualquer sítio.
(8)
- Légua de 18 ao grau, equivalente a 6 172,84 metros.
- Légua de 20 ao grau, equivalente a 5 555,56 metros (medida oficial da légua marítima).
- Légua de 25 ao grau, equivalente a 4 444,44 metros.
Para passar o Cabo Bojador em segurança é aconselhado aos navegadores por Duarte Pacheco Pereira, no livro escrito em 1506 “Esmeraldo de Situ Orbis”, na página 81 (Edição da Academia Portuguesa de História de 1988) o seguinte:
“Item. Jaz o Cabo Não com o Cabo Bojador, nordeste e sudoeste, e toma a quarta de leste e de aloeste (ao Oeste) e tem na rota sessenta léguas; mas o piloto que for avisado deve fazer o caminho de aloeste-sudoeste trinta léguas, e as outras trinta do sudoeste e da quarta de aloeste, e fazendo isto irá fora do Bojador, em mar, dele oito léguas E não deve fazer outro caminho, porquanto este cabo é muito perigoso por causa de uma muito grande restinga de pedra que dele sai ao mar mais de quatro ou cinco léguas, na qual já se perderam alguns navios por mau aviso E este cabo é muito baixo e todo coberto de areia, e tem o fundo tão aparcelado está homem a dez braças e nã vê a terra pela sua baixeza. E a costa que vem do Cabo Não pera o Bojador toda é muito baixa e areia, ao longo do mar e quási deserta.”
No entanto isto foi escrito 72 anos depois de Gil Eanes ter passado o Bojador, já com conhecimento de causa.
Como voltou, não sei mas poderia ter feito a mesma rota pois tinha barca para isso, ou então ter tomado o caminho do Oeste e ter apanhado ventos de feição que o levaram até Lagos.
Convictamente, vou adoptar esta versão desta história pois parece-me mais lógica do que a outra.
“Barca Pescareza”, tipo (talvez) usada por Gil Eanes, tendo esta um tamanho ligeiramente menor
Este modelo está em Exposição no Museu de Marinha
No entanto, embora não esteja de acordo em que a "Barca de Gil Eanes" era de pano redondo, não resisti à tentação de construír a barca dos planos do "Museu de Marinha".
A "reportagem fotográfica" será o último post dedicado á "Barca de Gil Eanes".
E por hoje é tudo
(continua)
Bons ventos e …
Um abraço