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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

10.05.23

77 – Modelismo Naval 7.3.9 – Um outro Minibarco – A Barca ou “Barcha”


marearte

 

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(continuação)

Caros amigos

7 – Tecnologia Náutica no Início dos Descobrimentos – Meados do século XV

 

7.4 – Construção Naval

História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa: a Ribeira das Naus nos séculos XV e XVI no Vimeo 

VER 

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Ribeira das Naus no Tejo, em Lisboa – um estaleiro movimentado nos séculos XV e XVI

“Desconhece-se quase todos os pormenores da actividade neste período (séc. XII a XV): escasseiam os testemunhos fidedignos e os primeiros tratados de construção naval portugueses só aparecerão muito mais tarde, em fins do séc. XVI.”

“Navios, Marinheiros e Arte de Navegar (1139 – 1499) – Coordenador: Com.te Fernando Gomes Pedrosa 

Academia de Marinha, Lisboa, 1997 

Apesar da dificuldade de obter informação de pormenor sobre a construção naval em Portugal no séc. XV, vamos tentar, de uma forma mais geral, alinhar alguns conceitos básicos que serão suficientes no contexto deste post.

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“ Enxó” curva, de cabo comprido com que se afeiçoava a madeira (barrotes e tábuas)

No Portugal de meados do séc. XV, a construção naval já se tinha desenvolvido em termos artesanais e “eruditos” construindo a primeira diversas embarcações de pesca e de pequena cabotagem na costa Portuguesa e a segunda embarcações de alto mar para comércio e defesa do país, com uma tónica especial nas “galés” que existiam praticamente em todos os portos principais e que se destinavam a repelir os ataques de piratas que proliferavam na nossa costa como também a outras tarefas.

Na altura, já se encontravam consolidadas técnicas de construção naval provenientes das duas diferentes áreas de influência no reino, áreas essas que se radicavam no Norte da Europa e no Mediterrâneo, tendo métodos bem diferenciados de construção de embarcações, cada um adaptado às características de navegação dependente do tipo de mar e cada uma com os seus méritos.

No Norte da Europa a sucessão de tarefas para a construção das embarcações relativamente pequenas, rotundas, com uma proporção quilha/boca de 3:1 (uma concepção já existente no séc. XIII) de casco simétrico, com rodas de popa e de proa muito idênticas e a secção a meia-nau em forma de U e de abas verticais, cujo forro era trincado (sistema de união que consiste na sobreposição do bordo inferior das tábuas do casco ao bordo superior da tábua que lhe fica logo abaixo) que armavam um mastro sustentado por brandais fixos, com vela quadrangular/retangular, com rizes, pendente de uma verga horizontal e governados por um leme de “espadela” fixo na alheta de estibordo da embarcação e por vezes nos dois bordos, (1) era:

  • Primeiro construía-se uma espécie de “concha” como casco, (em tabuado trincado), com as tábuas ligadas com cavilhas (de madeira ou de ferro);
  • Depois de acabado o casco, seguia-se o reforço interno do mesmo através de longarinas e pseudo cavernas com os respetivos braços que iam tornar a embarcação mais resistente.

As embarcações mais conhecidas provenientes deste método de construção são a “Coca” a “Barca Nórdica” e o “Drakkar”. Este método ficou conhecido com o nome de “Clinker built”.

(1) No início do século XIII aparece o leme axial (centrado na popa) que veio substituir o leme de “espadela” tornando-se universal durante o séc. XIV.

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Um “Drakkar” viking no mar do Norte

No Mediterrâneo a construção das embarcações era efectuada de um modo diferente. As embarcações eram mais esguias e a secção a meia-nau tinha a forma de um V tornando-se mais esguia e afilada no sentido da proa e mais larga e abaulada no sentido da popa. Os navios com comprimento superior a 20 metros eram normalmente de casco duplo (forro exterior e forro interior) de modo a tornar mais resistente a “querena”, bem como tinham “vaos” salientes do costado. Desde muito cedo usaram aparelho latino constituído por um mastro colocado a meia-nau da embarcação e sustentado por ovéns e brandais volantes, uma vela latina e uma verga normalmente constituída por duas partes ligadas e sobrepostas uma á outra e que trabalhava no mastro no sentido proa/popa, onde a vela latina era envergada. Estas embarcações também podiam ter aparelho redondo, conforme o número de mastros (p.e. as galeras romanas movidas a remo e que tinham como auxiliar uma vela de pendão retangular usada conforme as necessidades) ou um aparelho misto (redondo e latino como por exemplo as naus e a caravela redonda).

O método usado na construção destas embarcações era:

  • Primeiramente era feito no estaleiro a construção da estrutura básica da embarcação constituída por uma quilha as balizas e as rodas de proa e de popa (espinha e costelas da embarcação);
  • Esta estrutura era depois coberta por tábuas, que constituam o costado da embarcação e que eram colocadas assentes na estrutura já existente, não sobrepostas mas sim encostadas topo a topo constituindo assim um “casco liso”.

Este método ficou conhecido como “Carvel (2) built”.

(2) Segundo o dicionário de Inglês/Português que eu mais uso, o “Comprehensive Technical Dictionary” de Lewis L. Sell, edição de 1953, o verbete para a palavra Inglesa “Carvel” diz o seguinte:

“CARVEL-BUILT; CARVEL-PLANKED, de construção com malhetes; liso// CARVEL-BUILT BOAT, escaler de costado liso// CARVEL-WORK, construção com malhetes”

e

“CARAVEL, caravela”.

Por outro lado, o dicionário do Comandante Marques Esparteiro de temas Ingleses Náuticos, edição de 1974, tem uma entrada que traduz CARVEL pelos mesmos significados do dicionário Sell e uma outra isolada que dá como significado Caravela.

Após algum debate com especialistas de História Náutica concluiu-se que uma coisa é CARVEL e outra coisa é CARAVEL e que CARVEL é um método de construção em casco liso e CARAVEL, é uma embarcação que, por acaso, usa esse método. Portanto a tradução direta de CARVEL como caravela só é aceitável quando estiver dentro desse contexto.  

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Réplica atual de uma Caravela de dois mastros

 

7.4.1 – Tercenas, Ribeiras e Estaleiros

Tercena, tarcena ou taracena são palavras que, embora tenham origens diferentes, entraram no português com o mesmo significado de edifícios onde se guardavam as galés e que por vezes poderiam servir para a execução de pequenas reparações. Mas não tinham a função de estaleiros de construção naval que era feita nas praias onde houvesse espaço suficiente para montar uma embarcação de tamanho médio, espaços esses que até inícios do séc. XIV tinham o nome de “ribeiras” e a partir dessa altura ganharam o nome de “estaleiros” sendo já estruturas maiores onde se construíam “navios” e se guardavam as madeiras necessárias para a sua construção. O cronista Fernão Lopes usa pela primeira vez a palavra “stalleiro” na “Crónica de D. João I”.

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Reconstituição das Tercenas régias de Lisboa: com ampliação de quatro naves (à esquerda) durante o reinado de D. Afonso IV (c. 1355)

Ilustração de Nuno Fonseca

“As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca

 

A primeira referência documental à existência de tercenas régias em Lisboa, apenas surge no reinado de D. Dinis, em 1294, quando são referidas umas Casas das Galés pertencentes à Coroa, no contrato para a construção da muralha da Ribeira celebrado entre D. Dinis e o concelho.

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As “Drassanes Reials” de Barcelona (no século XX), que integram o Museu Marítimo de Barcelona

“As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Manuel Fialho Silva e Nuno Fonseca

Ao longo de todo o litoral do País, em quase todos os portos e nas fozes de rios, existiram ribeiras e estaleiros, uns mais famosos do que outros mas todos eles a produzirem embarcações, uns mais viradas para a pesca e cabotagem e outros mais para navios de longo curso. Os principais eram os seguintes:

 

Litoral NorteCaminha, Valença, Viana do Castelo, Esposende, Vila do Conde, Zurara, Pindelo, Estuário do Douro e Aveiro;

Litoral CentroBuarcos, Mondego, Foz do rio Liz e Vieira, Paredes, Portos de Alcobaça, Pederneira, S. Martinho de Salir, S. Martinho do Porto, Alfeizerão, Peniche e Atouguia da Baleira, Lourinhã, Lisboa (estaleiro da Ribeira das Naus com tercenas) e Estuário do Tejo;

Estuário do Sado e Costa AlentejanaSesimbra, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Nova de Mil Fontes e Odemira;

Costa AlgarviaLagos, Portimão, Faro e Tavira (com tercenas).

 

Depois, espalhados ao longo da costa e nas fozes de rios menores, existiam uma série de ribeiras esporádicas onde eram construídas embarcações para uso local.

 

7.4.2 - Os Carpinteiros e os Calafates

Para se exercer a profissão de carpinteiro naval e de calafate era exigido um exame que de início era feito perante um representante do rei e já no fim do séc. XIV era feito nos estaleiros na presença de um “mestre de carpintaria” que lhes fazia um exame e lhes passava uma certidão comprovativa que permitia a nomeação por alvará régio.

Também existia um “mestre de calafates”, pelo menos desde 1395. Em 1492 trabalhavam na “Ribeira das Naus” em Lisboa entre 100 a 300 carpinteiros navais e em 1503 um total de 200 calafates-

Também uma terceira profissão aparece mencionada, em relação às galés, como “petintais” que eram, ao mesmo tempo carpinteiros e calafates. Este ofício que estava associado às galés começou a extinguir-se no séc. XV com a diminuição do número de galés.

 

7.4.3 - Os Materiais de Construção

 

Eram variados os materiais usados na construção das embarcações. Embora o grosso das madeiras usadas na construção naval fosse na sua maioria cortada no reino muitos dos materiais também usados nessa construção eram importados. Estas importações eram isentas de taxas quando se destinavam á construção de naus com mais de 100 toneis, segundo carta régia de 1474 que nomeia os materiais isentos: “ não paguem dízima nem portagem de nenhuns tabuados, madeiras, liança, aparelhos, fio lavrado nem por lavrar, breu, resina, estopa, ferro, pregadura, qualquer pano para velas, âncoras, bombardas, pólvora, mastros, vergas, lanças, armas, gorguzes (1) e quaisquer outras coisas que sejam necessárias.

Na alfândega de Vila do Conde, à data, estão indicadas oito espécies de aprestos marítimos e de materiais que também eram normalmente importados: cabres (2), tomento (3), remos, guindaresas (4), bóias, adriças, vergas e polés (5).

(1) – Armas de arremesso, em forma de seta, que eram atiradas com uma espécie de “besta”.

(2) – Cabo mais grosso que o normal.

(3) – Parte sedosa e áspera da planta do linho.

(4) - Cabo que servia para laborar os guindastes antigos feitos com rodas de madeira.

(5) – Peça formada por dois moitões no prolongamento um do outro.

 

A proveniência principal era da Flandres e de Ruão. Os cabres vinham de La Rochelle e as bóias vinham da Irlanda. Outros materiais tais como alcatrão (de Londres, Flandres e Irlanda), fio (da Flandres, Galway e Ruão), breu (de Londres, Manga e Flandres), sebo (de Cardiff) e cordas (de Ruão). O ferro, era proveniente da Biscaia e da Flandres.

Também se importava madeira em especial para os mastros. As restantes partes do navio (cavername e forros) eram, segundo Fernando Oliveira construídas em madeira dura, o cavername (sobro ou na sua ausência podia ser azinho ou carrasco) e madeira branda, no tabuado (pinheiro-manso) O pinheiro bravo não servia para o tabuado porque é muito seco e apodrece em contacto com a água. Só é usado nas obras mortas em vergas, mastros e outras peças que requeiram madeira leve, branda e sem nós.

Apesar de Fernando Oliveira ter uma opinião negativa sobre o carvalho na construção naval, ele foi frequentemente utilizado principalmente nos estaleiros de Viana e Vila do Conde, região onde era abundante.

O pinho seria proveniente do pinhal de Leiria (embora hoje seja composto de pinho bravo – o que resta dele -  e D. Diniz não o tenha mandado plantar para esse efeito mas sim para criar uma defesa contra o avanço das areias), mas também das matas de Alcobaça, do Ribatejo e do pinhal de Alcácer. Mas a determinada altura, esta madeira começou a escassear e houve necessidade de recorrer à importação

As velas eram feitas de algodão importado do Oriente e de Génova, de lonas “Vitres” e “Pondavis” (de Vitré e de Pouldavy - Bretanha, França). O pano de “Treu” de linho, que era tecido no norte do país (Vila do Conde e outros lugares de Entre o Douro e Minho) tinha uma aplicação especial nas velas latinas e foi reforçado por alvará de 1556 tendo passado de 6 ou 7 cabrestilhos para 9 ou 10 (1 cabrestilho era formado por 24 fios) e em 1377 já tinha sido determinado que a largura deste pano deveria ser de “um palmo e dous dedos” (+/- 27cm)

O esparto, (uma gramínea perene) cultivada no noroeste da África e na parte sul da Península Ibérica era empregado no artesanato (cordas, cestos, alpercatas, etc.), existia em abundância no Algarve e, a certa altura do séc. XVI começou a rarear, tendo sido necessário importá-lo dos países nórdicos e da Espanha.

Os pregos que eram usados foram maioritariamente importados da Biscaia pois os pregos nacionais eram considerados como sendo de má qualidade. Tinham diversas designações tais como de “telhado”, “meio-telhado” “sátia” e “contares”. Uma carta de quitação relativa ao material que entrou e saiu no Armazém da Guiné entre 1480 e 1487 indica «… de pregaduras de telhado, 203.300; e de pregos de costados de caravelas, 310.246 …e de pregos de embraçar e cintar, 55.900 … e de pregos de rumo e meio telhado 5.450 … e de pregos estopares, 170.750 … e de pregos de meio telhado 12.300 …».

Santa paciencia para contar os pregos um a um!

 

Bibliografia consultada para este sector:

 

  • “Notas sobre a Tecnologia de Construção Naval nos Estaleiros Navais Portugueses do Século XVI” Paper

Carvalho, Carla; Fonseca, Nuno; Castro, Filipe Vieira de

  • “A Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XIII-XVI)

Martins, Adolfo A. Silveira

  • “Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499”

Pedrosa, Fernando Gomes

  • “Construção Naval em Madeira – Arte, Técnica e Património”

Câmara Municipal, de Vila do Conde

Actas do Congresso Internacional

  • “As Tercenas Régias de Lisboa: D. Dinis a D. Fernando”

Silva, Manuel Fialho; Fonseca, Nuno (Ilustrações)

Actas XV Simpósio de História Marítima

 

 

E por hoje é tudo

 

(continua)

 

 

Bons ventos e …

Um abraço