22.10.22
65 - Modelismo Naval 7.1.2 - Dois Barcos - Caravela Redonda ou de Armada
marearte
(continuação)
Caros Amigos
"Aqui me lembra, e quero o dizer, antes que me esqueça, que nunca me pareceo bem, fazer de carauella navio redondo, diga cad (sic) hum o que quiser, que tudo seraa afeyçoado: por que, mudando-se a forma da uela, cumpre mudar se a fabrica do fundo: a qual jaa então não pode ser mudada: nem o mestre pode fazer na sua estimativa os discursos aqui necessarios". sic
"E por tanto, as carauellas, e zabras das armadas, devem ter milhor liame, que as merchantes". sic
in: "Arte da Guerra do Mar", OLIVEIRA Fernando,
(escrito c.1555)
Edições 70, Lisboa 2008
Caravelas 2
Apesar de todos os elogios traçados à "Caravela Redonda" por vários navegadores da época, o Padre Fernando Oliveira tece fortes críticas a este tipo de navio como produto híbrido entre um navio redondo e um latino que, não sendo nenhum deles, terá restrições no seu uso, dificuldades acrescidas na sua manobra e uma menor resistência. Na "Arte da Guerra no Mar", publicada em Coimbra no ano de 1555, tal está patente, conjungando o que ele diz nas duas citações acima (entre outras) sobre a adaptação de um navio latino a velas redondas.
E terá razão, atendendo a vários fatores dos quais, não é desprezível o fato de que as primeiras Caravelas de Armada, nasceram possivelmente, como foi dito no anterior Post, da transformação de "Caravelas de 3 mastros" já existentes, mudando o aparelho do traquete para redondo - o que poderia dificultar a manobra de "virar por davante" que consiste em passar o vento para o bordo oposto, pela proa do navio, manobra essa aconselhada em navios de pano latino que é maioritário nesta caravela.
Por outro lado, 2 velas redondas enfunadas no traquete - a vela do Traquete e a vela da Gávea do Traquete - e 1 no Gurupés - a vela da Cevadeira - que aconselham a passagem do vento para o bordo oposto pela linha de popa - "virar em roda" - manobra que apesar de tudo oferece pouco risco e nem exige grande coordenação ao contrário do virar por davante, torna difícil uma opção entre uma e outra manobra, possivelmente com privilégio para virar por davante, já que dois dos três mastros têm velas latinas.
No entanto, lendo melhor o que é dito pelo padre Fernando Oliveira, pode-se concluír que ele se refere a Caravelas Redondas adaptadas e não à "fabicada" de raíz. Nas adaptadas, haveria sem dúvida alguma mais um problema que era o da robustez das estruturas interna e externa da caravela que estavam sujeitas a maiores esforços, não só de navegação como também de "ação".
Como se viu, a Caravela Redonda foi-se adaptando e sofreu toda uma transformação em relação ao prototipo inicial - mais um mastro latino, que deve ter levado a um consequente aumento da quilha para assentamento de quatro mastros, a construção à proa de um castelo, possivel por já não haver uma verga latina no mastro da proa e possíveis reforços a nível dos conveses e do casco tendo em conta o armamento que passou a ser portadora e também o esforço acrescido.
Para a navegação com vento para a ré do través, a vela redonda é insubstituível e com vento pela vante o mesmo se pode dizer das velas latinas. Uma combinação possivelmente não óptima mas boa! Tudo isto aconteceu nos finais do século XV. A avaliar pelo periodo em que foram utilizadas como navios de guerra, hidrográficos e de transporte, até meados do século XVII, nomeadamente na Carreira da Índia, o seu uso foi de grande valia para os interesses portugueses. Existe notícia que, em Portugal em 1656, ainda existia uma força naval constituída por navios deste tipo.
Vamos então ver...
O Modelo da "Caravela Redonda"
...construído de raiz, no século XXI
1- Modelo da "Caravela Redonda ou de Armada" com 8cm da roda de Proa à roda de Popa, vista por Estibordo
2 - Vista pela Amura de Estibordo onde se pode identificar, da Proa para a Popa, o Gurupés e os mastros do Traquete, do Grande, da Mezena e da Contramezena.
3 - Vista pela Proa onde se pode identificar a Vela da Cevadeira pendente do gurupés.
4 - Vista pela Proa - O mastro do Traquete com as velas do Traquete (inferior) e da Gávea (superior)
Naus e Caravelas Redondas na 4ª Armada da Índia de D. Vasco da Gama em 1502 - Livro de Lisuarte de Abreu
Da esquerda para a direita e de cima para baixo., contando com a nau perdida. Seis Caravelas de Armada: a 2ª, 4ª, 5ª, 8ª, 12ª e 14ª-
5 – Vista geral da caravela, tirada pela amura de bombordo, onde aparecem pormenores do aparelho fixo e do de laborar
6 – Vista da caravela pelo través por barlavento onde se podem ver os cabos de laborar caçados (tesados)
Toponímia da Caravela Redonda - 1
Aparelho Fixo, Aparelho de Laborar e Cesto da Gávea
Aparelho fixo:
À proa, estai do Traquete e estai da Gávea do Traquete;
À popa, estai da Contramezena;
A bombordo e estibordo:
Enxárcia que sustenta para os bordos o mastro do Traquete;
Brandais (Ovéns) que sustentam para os bordos os mastros do Grande, da Mezena e da Contramezena.
Aparelho de laborar:
Das Vergas:
Orças no carro e Guardins na antena para cada um dos bordos
Das Velas:
Escotas para cada um dos bordos (com exceção da Vela da Contramezena que só tem uma escota ligada ao botaló.
Cesto da Gávea:
Na junção do mastro real do Traquete com o mastaréu da Gávea do Traquete.
7 – Na proa do barco pode ver-se o “beque”, uma espécie de varandim que funciona como plataforma de trabalho (a saliência que se projeta da proa para a frente) que por vezes é, erroneamente chamada de “esporão”. Embora a Caravela Redonda seja um navio de guerra e os navios de guerra (principalmente de remos) terem, por vezes, um “espigão” que se projetava da proa e que servia para abalroamento dos navios inimigos, esta Caravela, essencialmente de guerra, não tinha “esporão” pela simples razão de que a constituição morfológica do navio não o permite. O aparelho redondo exige, para reforço do aparelho fixo da estrutura dos mastros, a existência do “gurupés” à proa, que tem como principal finalidade fazer o fixe de toda a estrutura do arvoredo do navio, dando-lhe a solidez necessária. Seria absurdo que um navio destes tivesse “esporão” por isso ir pôr em causa toda a estrutura do navio, pois o mastro do “gurupés” seria o primeiro a ser afetado. Seria um tiro no próprio pé. O mesmo é válido para o dito “esporão” que aparece nos Galeões.
No mastro do Traquete pode-se notar, na altura da ligação do mastaréu da gávea com o mastro do traquete a existência de um “Cesto da Gávea”, que servia de posto de observação elevado abrangendo um maior horizonte para todos os lados, bem como a existência de “enxárcias” (cabos de sustentação vertical do mastro (“ovéns” – cabos – ligados entre si por “enfrechates” – degraus) que, além da sua função primária de sustentação do mastro também serviam para acesso ao aparelho vélico já que, a faina com aparelho redondo assim o obriga.
Toponímia da Caravela Redonda - 2
Mastros, Vergas e Velas
As velas e vergas redondas que neste navio existem só no Traquete e no Gurupés tomam o nome, no Traquete, de baixo para cima: Verga e Vela do Traquete e Verga e Vela da Gávea do Traquete e no Gurupés, Verga e Vela da Cevadeira.
As velas e vergas latinas tomam o nome dos respetivos mastros onde envergam: Verga e Vela do Grande, Verga e Vela da Mezena e Verga e Vela da Contramezena.
8 – Vista pela alheta de bombordo (neste caso barlavento, pois a configuração do aparelho indica que é desse bordo que sopra o vento) o que permite observar a mastreação latina da caravela (mastros e vergas), bem como os cabos que sustentam os mastros (aparelho fixo – “brandais” / "ovéns)" - alguns navios têm os chamados "brandais volantes") e os cabos de manobra das velas (aparelho de manobra), as “orças”, os “guardins” e as “escotas” bem como a forma das vergas das velas latinas que, pelo seu grande tamanho, são normalmente compostas por duas peças unidas por sobreposição, tomando a metade superior a nome de “antena” e a inferior o de “carro”, sendo este último muito mais grosso que a “antena”, que lhe confere um peso maior, o que auxilia bastante o equilíbrio nas manobras de virar de bordo. Estes navios (caravelas no geral) navegam à “bolina”, o mais cingido possível ao vento (dependendo do rumo que tomam em relação ao vento), o que obriga a frequentes mudanças de bordo para manter determinado rumo, o que é feito colocando as vergas latinas na vertical (com a “antena” para cima) e, fazendo eixo no ponto de fixação da “verga” ao “mastro”, folgando o necessário para a manobra, o “carro” é passado de um bordo para o outro do navio, pele frente ou por detrás do mastro, consoante as vergas trabalhem por cima, ou por debaixo do ponto de fixação dos brandais no mastro. É um trabalho pesado (íssimo) para os marujos, não só porque é feito em pleno andamento com vento, como principalmente, porque é necessário ser efetuado amiúde numa viagem.
9 - Vista pela popa onde se pode notar o “leme” e o “botaló”, (o pau que sobressai da popa) que serve para passar o aparelho da escota da vela da contra mezena
10 – Outra vista pela popa
11 – Vista pela alheta de estibordo, onde se pode observar o aparelho da “escota” da vela da contramezena bem como os “guardins” ligados nas antenas das vergas das três velas latinas.
12 – Normalmente, os cabos que sustentam as velas pelo punho (“escotas”) e os que manobram as vergas onde elas estão envergadas, vão mais caçados (tesados) do bordo de barlavento (de onde vem o vento) e mais folgados do lado de sotavento (para onde vai o vento), o que é visível com a escota da vela do Grande.
13 – A primeira viagem. Um “diorama” que pretende representar o navio a navegar no mar.
Nota: Uma das regras (de museu) do modelismo naval é o da representação, em “stand” estático, dos modelos geométricos de barcos, sem velas envergadas ou, no máximo, envergadas mas ferradas. Um barco para ter as velas enfunadas deve ter de estar incorporado num diorama.É uma regra que eu confesso ter alguma dificuldade em cumprir. Pode ser uma “chinesice”, mas aqui está!
14 - Nesta vista de través do bordo de estibordo, dois ou três pormenores chamam a atenção. Um primeiro é o “cintado” destes navios que era bastante forte para poder aguentar melhor bordadas de fogo e/ou abalroamentos por outros barcos. Tratava-se de uma “Nave de Guerra” e como tal era preparada para embates duros, mesmo em detrimento da elegância das Caravelas (os feitos de raíz).
Um outro pormenor é a capacidade de fogo que estava reunida numa Caravela de Armada. Em proporção ao tamanho do navio, o poder de fogo era elevado já que contava com 12 canhões médios a nível do convés principal (6 por bordo vendo-se aqui os seis de estibordo) e podia montar, nas amuradas e nos castelos de proa e popa “falconetes” ou outro tipo (canhões ligeiros) e na “tolda” (popa) podia ter mais dois canhões - muitas tinham - que defendiam à “ré” do navio.
Também sobressai a “mesa das enxárcias” do mastro do Traquete – uma por bordo – onde assentava a maioria do esforço exercido no mesmo pelo vento que era distribuído pelos “ovéns” de uma maneira repartida, bem como os degraus de uma escada para acesso ao navio no costado (nos dois bordos) que, pela sua pouca segurança, atesta a incomodidade da vida a bordo nesta época.
15 – A “amura” de estibordo vista pelo “través”.
16 – A amura de “estibordo” a ¾ da proa com o aparelho da vela de “cevadeira”, vendo-se "pendurada" na estrutura do “beque” uma das duas âncoras usualmente a bordo (onde, em princípio, num qualquer paiol do navio, existiriam mais armazenadas para substituição das perdidas, já que a perda de âncoras era um episódio bastante comum). O acesso à plataforma do “beque” quer para manobras com as âncoras quer para a faina normal de navegação, fazia-se por uma portinhola que ligava à “abita” do “castelo de proa” do navio ou, por uma simples escada de corda que era largada do tombadilho do castelo de proa, para baixo, o que era o caso desta caravela.
17 – O “aparelho fixo” específico do traquete composto por 5 “ovéns” que ligam ao topo do mastro, cada um fixo à “mesa das enxárcias” por duas “bigotas” unidas por “colhedores” que são ajustados através dos 3 orifícios das “bigotas" por uma cabo de tração com o nome de “tirador”. Os “ovéns” estão ligados entre si por “enfrechates”, neste caso em cabo, formando uma espécie de escada que, além de aumentar a resistência do conjunto, proporciona o acesso às duas velas, para manobra.
18 – O “aparelho fixo” das velas latinas tem a mesma finalidade das “enxárcias” ou seja, aguentar para os bordos os mastros que suportam as vergas das velas latinas. No entanto, a função de facilitar o acesso ás velas latinas deixa de ser necessária pois toda a manobra é executada com base no convés.
19 – O “Castelo de Popa” com "tolda" onde se encontravam instalações - entre elas o alojamento do capitão - cobertas com um "pavimento".
20 – A “contramezena”
21 – Depois desta grande viagem, tendo enfrentado piratas e corsários, sarracenos e gentios, tempestades e baixios, a “Caravela Redonda ou de Armada”, com o seu dever cumprido, passou a figurar em modelos, alguns em museus e outros nas mãos de quem necessariamente tem uma certa paixão pelas coisas do mar, pelas suas máquinas e pelas suas gentes. Apesar de tudo, este foi um bom tempo!
22 – A nossa caravela tanto podia estar nos “mares do Índico” para proteção das “Armadas da Pimenta” de ataques dos “Sarracenos” como, talvez a pairar nos mares dos Açores entre as Flores e a Horta, a aguardar a vinda das “Naus da Carreira da Índia” carregadas de especiarias para as defender dos frequentes ataques dos corsários/piratas Ingleses e Franceses ou então, no mar do Norte de África entre o Estreito e a Ponta de Sagres em missão menos mercantil de proteção das populações da costa Portuguesa contra ataques de piratas Árabes.
Na sequência desta, irei publicar no próximo post a outra caravela que faz parte deste par - a "Caravela Latina de 3 mastros" que, na opinião de Francisco Contente Domingues, foi possívelmente a base onde a "Caravela de Armada" foi "enxertada".
ERRATA
No Post anterior, o nº 64, escrevi que as "cubertas", nos barcos à vela de antigamente, ao contrário de na atualidade, eram contadas de baixo para cima e não de cima para baixo. É verdade a nível mundial que assim era. Só que em Portugal, já nessa altura, a contagem era feita do convés para a quilha, (de cima para baixo) como hoje se faz. As minhas desculpas por esta falha.
(continua)
Bons ventos e...
Um Abraço