03.11.22
67 - Modelismo Naval 7.2.2 - Dois mini Barcos - Caravela Latina de Três Mastros
marearte
(continuação)
Caros amigos
« Pelo que diz respeito ao aparelho e manobra das caravelas, em especial no século XVI, remetemos para a obra, quase exaustiva de Quirino da Fonseca "A Caravela Portuguesa", com a indicação de que o problema longamente debatido entre este autor e Gago Coutinho - o da verga por fora ou por dentro da enxárcia - é resolvido a favor de ambos.
Com efeito, Marcos de Aguilar (1625-1640) afirma que as "mezenas são vellas latinas, porem marcaosse com diferença das caravèllas, porque en estas andão as vellas por fora da enxarcea, e para virarem andam as verguas por anteavante dos mastros, e não còzem bem de loo, e para o fazerem larguão a enxarcea a gilavento: o que fica pello contrario em as vellas latinas na arte redonda, porq as vèlas andão por denro da sua enxarçea".
Houve, assim, as duas espécies de aparelho em circunstâncias diferentes, mas o estudo de toda a documentção escrita e gráfica mostra que pelo final do século XV e início do seguinte houve algumas caravelas com a verga por dentro da enxárcia e que é muito mais abundante a representação com verga por fora, o que nos leva a crer que este era o aparelho mais comum e que talvez dependesse do porte, um ou outro dos dois tipos, porque nos caiaques algarvios, de dimensões muito próximas das caravelas de 50 tonéis, a verga anda por dentro da enxárcia, conforme mostram as ilustrações apresentadas por Alberto Iria no seu "As Caravelas do Infante e os Caiaques do Algarve" e a lição de Quirino da Fonseca.
Há, porém, uma importante particularidade do aparelho, da qual já falamos e que, quanto a nós, é a caracteística fundamental da caravela, a dimensão das vergas latinas, que alcança o dobro do normal do navios latinos do Mediterrâneo. Esta característica, conjugada com as proporções do casco, explicaria as notáveis qualidade náuticas da caravela, já gabadas por estrangeiros conhecedores do navio latino, como Cadamosto. »
"Arqueologia Naval" de Pimentel Barata
Réplica do Caiaque "Bom Sucesso" - Olhão - Algarve
( que partiu de Olhão e chegou ao Brasil em 1808, para informar o Rei D. João VI do levantamento popular que conseguiu a expulsão das tropas napoleónicas)
(A) - Os brandais que sustentam os mastros são fixos (2) as vergas trabalham por dentro dos brandais
Caravelas 4
Esta iluminura apresentada em baixo, da primeira metade do século XVI, representa nitidamente uma caravela latina de três mastros (embora na legenda da estampa publicada no livro de "Arqueologia Naval" de Pimental Barata, conste que é uma caravela de dois mastros, nitidamente um erro de legendagem).
Caravela Latina de 3 mastros
1 - As vergas trabalham por fora dos ovéns (brandais). Vela em "balão"
in: Vista de Lisboa. Biblioteca da Universidade de Leiden , Países Baixos (meados do século XVI)
Nota: por vezes chama-se ao conjunto de cabos que seguram os mastros para os bordos, nos navios de velas latinas, de "enxárcias" o que é técnicamente incorrecto já que as "enxárcias" são compostas pelos cabos verticais, que tomam o nome de "ovéns" ligados entre si por "enfrechates" (também "enfrexates), que são os degraus da escada que estes formam e que dão acesso às velas redondas.
Comparando-a morfologicamente com a caravela de dois mastros, esta também tem um Castelo de Proa reduzido praticamente a uma cobertura atendento à manobra da verga do grande, mantem uma mareagem baixa (altura que vai do convés até ao topo da amurada, medida pelo exterior), com um Castelo de Popa com tolda (convés coberto) e alcaçova aberta com uma mareagem e com uma ou duas cobertas. Poderia ter um porte por volta dos 60 a 80 tonéis (100?) que correspondia a 11 Rumos de quilha (16,50m).
Quanto ao aparelho de manobra das caravelas, particularmente no século XVI, a questão de como é que as vergas trabalhavam no mastro, se por dentro, se por fora dos brandais, (A) fixos ou (B) volantes, tem dado azo a alguns debates acesos, como aquele que houve entre Quirino da Fonseca, autor do livro "A Caravela Portuguesa" e o Almirante Gago Coutinho, em 1933. A manobra de "mudar de bordo", entre estas duas configurações, é substancialmente diferente.
Aparentemente, recorrendo ainda à iconografia existente sobre as caravelas, tanto podia ser por dentro como por fora e até, atendendo à mesma iconografia e confirmando com a prática atual na navegação em barcos de vela latina, o mudar a verga de bordo pode não se fazer quando se bolina, passando a navegação alternadamente, nas diferentes bolinas, a ser feita, umas vezes com a vela em balão e seguidamente, manobrando com o leme para mudar o bordo da direção do vento, com a vela contra o mastro (ou brandais) ou vice-versa. Tudo é possível! E nada é defintivo!
Nas Querimbas e penso que em toda a costa de Moçambique, também se bolina mas a mudança de bordo faz-se como a última opção anterior. Pelo menos, nós faziamos assim! Contra o mastro ou em balão! Possivelmente esta manobra tirava rendimento ao barco, mas era mais simples. Até porque o barco não era uma caravela!
Marcos Aguilar assim o diz nas "Advertençias de Naveguantes" de 1640 e Pimentel Barata confirma que houve as duas espécies de aparelho, possivelmente em circunstâncias diferentes, pois o estudo de toda a documentação gráfica e escrita mostra que houve algumas caravelas com verga por dentro dos brandais mas que é muito mais comum a verga por fora dos brandais.
Caravelas, da carta de Juan de la Cosa
2 - Vergas por dentro
Caravelas do mapa de Juan de la Cosa (1500).O único documento gráfico em que claramente se vê que a verga ando por dentro dos brandais, como se nota pela reentrãncia das velas, à altura do cruzamento com o mastro.
Também, no Glossário "Early Modern Iberian Ships - Tentative Glossary", editado pelo "J.Richard Steffy Ship Reconstruction Laboratory" da Texas A & M, dirigido por Filipe Castro, um glossário de termos ligados à Arqueologia Náutitca (em Português, Espanhol, Catalão, Francês, Italiano, Inglês e Holandês), que está a ser editado e atualizado periódicamente, na "Part 3 - Rigging - Latteen Sails" diz:
"A verga das velas latinas pode ser montada por cima (1 - fora) ou por baixo (2 - dentro) dos brandais, e isso determina como a embarcação muda de bordo: ou passando o carro da verga por ante a ré (por detrás) do mastro (se estivar montada sob os brandais), ou passando o carro da verga por ante a vante (pela frente) do mastro (se estiver montada por cima dos brandais). Alguns navios com vela latina, não mudam de bordo ao virar: Navegam com a (3 - vela contra o mastro)."
3 - Navegando com a vela contra o mastro
Na sala dos Descobrimentos do Museu de Marinha em Lisboa, existem, se não me engano, dois modelos de caravelas cujos brandais têm a configuração aqui apresentadada. É possível serem desmontados pois possuem uma ligação (um "botão"?) que pode ser aberto e desliga o brandal da amurada. Nunca tinha visto esta configuração e não sei como é que aparece. Tem lógica se for para transformar os brandais, em princípio fixos, em brandais volantes e talvez seja uma resposta ao que Marcos de Aguilar explica? nas "Advertências aos Navegantes" sobre a manobra de "virar de bordo" : "... e para virárem andão as verguas por antavante dos mastros, e não còzem bem de loo (barlavento) e para o fazerem larguão a enxarçea de gilavento (sotavento)". Seria uma forma de mais fácilmente manobrar a verga? Sinceramente, não sei. Estes botões também existem nas orças, percebendo-se que serviam para, com facilidade, trocarem de bordo a fixação das mesmas.
Os "botões" rápidos de algum aparelho fixo e de laborar
Bolinar
A principal vantagem do aparelho latino, tem a ver com a maior ou menor possibilidade de fazer rumo, com vento para vante do través. E isto pode ser conseguido através da "bolina". Bolinar é um termo de origem náutica (italiano) e que significa navegar sem ter uma direção precisa, navegar em ziguezague; bolinar é o mesmo que navegar à bolina. Como termo náutico, bolinar também pode ter o significado de alar com a bolina, ou seja, alar com o cabo que fixa a vela do barco de modo que ele se possa posicionar na melhor forma possível para que tenha um melhor aproveitamento do vento durante a navegação. No entanto, o termo também tem outros significados, não náuticos.
Mareações e limites de bolina do navio latino
Mareações e limites de bolina do navio redondo
Comparando os limites da bolina entre os navios de pano latino e os navios de pano redondo, a possibilidade de chegar a proa ao vento é, no navio com pano latino, de 45 graus (4 quartas) ou um pouco mais enquanto no navio com pano redondo a referência regula pelos 67,5 graus (6 quartas).
Esta diferença do ângulo da bolina entre navios com pano latino e navios com pano redondo tem, como principal razão, a maneira como as respetivas vergas se encontram dispostas a bordo. No primeiro caso, o pano é envergado no sentido longitudinal (proa-popa), o que possibilita mais facilidade numa navegação mais chegada ao vento enquanto que no segundo caso, as velas estão envergadas no sentido transversal (bombordo-estibordo) o que acarreta mais limitações às possibilidades da bolina.
Para ir de um ponto A, para um ponto B, com vento para vante do través, a técnica usada com vela latina é fazer esse percurso de forma faseada, fazendo bordos em zig-zag, com duração a mais igual possível e com a proa do barco o mais chegada à linha do vento. No ponto julgado preciso, muda-se de bordo sem perder o andamento o que, nas caravelas, principalmente nas de dois e três mastros (e noutros barcos), exigia a melhor sincronização sob risco de falhar a manobra. Os bordos continuavam pelo tempo necessário ao atingimento do ponto previamente estipulado.
Para mudar o sentido do zig-zag alternadamente, nas caravelas, havia a necessidade de mudar também o lado onde as vergas ficavam colocadas em cada um dos bordos. Essa manobra, que era feita de uma forma o mais sincronizada possível, que conjuga o trabalho de leme e do posicionamento das vergas é o que se chama ...
... "Mudar de Bordo" ...
... tanto pode ser feita passando o vento pela popa do navio, manobra que se chama "virar em roda" usada maioritáriamente pelos navios de velas redondas, ou passando o vento pela proa do navio, "virar por davante" usada maioritáriamente pelos navios de velas latinas. Ambas as manobras são possíveis de ser usadas pelos dois tipos de navios, dependendo das circunstâncias.
Manobra de virar por davante no navio de pano latino
A manobra de virar por davante, que está exemplificada na figura anterior é bastante simples e sem grandes complicações de execução, embora exija sincronização e atenção ao aumente da tendência para o orçar do navio, a fim de não perder barlavento. Muito dificilmente esta manobra corre mal mas, o que pode correr mal será:
- Excessivo ângulo inicial ou má gestão do leme até o pano ficar sobre;
- Acção extemporânea de carregar o leme ao bordo contrário, no momento em que o navio se encontra quase aproado ao vento.
Esquema da sequência da manobra de virar por davante
Mas nas caravelas, uma operação não tão fácil nesta manobra, era a da passagem da (s) verga (s) de um bordo para o outro e aqui entra o pormenor se a verga trabalha por dentro ou sobre os brandais.
Explicar esta manobra, que não sendo de difícil execução acaba por ser menos fácil de dizer do que de fazer, levou-me a "fabricar" um "modelo" de um verga latina e aplicá-la num "simulador" para exemplicar as manobras.de "Mudar de Bordo".
Para começar, a nomenclatura necessária para a explicação é a que se encontra identificada no desenho anterior, a saber:
1 - A verga é composta de duas metades. A superior, a "antena!, mais fina e a inferior o "carro" mais grossa, o que lhe confere maior peso e consequentemente exige menos esforço para se deslocar no movimento longitudional necessário para a manobra. O "carro" fica sempre ante a vante do mastro; e a verga articula-se com o mastro, principalmente por um aparelho que se chama "enxertário", uma espécie de colar com uma ou mais fiadas de contas que "abraça" o mastro e está ligado, por um qualquer sistema com flexibilidade preso à verga, que pode deslizar ao longo do mastro
2 - Esta deslocação da verga para baixo e para cima ao longo do mastro é feita com o auxílio de uma "adriça", um cabo de manobra que pode estar em duplicado dizendo um para bombordo e outro para estibordo;
3 - Ao "carro", pela parte mais inferior, ligam-se dois cabos de manobra, as "orças", uma por cada bordo, que o mantêm orientado e fixo conforme as necessidades de navegação;
4 - A "antena" encontra-se ligada aos "guardins", um cabo por bordo, pelo terço do seu comprimento a contar do "penol"; que a mantêm fixa conforme as necssidades de navegação;
5 - O "pique", é um cabo que mantém o grau de inclinação vertical da verga (maior ou menor) em relação ao mastro;
6 - A "escota", cabo de "governo" da vela ligado ao "punho da escota" que, normalmente é dupla, dando uma para bombordo e a outra para estibordo e que serve para orientar a vela conforme o vento;
7 - As "carregadeiras", são cabos que trabalham entre a verga e a "esteira" da vela e servem para carregar o pano de encontro à verga em algumas manobras que necessitam de menos pano ao vento (como por exemplo a de "mudar de bordo");
8 - Por último, não está escrito no desenho mas os "brandais", que são os cabos do aparelho fixo (que podem ser fixos ou volantes) que sustentam para os bordos os mastros latinos também entram nesta equação.
Antes do início desta secção do Post - a Bolina - está uma fotografia de "botões rápidos" aplicados em brandais. Depois de usar o "simulador" que construí, apercebi-me que a sua utiidade é enorme e tinham muita aplicação nas operações das manobras de "mudar de bordo" já que agiliza algumas delas e podem ser aplicados tanto nos brandais (não muito óbvio), mas principalmente no liga-desliga das "orças" e dos "guardins"-
Vamos então ver? o...
"Mudar de Bordo"
1 - Este é o "simulador" em que é possível seguir, passo a passo as várias operações da manobra e aferir da exequibilidade das indicações que aparecem escritas em várias fontes. Ao princípio tinha uma vela envergada e os cabos estavam todos artilhados "comme il faut", mas comecei a não ter espaço para tanta coisa, além de que os pormenores, principalmente a vela, encobriam as restantes coisas e dificultavam em vez de facilitarem. Acabei por desistir e passei ao "minimalismo". O máximo de simplicidade e de funcionalidade. E foi isto que restou!
Verga por dentro (entre o mastro e os brandais)
2 - A verga trabalha no mastro por debaixo dos brandais;
3 - Na fotografia 1, o que se simula é uma caravela em plena navegação, a bolinar com vento vindo por ante do través de bombordo e a caravela está a chegar ao fim de um bordo; para mudar de bordo a primeira tarefa será, usando as "carregadeiras" que houver, levar o pano da vela de encontro à verga afim de diminuir a resistência ao vento na medida do necessario (depende do vento) para efectuar a manobre e depois, aliviar os cabos indicados ligados à manobra. Neste caso, os "guardins" e as "orças". Este "aliviar" é na realidade mais do que isso, porque "desligar" foi o que eu fiz no simulador, jã que só se consegue continuar com os cabos "desligados". E vivenciando "mentalmente" a operação cheguei à conclusão que, realmente, os cabos referidos têm que ser mesmo desligados. Como estão ligados ao fixe através de "colhedores", desfazer esta ligação seria moroso e mais moroso ainda seria refazê-la. Pois então, parece que a palavra chave é "botão" (eu continuo a chamar-lhe assim pois ainda não encontrei nenhuma informação escrita sobre esta "sofisticada tecnologia"). Então será: carregar a vela, aliviar os colhedores, "desabotoar" os cabos ficando os aparelhos de tensão ligados ao fixe e os restantes cabos ligados ao "carro" e á "antena" da verga, que só fica presa ao mastro.
4 - A operação seguinte é "empurrar" o "carro" da verga - que roda pela junção com o mastro, pondo-a na vertical do mesmo, operação esta que pode ser auxiliada pelo uso do "pique" e que, se a verga estiver bem calibrada em termos de distribuição de peso, quase que se faz sózinha já que, o peso do "carro", a empurra em direção ao mastro.
5 - A verga na vertical junto ao mastro e o passo seguinte é mudá-la para o outro bordo por ante a ré do mastro.
6 - Efectuada a mudança de bordo práticamente é só fazer as operações inversas. "Abotoar" os "guardins" e as "orças" aos respectivos fixes por cada bordo, aliviar as carregadeiras, que deviam de estar em tensão, deixando o pano enfunar, afinar a mareação pretendida e ... continuação de boa viagem.
Verga por cima (por fora dos brandais)
8 - Se a opção de navegação no que diz respeito à posição das vergas em relação aos brandais for a que elas trabalhem por cima deles, as operações são as mesmas ...
9 - ... Até ao passo de passar a verga para o outro bordo que, nesta situação, muda de bordo ante a vante do mastro
10 - E segue viagem.
Ficam-me algumas dúvidas que só serão resolvidas se um dia fizer uma viagem numa caravela que ande à vela. Não a motor, como a maioria das réplicas que para aí andam "turisticamente" a navegar!
Para quem estiver interessado, deixo aqui ficar 2 vídeos do "Museu de Marinha" sobre barcos, claro:
( "click" no endereço )
1 - "Caravelas e Naus e um choque tecnológico no Século XVI" - Vídeo
2 - "Uma Viagem na Carreira da Índia cerca de 1600 – Filipe de Castro – Museu de Marinha"
Apresentação Slides
https://www.academia.edu/48808539/Webinar_Museu_de_Marinha_8_de_Abril_de_2021Via
3 - "Museu de Marinha – Modelismo Naval – Carlos Montalvão Machado" - Vídeo
(continua)
Bons Ventos e...
Um Abraço