30.10.22
66 - Modelismo Naval 7.2.1 - Dois mini Barcos - Caravela Latina de Três Mastros
marearte
Caros Amigos
(continuação)
"Por 1430-1440 os Portugueses concebem e constroem a caravela dos Descobrimentos e com ela aperfeiçoam outros dois meios técnicos: a navegação astronómica e a cartografia. Mas há uma consequência da construção da caravela praticamente ignorada dos historiadores do navio de vela e que influi no quarto meio técnico, que é o navio de aparelho redondo. Entre 1435 e 1440, os construtores portugueses de caravelas introduzem nos estaleiros do duque de Borgonha, Filipe, o Bom, cunhado do infante D. Henrique, a técnica de construção do casco de forro liso, conhecido no Norte da Europa por "carvel building*", "Kraweelbauweise", etc. Esta técnica conhecida no Mediterrâneo há milhares de anos, permitiu a construção de cascos de grandes dimensões e muito robustos, o que não se alcançava com a tradicional técnica nórdica do forro trincado: há uma das mais importantes revoluções tecnológicas. Em dez a quinze anos a nova técnica difunde-se pelos estaleiros do mar do Norte e por 1450 já o navio nórdico de um mastro redondo, ou mais outro latino, que não passava das 100t a 150t - a "coca" -, tem três mastros e alcança as 200t a 250 t. Para o final do século XV surge o protótipo do navio de aparelho redondo, com três mastros e os castelos já parte integrante do casco. O navio atinge as 250t a 300 t e tem o aparelho com as características essenciais que se conservam até aos nossos dias.
in: "Estudos de Arqueologia Naval" - Volume II; BARATA, João da Gama Pimentel; Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Lisboa, 1989; p.-15
Comunicação apresentada no "Colóquio Internacional sobre as razões que levaram a Península Ibérica a iniciar no século XV a expansão mundial", Lisboa, 11-16 de Abril de 1983.
*Comparação da construção em "Clinker" (Norte da Europa) com a construção em "Carvel" (Mediterrâneo)
Uma viagem em "dhow" pelas "Quirimbas"
ou
Recordar as Caravelas no século XXI
Existe em Moçambique uma embarcação com vela latina que são os “Dhows” (botes à vela), que se encontram espalhados desde Quionga na foz do Rovuma no norte, junto à fronteira com a Tanzânia, até à Ponta do Ouro, no sul, na fronteira com a África do Sul e cujo nome vai variando de região para região ao longo da costa.
Quando cheguei a Moçambique em 1963 como militar, fiquei deslumbrado com toda a marginal de Lourenço Marques que ia, na altura, até à aldeia dos pescadores na Costa do Sol - que eu percorri logo nos primeiros dias integrado num grupo recém-chegado - onde me deparei com uma série de barcos de pesca que tinham o aspeto da fotografia a seguir. Na altura foi-nos dito que estes barcos usavam vela latina triangular desde a chegada dos portugueses – armada(s) de Vasco da Gama – a Moçambique, que tinha na sua frota caravelas. Fazia uma ideia diferente deste assunto mas, sendo recém-chegado, guardei a minha interrogação comigo e não quis pôr em dúvida um Major. Não convinha!
Bote à vela, tipo “Dhow” no Índico - Costa de Moçambique
(Ilha de Moçambique)
De fato, estes barcos são parecidos com as caravelas (a maioria dos “dhows” são de um mastro mas existem de dois mastros e até de três mastros a navegar na costa de Moçambique – encontrei, na minha viagem pelas Quirimbas, um "dhow" de três mastros, um bocado para o degradado, a navegar muito ao largo da ilha do Ibo, em pleno mar alto no sentido sul, que vinha de Zanzibar, barco já conhecido da minha “tripulação” que, segundo me informaram, era um transporte misto de passageiros e carga que fazia este trajeto mensalmente (se possível), para a Beira. Um fato histórico é que, na zona das águas do Índico, na costa Oriental de África, antes dos portugueses chegarem, já por lá andavam outros povos e toda a costa Suaíli tinha "dhows" a navegar há séculos, barcos esses que eram impulsionados por velas iguais às que eu estava a ver e que eram de origem árabe.
Em 1992, quando fiz uma missão de quatro anos como consultor da Cooperação Técnica Alemã (GTZ) no Maputo, durante duas semanas em 1993 - 12 dias de paragem do projeto para negociações "diplomáticas" entre a Embaixada da RFA e o Governo Moçambicano - fui para Pemba (ex-Porto Amélia) e aluguei um “dhow” particular, por intermédio do Clube Naval do Maputo e de alguém, de quem não me lembro do nome, do Clube Naval de Pemba, "dhow" esse parecido com o da fotografia acima (ligeiramente maior - 11m - e com um toldo central em lona impermeabilizada para protecção contra o sol e chuva) - uma lona que funcionou também como “tenda” nas noites em que dormimos na praia em ilhotas desertas, pois o "cacimbo era mato". Estava bem equipado com arcas/banco onde se podia guardar tudo, além de uma caixa estanque para equipamento mais sensível. Tinha incorporado na estrutura, uma consola onde se encontrava uma bússola (que funcionava) e uma sonda numérica (que deixou de funcionar logo no primeiro dia). Também não fez falta pois toda a navegação foi feita a "olhómetro" pelo mestre Vicente - conhecenças e experiência! Tinha um pormenor interessante. A cana do leme do barco era feita de pau-preto esculpido em arte Maconde que contava uma história (ao estilo ”Ujamaa" - histórias de família) na qual só me lembro que entrava um pescador, uma tartaruga e uma baleia e outras personagens de que já não me lembro. Tudo isto á volta da cana do leme que tinha para aí 1,5/2 m e estava esculpida quase na totalidade. Uma obra de arte que não me importava de ter.
Um pormenor interessante, foi que nunca cheguei a saber se este bote/"dhow" estava registado em Moçambique ou se era da Tanzânia, pois era práticamente novo e aparentemente não estava matriculado em nenhum porto de Moçambique ou, pelo menos, não tinha nenhuma placa de matrícula nem nome, como os outros. O dono, comerciante indiano ou mais provavelmente paquistanês, embora falasse algum português, falava muito melhor inglês e "suaíli" e quando lhe fiz esta pergunta, deixou de falar português e Inglês. Só "suaíli". A única coisa que fiquei a saber é que tinha comprado o barco há pouco tempo para comerciar nas ilhas, mas que ainda não tinha começado. Mais tarde, ainda em Moçambique, levantou-se um "milando" (confusão) em Porto Amélia pois havia uma saída ilegal de conchas e búzios para o estrangeiro e desconfiava-se de um comerciante indiano que fomentava esse negócio. A apanha de conchas e búzios já era proibida em Moçambique sem autorizações. Seria este nosso amigo? Acabei também por não saber. Mas é mesmo só um pormenor, que não me levantou nenhuns problemas, até porque o Moçambique de 1993 era assim, bastante Far-West, ainda por cima em Cabo Delgado, longe de tudo e de todos. "No problem".
A minha tripulação eram dois marinheiros (o Mestre Vicente que era natural de "Quissanga" e vivia em "Arimba" a Norte de Pemba, e um ajudante de quem não me lembra o nome), e um cão, do mestre Vicente, um rafeiro bastante vivo e esperto que, de “carnívoro” tinha passado a ser "peixivoro".
Comprei na Capitania do Porto do Maputo a carta náutica da zona do arquipélago, validei para Moçambique, a minha carta de Patrão de Costa (que em Pemba ninguém me pediu) e parti à aventura. Durante 10 dias e 130 milhas náuticas, armei-me em navegador do século XVI e fiz o périplo das Quirimbas, de "Pemba –Tambuzi – Pemba", na zona que podemos chamar "Quirimbas Sul" e que está destacada no mapa apresentado
Uma viagem inesquecível da qual só guardo as memórias (enquanto consigo) pois lamentavelmente, a cobertura fotográfica que fiz durante esse período, desapareceu toda, entre muitas outras coisas, num assalto à minha casa na Beira, no quarto e último ano da missão.
Mapa do périplo nas "Quirimbas Sul", em Cabo Delgado, província que recebeu o nome do promontório mais a norte de Moçambique - Cabo Delgado
Mar das “Quirimbas”
No sentido de cima para baixo, no mar:
Ilha do “Ibo”, Ilha da “Quirimba”. As restantes manchas escuras são recifes de coral ou pequenas ilhotas
No sentido de cima para baixo, na costa:
Povoação da “Quissanga”, onde nasceu Mestre Vicente e no último cabo em baixo, “Arimba” onde ele vivia
A navegação nos canais entre ilhas e recifes e a costa é especialmente perigosa (para quem não conheça e também para os peritos), na altura das mudanças de maré pois estabelecem-se correntes que ganham alguma velocidade e quem não sabe é apanhado desprevenido e quem sabe, se arriscar…
“Quissanga”
Um porto de pesca cujo “Mercado do Peixe” diário (o ponto azul no porto), é bastante concorrido por compradores de Cabo Delgado e estava normalmente bem abastecido (de peixe e de moscas). O acesso ao porto faz-se vindo do Norte. O Norte é em cima!
“Arimba”
Também uma povoação de pescadores mas com menos população em relação a “Quissanga” que tem melhores condições comerciais...
... o que leva o mestre Vicente a viver em “Arimba” mas a ter o seu meio de subsistência em “Quissanga” – um bote à vela, tipo “dhow” com uma vela que precisava urgentemente de ser substituída (parecia uma manta de retalhos feita de sacos de farinha com várias marcas, que deviam ter sido brancos e já com alguns rasgões e manchas - uma desgraça de vela) por uma outra que ele iria comprar quando acabasse esta viagem. Com o dinheiro que ia ganhar no frete! O “dhow” em que estávamos a fazer o périplo era de um indiano que o contratava como “skipper”. O Vicente, ao contrário do ajudante, não vivia muito mal. Dizia-se muçulmano (não praticante pois,em 10 dias X 24 horas, nunca o vi a rezar) e tinha duas mulheres, como muitos, e uma catrefada de filhos. Já tinha uma certa idade. Uma 1ª mulher em “Arimba” (velhota) e outra em “Quissanga” (jovem). Lá, não tinha só o bote! Estive nas duas casas dele. Não sei quanto recebia do patrão mas sei que o “saguate” que recebeu chegou e sobrou para comprar a vela, que não era de “Kevlar”, claro! Um velhote simpático, competente e bom falante de português. E contador de histórias. Um bom parceiro!
Nesta viagem, que foi feita em Junho/Julho, fora da época das (más) monções do Índico, apanhámos um tempo magnífico, sem muito calor e com ventos frescos que deram para navegar à vela com muita facilidade. Em termos das condições para a navegação, estavamos em plena "Monção do Sudoeste" que nesta costa corresponde aos meses de Maio a Agosto, em que os ventos são frescos, predominantes dos quadrantes de Oeste a Sudeste, com um vento a soprar de terra (Oeste) de madrugada, que nos empurrava fácilmente para o largo, o que nos obrigava a tomar o banho matinal no mar, aí pelas 04:30/05:00 já que invariavelmente esse era o melhor despertar, e depois zarpar para aproveitamento desses ventos que nos colocavam rápidamente em águas profundas. Aliás, esta era a monção que os navios da "Carreira da Índia" procuravam aproveitar quando da viagem de Lisboa para os portos da Índia. A outra monção, a "Monção do Noroeste" que decorre de Outubro a Março tem ventos predominantes do quadrante Norte a Nordeste, sendo este último o mais frequente e portanto "empurra" para o Sul (o retorno das Naus da Índia!) sendo que no mês de Novembro fixa-se no Norte. É no final desta monção que surgem frequentemente tufões (conhecidos localmente por "muanalocaias") que provocam graves prejuízos nas povoações, agricultura e navegação, de que todos os anos tomamos conhecimento pelos meios de comunicação. Tudo isto, que eu mais tarde confirmei técnicamente junto ao pessoal do clube naval e que agora reconfirmei, foi-me explicado, noutra linguagem mas em português, pelo mestre Vicente que o aprendeu empíricamente no seu dia-a-dia ou melhor, ano-a-ano do seu trabalho. E que o sofreu na pele!
Rosa dos Ventos desenhada num Portulano de Jorge de Aguiar em 1492 e reproduzido por mim, na minha coleção de Rosas de Ventos dos Portulanos/Cartas de Navegação Portuguesas.
Fiz de tudo. Piloto, timoneiro, pescador, cozinheiro, comandante, turista, etc. e fui bem auxiliado pelos dois marinheiros, ambos pescadores de “Arimba”, logo a norte de Pemba, que conheciam o mar e as rotas profundamente pois, além de esporadicamente fazerem viagens destas com outros turistas, estavam na sua zona de pesca.
Quando era "mufana" devorei os livros de Hans Hass sobre o mundo submarino e quando fui para Lourenço Marques como militar em 1962, fiz-me sócio do Clube Marítimo de Desportos e do Clube Naval e pratiquei Caça Submarina na Inhaca e na Ilha dos Portugueses tendo ido ao arquipélago do Bazaruto (via marítima num barco do Clube Naval) num fim de semana alargado onde fizemos (digo no pural pois fazia parte de um grupo que praticava este desporto em conjunto), grandes caçadas. Mas o que mais me ficou na memória foi a paisagem submarina da barreira de coral da Inhaca (dizem que é a barreira mais setentrional do mundo) com as formas bizarras e coloridas dos corais e a miríade de pequenos peixes (e grandes), paisagem essa que nos fazia esquecer de tudo. Era o "Aquário de Deus I" o título de um livro de Hans Hass que, a par do "Entre Corais e Tubarões" mais me entusiasmaram com a idade de 16/17 anos e me marcaram para o resto da vida atraindo-me irresistivelmente para as coisas ligadas ao mar.
Na viagem às "Quirimbas", ao descobrir que o dono do "dhow" tinha equipamento de caça submarina que podia dispensar, não me fiz rogado e levei comigo para a viagem, óculos, snorkel, barbatanas e uma pequena arma de elásticos, não para caçar para comer mas para sentir alguma segurança no mergulho numa zona onde existem tubarões e onde iria mergulhar sózinho. De qualquer forma, se fosse atacado, de pouco me serviria a arma a não ser para "picar" o tubarão.
Ementa 1 - Cavala da Ìndia
Para comer, tinha dois pescadores a bordo que levaram aparelhos de mão de corrico e garantiam a apanha de peixe fresco - o que funcionou pois nunca faltou peixe que comi na quase totalidade dos dias, ao jantar - principalmente cavalas da índia que só faltava saltarem para dentro do barco.
Dois pormenores da viagem interessantes: o número de tartarugas (não sei de que espécie) que encontrámos a navegar ao nosso lado; foi enorme e quem as descobria na maior parte das vezes era o cão que ficava a olhar e a ladrar. O Vicente disse que isso era um hábito nele. O outro, foi o aparecimento de uma baleia, algures, aí pelo terceiro dia, que nos apanhou, acompanhou e ultrapassou em direção ao Norte, durante um bom bocado. Na altura não sabia de que tipo era. Hoje já sei: pelo comportamento. pela cor e pelo tamanho das barbatanas peitorais era uma "Baleia Azul" embora fosse mais pequena do que o normal pois devia ser um juvenil. Foi descoberta uma comunidade destas baleias, bem perto (relativamente) do ponto em que esta foi avistada, em 2021 no Arquipélago dos Chagos .
Recife de coral (tirado da internet)
Um Aquário de Deus
Não sei onde é, mas é parecido (este, para melhor) com o que eu via. Incluíndo a tartaruga!
A baleia Azul
Arquipélago de Chagos a Sul do Sri Langa e a leste de Moçambique/Madagascar
Quando mergulhei pela primeira vez nas Quirimbas, num pequeno recife situado, se bem me lembro, em frente da povoação de Arimba ou por lá perto, ou noutro lado, deparou-se-me um espetáculo que só tinha visto nos recifes do Bazaruto (o segundo "Aquário de Deus") e da Inhaca. Centenas, se não milhares de peixes evoluiam em ballet síncrono para o meu deleite. Era o terceiro "Aquário de Deus" que eu conhecia. Valeu a pena mergulhar só por isto, pois durante toda a viagem, mergulhei sempre que era possível e não disparei uma única vez a arma. Em termos de comida apanhada de mergulho, só lucrei uma lagosta(ão) que se pôs à minha frente e que, contrariado, tive de apanhar. À mão! Foi grelhada e deu para os três. O cão teve de voltar a comer peixe.
Ementa 2 - Lagosta (ão)
Durante a viagem de mar, o pequeno almoço, por volta das cinco da manhã era chá e bolachas de água e sal, o almoço, enlatados e o jantar, peixe grelhado. E com requinte "gourmet" já que o sal usado era "flor do sal", apanhado nas poças de água das pedras!
Ementa 3 - Feijoada de Búzios à moda do Ibo
Além do peixe, que me lembre, só no Ibo comi ao jantar uma "Feijoada de Búzios á Moda do Ibo" (búzios daqueles muita_gandes, que a gente põe ao ouvido para "ouvir" o mar, cozidos q.b. e fatiados - só a carne, camarões XXL - não tigre, também cozidos q.b.e fatiados e "feijão nhemba" que não sendo, não é mais do que o vulgar feijão frade, tudo isto refogado à maneira com tudo a que tem direito) temperada com caril e açafrão, ou não estivessemos quase ao lado da Índia, que nunca tinha provado e é muito boa bem como também, no almoço do dia seguinte, um "Frango à Cafreal" (cafreal do Ibo) que foi assado depois de ter marinado toda a noite em água de coco com rodelas de limão e laranja e esfregado na altura de assar, com uma mistura de sal, alho, leite de coco e pó de caril/açafrão, (que aparentemente os dois últimos, são usados em tudo). O frango foi acompanhado com batata doce frita, às rodelas. Uma delícia! Só a cerveja é que falhou pois a "geleira" estava a funcionar mal. Esta receita de culinária Moçambicana é particular mas podem usar sem pagar direitos. Se usarem, depois digam qualquer coisa!
Ementa 4 - Frango à Cafreal do Ibo
Reparo agora que, apesar da minha memória me pregar muitas partidas, nestas coisas de comer é uma máquina. Até voltei a saborear a feijoada e o churasco!
Clube Naval de Pemba - Donde se vê o mar
Esta fotografia foi tirada da Internet e não é minha. As que eu tirei foram junto ao que me roubaram na Beira num assalto à minha casa, como já disse. E confesso que não me lembro nada deste “enquadramento" do Clube Naval embora só lá tenha estado duas vezes. Quando cheguei a Pemba e quando me vim embora. Também nesta aventura, escrevi um "Diário de Bordo" de toda a viagem. Teve o mesmo destino das fotografias. Por isso este post está a demorar a ser escrito pois tive de reconstituír as minhas lembranças só com base na minha memória que é de pouca ajuda. Já lá vão quase 30 anos!
Aprendi muito com o convívio com eles e principalmente, vivenciei uma experiência de “caravelejar” num barco, ancestral das “Caravelas” e num mar que foi palco de muitas viagens dos marinheiros de 500. Algumas que acabaram mal!
Aviso à Navegação
Este "Diário de Bordo" ,escrito com base em memórias da minha vivência desta aventura, sem suporte físico, obrigou-me a "puxar pelas meninges", que já não são o que eram e por vezes colapsam . Procurei ser o mais fiel possível aos acontecimentos que vivi ou, pelo menos aos que "penso" ter vivido, e transmiti-los fielmente. Nem tudo aqui está e o que está, temo que alguma coisa esteja menos fiel. Mas era isto ou nada! E é preferível ser isto! Até porque penso que poucas pessoas viveram situações iguais ou parecidas.
Seria um lugar comum dizer que tenho saudades e penso que talvez, se assim for, que serão saudades da "idade". Mas também penso que são mesmo saudades das pessoas. Quando comecei a pensar sobre estes acontecimentos, ri-me para mim próprio com cenas e situações que recordei, principalmete passadas junto com os meus parceiros de viagem.
Foram eles, o Povo de Cabo Delgado que me mostraram, na simplicidade das coisas, que a vida é muito mais do que a dita "civilização" e que há mais felicidade num pequeno bote de pesca com uma vela feita de tudo menos de pano de vela, do que num luxuoso iate de um qualquer oligarca. Apesar de algumas contrariedades que senti, resultado dos meus (maus) hábitos de "civilizado", nalguns momentos, a partilha da felicidade das coisas simples e sem valor monetário foi quase uma constante. O peixe apanhado e partilhado por todos, os esforços comuns para apanhar a adriça da vela que se tinha partido e a chicotear com o vento, a queda à água do Vicente com o "arranque" de uma cavala da Índia combativa e até a excitação do cão quando avistava uma tartaruga adormecida a boiar na água. Valeu!
Já se passaram 39 anos depois destes factos - tinha eu 40 - e, apesar de ter voltado a Moçambique em algumas missões de curta duração depois de 1966 - data em que terminei o projecto em que tudo isto está enquadrado - nunca mais voltei às Querimbas por falta de oportunidade. Andei por lá perto! Nampula, Nacala, Namialo, mas nada de Cabo Delgado. E hoje não voltaria lá, pois, segundo o que sei, a situação descambou, em todos os aspectos, e há um deserto de gente, quer na costa das Querimbas quer nas ilhas, que passaram a ser "civilizadas".
Sem lamentações, gostaria de deixar aqui uma homenagem ao Povo de Cabo Delgado, em especial aos mais ligados à vida do mar que, perseguidos, injustiçados, estrangeiros na sua própria terra e por outro lado, roubados, torturados e assassinados, não deixaram de ser um povo tradicionalmente resistente e combativo. Não sei se ainda feliz! As minhas homenagens!
Aos meus amigos, companheiros de viagem:
- Para o Vicente (se ainda for vivo - se não, que a terra lhe seja leve), um forte abraço e bons ventos.
- Para o "ajudante" espero que o teu sonho de ser pescador a bordo de um arrastão (era bom que não seja russo) se tenha concretizado. Boa sorte!
- Para o cão, uma costeleta T-Bone com meio kilo, para te compensar da dieta a peixe que foste obrigado a fazer e da minha falta de paciência para as tuas tentativas de lambidelas constantes. Muitas tartarugas!
Bem hajam
Caravelas 3
"Barinel"- um navio redondo
Do Mediterrâneo ao Atlântico foi só um saltinho e surgiram na Península Ibérica estas embarcações, Caravelas do Mediterrâneo que, embora com vantagens sobre os navios de vela quadrangular que se usavam na Europa e em Portugal (os "Barinéis" e as “Barcas”), se revelaram pouco adaptadas aos mares do Atlântico que, comparados com os do Mediterrâneo é o mesmo que comparar uma cordilheira a uma planície.
"Barca" - outro navio redondo
Museu de Marinha - Lisboa
Por volta do Século XII ou do XIII, foram adaptados para a pesca e cabotagem no Atlântico como Caravelas de um ou de dois mastros, com velas latinas e tripulações de cinco a seis homens. Essa adaptação possivelmente passou pelo altear da proa para aguentar melhor a vaga bem como da amurada e pela melhoria do aparelho fixo e de laborar, bem como de algumas manobras de navegação. E aqui sim, podemos começar a falar em “Caravela Portuguesa” como uma adaptação de um navio com caraterísticas vantajosas a uma realidade que era a da necessidade de construir um navio preparado para as curtas viagens no “Mar Atlântico” da altura.
Caravela de 1 mastro
Museu de Marinha - Lisboa
Depois começou a saga dos Descobrimentos como a exploração ao longo da costa Ocidental de África que foi percorrida até ao Cabo Bojador em “Barcas”, dobrado por Gil Eanes em 1434, pondo fim à lenda do “Mar Tenebroso”.
Caravela de 2 mastros
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
A partir desta altura entra em cena um navio para descobrir, adaptado e melhorado, com base nas caravelas existentes pondo em evidência o saber técnico já acumulado tendo em conta toda a experiência obtida nas várias viagens de exploração já realizadas. É assim que nasce a “Caravela Portuguesa dos Descobrimentos” que foi evoluindo e incorporando os ensinamentos das viagens anteriores, não só de morfologia como também do traçado e das técnicas de construção, passando pela manobra do navio.
A Construção Naval em Portugal nos séculos XV e XVI
Construção Naval – “Ribeira das Naus” – século XVI
Por volta de 1430-1440 aparece então um novo tipo de caravela, bem diferenciado da caravela “piscareza” do século XIII que ainda aparece representada no século XVI.
Esta nova caravela, a que podemos chamar “Caravela Latina Portuguesa dos Descobrimentos e Expansão” aparece, não por geração espontânea mas sim porque é o resultado das navegações de descobrir e explorar que, por experiência, conclui pela necessidade de haver um navio que:
- Podesse navegar em águas pouco profundas ao longo das sinuosidades das costas;
- Que conseguisse entrar e sair facilmente de enseadas e de fozes dos rios e também navegar ao longo desses mesmos rios;
- Que podesse navegar com uma tripulação pequena o que permitia viagens mais demoradas e um mínimo de provisões.
- Que com alguma facilidade podesse explorar novas rotas e descobrir novos caminhos contra ventos e correntes.
Não poderia haver um melhor navio do que o navio latino de tradição mediterrânica que melhor bolina e permite navegar aproveitando ventos contrários, já usado pelos Portugueses que o vinham a aperfeiçoar e ao qual dão uma nova feição.
Nos séculos XV e XVI os estaleiros portugueses principais – “Ribeira das Naus” em Lisboa e “Miragaia” no Porto – e outros mais pequenos ao longo da costa, já reuniam um importante “cabedal de conhecimentos” na área da construção naval encontrando-se bem preparados, para a época, nas áreas tecnológica e científica, sem dúvida tendo bebido na apurada tecnologia naval do Mediterrâneo já de longa data. No entanto, comparando o traçado dos navios italianos da época com os portugueses, conclui-se que em nada influenciaram sobre os tipos dos navios portugueses. (BARATA, “Arqueologia-II).
Também existiu influência dos países do Norte da Europa mas unicamente na morfologia dos navios de alto bordo e na introdução do aparelho redondo (ibidem)
Um exemplo desta supremacia técnica e científica pode ser referido com a construção de uma nau de 1.000 t mandada construir por D. João II, um feito extraordinário atendendo a que na época a maior tonelagem não ia além de 300 t (com 20,00m de quilha) e este navio tinha uma quilha de 31,50 m, um comprimento entre perpendiculares entre os topos da roda de proa e do cadaste de 50,00m e 15,50m de boca. (ibidem)
Pelo menos no que diz respeito à “tercena” (doca, estaleiro) da Ribeira das Naus em Lisboa existia um grupo de técnicos altamente habilitados, a Junta das Fábricas, que superentendia os trabalhos da “tercena” e da qual fazia parte, nos finais do sédulo XVI um “autentico arquiteto e engenheiro naval”, João Baptista LAVANHA, autor do precioso “Livro Primeiro da Architectura Naval” com magníficos desenhos técnicos e uma escrita clara. Só é pena estar incompleto.!
A “Caravela Latina Portuguesa dos Descobrimentos e Expansão” é o tipo de navio concebido para os descobrimentos e explorações nas condições em que eles decorriam, segundo a experiencia obtida com a “barca” e o “barinel” empregues antes de 1440 e sobre os quais existem referências mas praticamente nenhuns dados técnicos.
Embora o traçado, a morfologia e o modo de construção (com algumas destas partes ainda em discussão) sejam importantes, não cabe no âmbito deste post a sua abordagem pela sua complexidade técnica que se liga principalmente à terminologia, que obriga ao uso de termos de identificação das partes dos navios de difícil entendimento/localização dessas partes só entendível por iniciados no assunto.
Resta, para finalizar esta abordagem das caraterísticas das Caravelas falar sobre os tipos de caravelas existentes e sobre a manobra de "mudar de bordo" nas caravelas latinas.
Quanto aos tipos, vou seguir de perto o que é afirmado por Pimentel BARATA na obra já referida.
Tipos de Caravelas
« 1 – A caravela de um mastro latino
Veem-se em iluminuras de 1520-1525 e em gravuras de vistas de Lisboa do final do século (1539), amarradas ao longo dos cais, pequenas embarcações rasas, de comprido mastro aparentemente vertical e longa verga, as quais, como já dissemos, são, em nosso entender, caravelas de um mastro, pelas razões expostas no nº 4 do capítulo anterior. Seriam estas as pequenas caravelas de pesca e de pequena carga, de 20t a 25t, mencionadas num levantamento de vários portos nos meados do século XVI. E são para nós a primitiva caravela do século XIII, pois já fizemos notar que as embarcações de pequeno porte conservam mesmo durante séculos a mesma morfologia e proporções.
2 – A caravela de dois mastros latinos
É provável que a caravela de dois mastros latinos só tivesses aparecido pelo começo do século XV, quando parece que a caravela começa a adquirir maior importância, pois durante o século XIV não é mencionada nos documentos, pelo menos conhecidos até agora. De certeza, a caravela dos Descobrimentos era de dois mastros, dada a sua tonelagem, mas note-se que no século XVI havia grandes caravelas de dois mastros, de portes à volta das 100t, a avaliar pelas obras mortas representadas. Esta caravela de dois mastros ainda aparece representada no século XVII, o que dá a este tipo uma vida de duzentos anos. Ao descrever sumariamente a morfologia da caravela e o seu aparelho, já demos indicações sobre as características deste tipo.
3 – A caravela de três mastros latinos
Vê-se representada no primeiro quartel do século XVI, mas não se exclui que possa existir já pelo final do século XV. Alcança portes superiores a 100t, o que se deduz do número de mastros e do comprimento da quilha necessário para os implantar. Recorde-se que o mastro grande vai sempre a meio do comprimento da quilha e há que haver à ré dele espaço para os outros dois mastros e manobra das respectivas vergas. Esta caravela já tem dois andares no castelo de popa (tolda e chapitéu, este aberto), e em regra, tem uma pequena mareagem na proa. Acima de 70t a 80t, os pequenos navios podem ter uma a duas cobertas, de modo que estas caravelas de três mastros teriam estes números (v. caravela redonda a seguir)
Esta caravela ainda aparece representada uma ou outra vez pelo final do século XVI, mas, na verdade, desapareceu completamente por volta de 1530-1540, suplantada pela caravela redonda.
4 – A caravela de quatro mastros (caravela redonda)
É o tipo que aparece pelo 2º quartel do século XVI e resulta da implantação à proa dum mastro de parelho redondo, e daí a sua denominação. Assim, esta caravela distingue-se das doutro tipo, isto é, das caravelas latinas, porque leva sempre três mastros latinos e um redondo. Em algumas naus e galeões desde o começo do século XVI e até ao século XVIII há dois mastros latinos à popa, a mesena e o contra, e há dois mastros redondos, o grande e o do traquete. De modo que nunca há confusão com a caravela redonda.
Esta é a caravela que alcança o maior porte, 150 a 180 tonéis, já pelos meados do século XVI e é ainda mencionada em 1738, o que lhe dá dois séculos de vida. É a grande caravela de guerra e de comércio dos séculos XVI e XVII, com uma ou duas cobertas, dois sobrados no castelo de popa e um na proa.
5 – O caravelão
Trata-se de um tipo de caravela cujas características são mal conhecidas, o qual já é mencionado no começo do século XVI e veio a ser muito activo nos Açores e no Brasil. Documentos de 1535 mostram que tinham o aparelho das caravelas redondas e latinas. O sufixo aumentativo ão indicaria que se tratava de caravela de grande porte, mas, na verdade, houve caravelões de 40t e 50t, como consta de uma lista de 1591. O caravelão desempenhou muitas das funções das caravelas.»
João da Gama Pimentel Barata escreveu este texto para uma comunicação que apresentou em 1983. Após terem decorridos 39 anos, é provável que alguma coisa tenha mudado. Uma foi sobre o caravelão que, apesar do sufixo aumentativo, hoje é considerado uma pequena caravela.
“Ribeira das Naus” – século XVI - Barcos em construção
Vamos parar por aqui e terminar no próximo post 67 com a apresentação da manobra de "mudar de bordo" nas caravelas latinas, bem como do “Modelo da Caravela de Três Mastros”.
(continua)
Bons Ventos e…
Uma Abraço