13.09.23
82– Modelismo Naval 7.3.14 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”
marearte
(continuação)
Caros amigos
8.6 – A Construção Naval (1415 – 1434)
Ribeira das Naus no Tejo, em Lisboa – um estaleiro movimentado nos séculos XV e XVI
“Desconhece-se quase todos os pormenores da actividade neste período (séc. XII a XV): escasseiam os testemunhos fidedignos e os primeiros tratados de construção naval portugueses só aparecerão muito mais tarde, em fins do séc. XVI.”
“Navios, Marinheiros e Arte de Navegar (1139 – 1499) – Coordenador: Com.te Fernando Gomes Pedrosa
Academia de Marinha, Lisboa, 1997
A Ribeira das Naus antes de 1940
O Paço da Ribeira localizava-se na margem do rio Tejo, na Ribeira de Lisboa, em Portugal.
Consistia num luxuoso palácio real erguido a partir de 1498, por determinação de D. Manuel I, no contexto da descoberta do caminho marítimo para a Índia e do monopólio português do comércio das especiarias do Oriente com a Europa. Foi totalmente destruído no terramoto de Lisboa, em 1755.
No local do primitivo palácio situa-se, hoje o complexo ministerial do Terreiro do Paço.
Ribeira das Naus foi o nome dado a partir da construção do Paço da Ribeira às novas tercenas que o rei Dom Manuel I mandou edificar a ocidente do novo palácio real, construído sobre o local das tercenas medievais.
Na Ribeira de Lisboa funcionavam, desde há muito, os principais estaleiros portugueses, até então chamados de tercenas (1) e de finais do século XV em diante, denominados Ribeira das Naus, ou apenas Ribeira. O novo paço foi erguido sobre as tercenas de Lisboa, que o soberano determinou deslocar para Ocidente, de forma a renová-las e alargá-las.
(1) - As tercenas medievais eram locais onde se guardavam as “galés”, embarcações que foram, por excelência, os navios de combate mais relevantes desde a antiguidade até ao século XVI, mantendo-se em algumas marinhas europeias até ao início do século XIX, nomeadamente na marinha russa.
As tercenas funcionavam como um “parque de estacionamento” da esquadra de galés onde, e só muito eventualmente, se faziam pequenas reparações, sendo a sua construção feita em estaleiros ou ribeiras perto ou longe.
A palavra tercenas, provém do árabe dar al -sina, “oficina”, que significava o local, pertencente ao estado, dedicado à construção naval. Do árabe, o étimo penetrou nas línguas romanas, como no português taracenas, no castelhano atarazanas, no italiano darsena e arsenale, e no francês arsenal. Em todas estas línguas manteve-se uma ligação às actividades navais, mas nem sempre o significado se associou à manutenção de galés.
Em Portugal e em Espanha a palavra tercenas ganhou, durante o século XVI, o sentido de armazém, perdendo-se gradualmente o vínculo com a construção naval. Este facto deve--se às alterações sofridas nas prioridades da construção naval ocorridas, no século XVI, sobretudo devido à navegação atlântica que beneficiou naus e caravelas, em detrimento das galés, embarcações que se adaptavam melhor à navegação e ao combate naval no Mar Mediterrâneo.
No século XVIII, a Ribeira das Naus passou a ser designada "Arsenal Real da Marinha" quando as suas instalações foram construídas no mesmo local, no âmbito da reconstrução da Baixa de Lisboa, depois do terramoto de 1755.
Em 1910, passou a designar-se "Arsenal da Marinha de Lisboa". O Arsenal da Marinha de Lisboa foi desactivado em 1938.
Instalações da Administração Central da Marinha
O seu antigo local - cujo acesso ao rio Tejo foi cortado com a construção da Avenida Ribeira das Naus - faz hoje parte das Instalações da Administração Central da Marinha.
A Ribeira das Naus, com as docas Seca e da Caldeirinha, constituiu o conjunto dos maiores estaleiros do Império Oceânico Português, servindo de modelo aos restantes que se foram construindo além-mar, nomeadamente às ribeiras de Goa e de Cochim.
Apesar da dificuldade de obter informação de pormenor sobre a construção naval em Portugal no séc. XV, vamos tentar, de uma forma mais geral, alinhar alguns conceitos básicos que serão os suficientes no contexto deste post.
No Portugal de meados do séc. XV, a construção naval já se tinha desenvolvido em termos artesanais (ribeiras) e “eruditos” (estaleiros) construindo as primeiras diversas embarcações de pesca e de pequena cabotagem e a segunda embarcações de alto mar para comércio e defesa do país, com uma tónica especial nas “naus” (incluindo as da “Carreira da India”. Estas ribeiras encontravam-se junto a portos de mar, ou junto às fozes de rios ou no seu estuário.
Alguns desses portos – onde é previsível que existisse construção naval de grande ou de pequeno porte – desapareceram por causas variadas, mas entre os séculos XIII e XVI, existiam os seguintes portos agrupados por zonas, do Norte a Sul de Portugal:
Litoral Norte – Caminha, Valença, Viana do Castelo, Esposende, Vila do Conde, Zurara, Pindelo, Estuário do Douro e Aveiro;
Litoral Centro – Buarcos, Mondego, Foz do rio Liz e Vieira, Paredes, Portos de Alcobaça, Pederneira, S. Martinho de Salir, S. Martinho do Porto, Alfeizerão, Peniche e Atouguia da Baleira, Lourinhã, Lisboa (estaleiro da Ribeira das Naus com tercenas) e Estuário do Tejo;
Estuário do Sado e Costa Alentejana – Sesimbra, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Nova de Mil Fontes e Odemira;
Costa Algarvia – Lagos, Portimão, Faro e Tavira (com tercenas).
Depois, espalhados ao longo da costa e nas fozes de rios menores, existiam uma série de ribeiras esporádicas onde eram construídas embarcações para uso local.
Para o nosso caso (1415-1434) tiveram especial importância os portos do Algarve em particular os de Tavira, Faro, Portimão e Lagos com particular interesse, pelas suas ligações ao comércio com o norte da Europa e em particular com a bacia do Mediterrâneo. (há notícia de que este porto mantinha trocas comerciais com o Norte da Europa pelo menos desde 1295 senão antes e com o Mediterrâneo pelo menos desde a ocupação árabe da Península Ibérica),
Lagos, no canto inferior esquerdo do mapa, com a ampla baía que a caracteriza e que era muito procurada pelas embarcações que vinham da costa ocidental Atlântica e do Mediterrâneo
“LAGOS, beneficiando da sua situação geográfica, abrigada da costa ocidental atlântica e fronteira a uma ampla baía, mostrou-se, ao longo do tempo, em particular durante o período que antecedeu a descoberta do caminho marítimo para a Índia, como um dos portos de melhor posicionamento estratégico, tanto sob o ponto de vista comercial como militar. Possui até à actualidade, grande tradição na construção naval de madeira.
Foi em Lagos que se sediaram, desde muito cedo as baleações e as companhas da pesca do atum. Esta actividade teria contribuído inevitavelmente para o desenvolvimento da arte de construir navios. D. Pedro em 1359 concedeu aos maiorais das baleações vários privilégios e em 1386, Estevão Vasques Filipe, anadel-mor dos besteiros, por doação régia ficou recebedor das tenças reais e dízimas atribuídas na baleação de Lagos.”
A Arqueologia Naval Portuguesa-Séculos XIII a XVI
Adolfo A. Silveira Martins – UAL - 2001
Na altura, já se encontravam consolidadas técnicas de construção naval provenientes das duas diferentes áreas de influência no reino, áreas essas que se radicavam no Norte da Europa e no Mediterrâneo, tendo métodos bem diferenciados de construção de embarcações, cada um adaptado às características de navegação dependente do tipo de mar e cada uma com os seus méritos.
Barco “Viking” como exemplo do método “Clinker Built”
Como já vimos anteriormente no Norte da Europa a sucessão de tarefas para a construção das embarcações relativamente pequenas, rotundas, com uma proporção quilha/boca de 3:1 (uma concepção já existente no séc. XIII), de casco simétrico, com rodas de popa e de proa muito idênticas e a secção a meia-nau em forma de U e de abas verticais, cujo forro era trincado (sistema de união que consiste na sobreposição do bordo inferior das tábuas do casco ao bordo superior da tábua que lhe fica logo abaixo – Klinker Built - (2) que armavam um mastro sustentado por brandais fixos, com vela quadrangular/retangular, com rizes, pendente de uma verga horizontal e governados por um leme de “espadela” fixo na alheta de estibordo da embarcação e por vezes nos dois bordos. (3)
(2) Este método de construção não vingou em Portugal pois tradicionalmente era há muito usado o método de casco liso com a construção primeiro de uma estrutura da embarcação. Os únicos barcos, que conheço, que eram construídos com métodos parecidos são o “Carocho” do Rio Minho e o “Barco Rabelo” do Rio Douro.
(3) No início do século XIII aparece o leme axial (centrado na popa) que veio substituir o leme de “espadela” tornando-se universal durante o séc. XIV.
A “Caravela Boa Esperança” nos estaleiro em Vila do Cone em 1989-1990 na fase de assentamento das balizas entre almogamas
No Mediterrâneo a construção das embarcações era efectuada de um modo diferente. As embarcações eram mais esguias e a secção a meia-nau tinha a forma de um V tornando-se mais afilada no sentido da proa e mais larga e abaulada no sentido da popa. Os navios com comprimento superior a 20 metros eram normalmente de casco duplo (forro exterior e forro interior) de modo a tornar mais resistente a “querena”, bem como tinham “vaos” salientes no costado. Desde muito cedo usaram aparelho latino (4) constituído por um mastro colocado a meia-nau da embarcação e sustentado por ovéns e brandais volantes, uma vela latina e uma verga normalmente constituída por duas partes ligadas e sobrepostas uma á outra e que trabalhava no mastro no sentido proa/popa, onde a vela latina era envergada. Estas embarcações também podiam ter aparelho redondo, conforme o número de mastros (p.e. as galeras romanas movidas a remo e que tinham como auxiliar uma vela de pendão retangular usada conforme as necessidades) ou um aparelho misto (redondo e latino como por exemplo as naus e as caravelas redondas).
(4) – A origem do aparelho latino e como se passou do aparelho redondo pata o latino tem dado azo a grandes debates e discordâncias. Não indo por aí, basta dizer que não é portuguesa (embora tenha sido adaptada e melhorada conforme as navegações) e que se pode centrar a sua origem, em épocas diferentes em três áreas distintas: documentadamente primeiro no Mar Mediterrâneo depois no Oceano índico (possivelmente uma passagem de tecnologia do Mediterrâneo? ou a sua criação nas Penínsulas Arábica e/ou Indostânica e por último, no Oceano Pacífico entre a Papua/Nova Guiné e as ilhas Cook, um aparecimento autónomo de velas triangulares que são armadas ao contrário (esteira par cima se assim se pode dizer).
Este método ficou conhecido como “Carvel (5) built”.
(5) Segundo o dicionário de Inglês/Português que eu mais uso, o “Comprehensive Technical Dictionary” de Lewis L. Sell, edição de 1953, o verbete para a palavra Inglesa “Carvel” diz o seguinte:
“CARVEL-BUILT; CARVEL-PLANKED, de construção com malhetes; liso// CARVEL-BUILT BOAT, escaler de costado liso// CARVEL-WORK, construção com malhetes”
E num outro verbete aparece:
“CARAVEL, caravela”.
Por outro lado, o dicionário do Comandante Marques Esparteiro de termos Náuticos Ingleses, edição de 1974, tem uma entrada que traduz CARVEL pelos mesmos significados do dicionário Sell e uma outra isolada que dá como significado Caravela.
Após algum debate com especialistas de História Náutica concluiu-se que uma coisa é CARVEL e outra coisa é CARAVEL e que CARVEL é um método de construção em casco liso e CARAVEL, é uma embarcação que, por acaso, usa esse método. Portanto a tradução direta de CARVEL como caravela só é aceitável quando estiver dentro desse contexto.
A evolução da construção naval portuguesa sofreu assim influências da Europa do Norte – principalmente na zona a norte do Douro – e do Mediterrâneo – na costa ocidental e na costa sul (Algarve).
Foi do conjunto destas influências, do saber empírico dos navegantes, do saber académico dos cientistas e das experiências de tentativa e erro dos marinheiros, que se moldaram embarcações adaptadas às necessidades, que passaram pelas “Galés”, pelas “Barcas” e “Barinéis”, pelas “Caravelas de Descobrir”, pelas “Naus”, pelas “Caravelas Redondas”, pelos “Galeões” e por outras menos comuns, indo de uma construção pouco (ou quase nada) padronizada, para uma construção parametrizada, normalizada e regimentada a partir dos finais do Século XV e nos séculos seguintes.
Réplica atual de uma Caravela (Vera Cruz) de dois mastros
Como conclusões teremos:
19 – A construção naval portuguesa do tempo de Gil Eanes era uma prática bem espalhada em todo o país, principalmente nas zonas onde existiam portos;
20 – Esta construção era baseada nas técnicas transmitidas de pais para filhos ao longo dos tempos, em que não havia desenhos mas sim construção com base nas habilidades dos mestres carpinteiros;
21 – Existiu influência na construção naval vinda da Europa do Norte (alguma coisa) e do Mediterrâneo (fortemente);
22 – Toda esta situação foi sendo modificada desde os finais do século XV e nos séculos seguintes, muito depois da passagem do Bojador por Gil Eanes em 1434.
Bibliografia consultada para este sector:
- “Notas sobre a Tecnologia de Construção Naval nos Estaleiros Navais Portugueses do Século XVI” Paper
Carvalho, Carla; Fonseca, Nuno; Castro, Filipe Vieira de
- “A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI) ”
Martins, Adolfo A. Silveira
- “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499”
Pedrosa, Fernando Gomes
- “Construção Naval em Madeira – Arte, Técnica e Património”
Câmara Municipal, de Vila do Conde
Actas do Congresso Internacional
- “As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”
Silva, Manuel Fialho; Fonseca, Nuno (Ilustrações)
Actas XV Simpósio de História Marítima
E por hoje é tudo
(continua)
Bons ventos e …
Um abraço