Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

29.05.19

36 - Modelismo Naval 7.12 - "Cutty Sark" 2.9


marearte

ib-04.1.jpg

 

 

Caros amigos

 

(continuação)

Z162.png

Antes de o “Ferreira” se ter envolvido neste acidente em 1916, já tinha dobrado o Cabo da Boa Esperança um sem número de vezes, quer como “Cutty Sark”, quer como “Ferreira”. O desenho acima mostra o “Ferreira” a passar a Montanha da Mesa (Cape Town) sob o comando do capitão Megano.

Desenho da autoria de Johan Richardson

 

 

Todos os desenhos apresentados neste post são da autoria de John Richardson

 

 

Desmastreamento do “Ferreira”

 

A história do desmastreamento do “Ferreira” é iniciada a partir do momento em que esteve sob o comando do capitão Fernando Domingues Megano, um experiente velejador que ingressou no navio em 1912. Sob os seus novos proprietários portugueses, o “Ferreira” era parcialmente tripulado por reservistas navais e navegou intermitentemente, tendo estado bastantes vezes fundeado no Tejo, sem navegar.

 

Quando navegou, fê-lo para os portos portugueses de África, Brasil, Índias Ocidentais, portos do Golfo, África Ocidental, e também aparecia no Reino Unido de tempos a tempos. Nas suas visitas às costas do Reino Unido, o “Ferreira” trouxe cargas para e de Gales do Sul, Londres, Hull, Newcastle e Mersey. Qualquer tipo de veleiro naqueles anos era uma raridade, e por causa do seu passado como “Cutty Sark”, o “Ferreira” era uma grande atração em todos os portos do Reino Unido onde aportava.

 

A sua penúltima visita às Ilhas Britânicas foi a Mersey, em Junho de 1914. Com uma carga mista de ossos e óleo de baleia vinda de Moçâmedes para Birkenhead. Após a descarga, o “Ferreira” carregou uma carga de carvão, cimento e tijolos para uma passagem de retorno a Moçâmedes, um porto sem acostagem, ao qual chegou em Outubro de 1914. Na altura da sua chegada, a Primeira Guerra Mundial estava em franco desenvolvimento  desde 28 de Julho de 1914.

 

Como não havia cais de acostagem neste porto angolano, o “Ferreira” carregava e descarregava fundeado num ancoradouro aberto em plena baía. A zona de Moçâmedes é conhecida por ocasionais golpes de vento forte em direção a terra vindos do Atlântico, e é de fato um lugar onde o perigo de ser levado para terra é altamente provável. Depois de descarregar a carga em barcaças com o uso dos seus guinchos e passadiços e depois de ter quase completado o carregamento de outra carga de óleo de baleia para o Mersey, a pressão atmosférica indicada pelo barómetro começou a cair rapidamente.

 

Em vista de uma tempestade iminente que poderia arrastar o seu navio e encalhá-lo em terra, o capitão Megano não precisou de um segundo aviso e rapidamente suspendeu as suas duas âncoras e, logo depois… a tempestade rebentou! A passagem de volta para o Mersey foi normal, mas quando chegou ao porto, em Fevereiro de 1915, sem uma carga completa, os rebocadores de Liverpool foram rápidos em alegar que ele não estava sob comando e que o navio se tornava assim uma possibilidade de reivindicação para um salvado. No entanto esta pretensão não foi atendida.

 

No mês seguinte foi acrescentada mais uma página à história naval da Inglaterra quando o “Ferreira” desceu o rio Mersey em Março de 1915; esta foi a última vez na história da vela, que um navio aparelhado em “clipper” foi visto no rio. Um mês depois, quando o “Ferreira” passou entre Lundy Island e Hartland Point com uma carga de carvão galês de Newport para Lisboa, foi a última vez que um navio com aparelho de “clipper” foi visto em águas britânicas. Na sua chegada a Lisboa, em 2 de abril de 1915, o capitão Megano foi substituído pelo seu primeiro-oficial, Frederico Vicente de Sousa. O novo capitão, de Lisboa, serviu no navio durante quatro anos.

 

Z161.png

O "Ferreira" em pleno Atlântico a navegar com vento de força 7

 

O “Ferreira”, em seguida, voltou a rumar para as colonias africanas portuguesas, tendo como seu primeiro destino Moçâmedes. No entanto, enquanto navegava ao largo das ilhas de Cabo Verde, apanhou mau tempo e perdeu tanto o seu sobrejoanete de proa bem como o leme devido às condições adversas do mar tempestuoso. Com o uso de uma âncora flutuante (drogue) até que o tempo acalmasse, o resto da passagem teve que ser dirigida por manobra de velas e de âncoras flutuantes.

 

18668_jfo.jpg

"Drogue" ou âncora flutuante moderna. As da época tinham um desenho muito semelhante só diferindo na cor já que eram feitos em lona grossa, cor "cru".

 

Velejar com âncoras flutuantes exige uma marinharia da mais alta qualidade, com muita habilidade, dependendo da direção do vento e do mar. Na ocasião, o capitão Frederico de Sousa usava um drogue e uma boia de arinque pendurados de cada lado da verga do traquete. Com um cabo “pronto a disparar” suspenso em cada extremidade da verga para levantar – ou baixar – um dos drogues no momento necessário. O tempo melhorou para o resto da passagem e o “Ferreira” chegou a Moçâmedes em 10 de Junho não tendo perdido muito tempo. Um telegrama foi então enviado para os proprietários em Lisboa informando-os da perda do leme.

 

baía de mocâmedes2.jpg

Porto (baía) de Moçamedes. Carta de navegação do ano de 1967,  ciquenta e dois anos depois destes acontecimentos

 

Não havia facilidades em Moçâmedes para a construção de um novo leme, e a única alternativa foi mandar fazer um em Lisboa e despachá-lo por vapor. Ancorado na enseada de Moçâmedes, o “Ferreira” esperou quatro meses antes que um leme de substituição chegasse de Lisboa. Enquanto isso, a maior parte da carga foi descarregada, mantendo apenas a suficiente na proa do navio para manter o navio com a popa mais elevada. Quando o leme chegou, descobriu-se que os espigões tinham sido posicionados incorretamente para encaixarem com as fêmeas. Quando a falha foi corrigida, o leme foi encaixado e a última parte da carga foi descarregada.

 

Z.png

“Um” dos lemes do “Cutty Sark” onde se pode ver o alinhamento entre os pernos da porta do leme e os encaixes (fêmeas) no cadaste. Que me lembre, ao longo da vida do “Cutty Sark” e do “Ferreira”, quatro lemes foram parar ao fundo do mar em situações de mau tempo.

 

 

Após uma passagem de quinze dias, o “Ferreira” chegou ao seu porto de carregamento de carvão de  Delagoa Bay (que ficava mesmo a Sudoeste de Lourenço Marques – hoje Maputo – ali para os lados da Matola), em Outubro de 1915.

 

il_fullxfull.283385851.jpg

"Delagoa Bay", junto a Lourenço Marques (atual Maputo). A zona de carga de carvão ficava situada na área da atual Matola, no rio do Espírito Santo na pequena baía a  Norte, junto da linha de Caminhos de Ferro.

Mapa alemão, da época

 

===========================================================================

Um Aviso à Navegação

 

A versão desta “story” que aqui apresento é adaptada da que é apresentada por John Richardson no livro “The Cutty Sark Story”.

 

Segundo o meu conhecimento, existe uma outra versão que é, dizem, da responsabilidade do “Royal Museum of Greenwich”. Nunca a vi e não tenho a mais leve confirmação da sua existência. Esta versão seria baseada numa entrevista com o capitão Fernando Domingues Megano que foi comandante do “Ferreira” como já aqui ficou dito. E o capitão Megano descreve os acontecimentos que levaram ao desmastreamento do “Ferreira”. Seria plausível se não existisse uma forte contrariedade. O capitão Fernando Megano deixou o “Ferreira” quando aportou a Lisboa vindo de Newport em Abril de 1915 e foi substituído pelo seu 1º Oficial Frederico Vicente de Sousa que era o capitão do “Ferreira” nas datas do acontecimento – de Abril de 1916 a Janeiro de 1918. Portanto, não foi uma testemunha direta deste episódio. E dizem que o capitão Fernando Megano “inventou” muita coisa que contribuiu para deslustrar a Marinha Mercante Portuguesa. Não acredito que uma instituição como o “Royal Museum of Greenwich” se prestasse a isso e que um oficial da Marinha Mercante enveredasse por esse caminho. Para mim, tudo isto não passam de notícias falsas; ao tempo de ter tomado conhecimento deste assunto ainda não se falava em “Fake News”.

 

Ficamos assim com uma versão em segunda mão, ouvida da boca do capitão Frederico Vicente de Sousa, fornecida por um velho lobo-do-mar que se destacou pela sua dedicação a estas coisas da vela o capitão Emílio de Sousa e que foi passada à imagem/texto por John Richardson que, apesar de não deixar de cair na tentação de ter um comportamento por vezes menos próprio em relação aos portugueses, penso que tentou ser isento.

 

E, citando Marcel Proust em “À la Recheche du Temps Perdu” – “A lembrança das coisas passadas não é, necessariamente, a lembrança das coisas tal como se passaram.”

 

===========================================================================

Voltemos novamente à “estória”.

 

Mal o navio fundeou, uma delegação de representantes do governo português apresentou-se a bordo. O capitão Frederico de Sousa (capitão de Sousa daqui em diante) foi então informado pelas autoridades da entrada de Portugal na guerra contra a Alemanha. A delegação lembrou o capitão dos termos dos reservistas navais e avisou-o de que eles deveriam estar à disposição da Marinha Portuguesa, com efeito imediato. Além disso, o subsídio que a A&F Ferreira recebia do governo para treinar os seus marinheiros terminava imediatamente.

 

Submarinos Alemanes1.jpg

Guerra naval no Atlântico

Os submarinos alemães estavam em plena atividade no Atlântico e no Índico e afundavam indiscriminadamente qualquer tipo de navio inimigo de guerra e mercante, incluíndo os últimos veleiros de carga.

 

 

O capitão argumentou da melhor forma possível alegando que alguns membros da tripulação eram estrangeiros... ou que o cozinheiro era muito velho, e até sugeriu que tal guerra duraria apenas algumas semanas sem conseguir, no entanto, convencer as autoridades. As autoridades queriam que todos os homens, incluindo o capitão de Sousa, deixassem o navio, tendo declarado que o papel que o “Ferreira” desempenharia na guerra ia ser insignificante e que a sua capacidade de carga não correspondia ao número de homens necessários para o manobrar.

 

Foi uma negociação difícil para o capitão, mas depois de algumas garrafas do melhor vinho da sua reserva terem sido bebidas, as autoridades relaxaram um pouco a sua postura e mudaram a sua posição.

 

O resultado foi que o capitão de Sousa foi autorizado a permanecer a bordo de seu navio com um pequeno número de elementos da sua tripulação. Por fim, vários homens - que seriam oito dos seus marinheiros e um dos seus oficiais - foram transferidos para um navio de guerra português ancorado na estação de Lourenço Marques, nas proximidades.

 

O capitão de Sousa foi autorizado a manter no seu navio dois marinheiros, o cozinheiro e seis aprendizes que eram contratados pelo armador. Infelizmente, a remoção de nove homens deixou o capitão de Sousa com um número de tripulantes insuficiente para manobrar o “Ferreira”. Este número de homens era totalmente insuficiente para um navio aparelhado em “clipper” (Na primeira viagem de longo curso do "Cutty Sark" a equipagem foi constituída por 31 tripulantes).  

 

As substituições de tripulantes eram impossíveis de ser feitas na altura, já que todo o pessoal capaz havia sido chamado às armas. Assim, o “Ferreira” ficou ancorado até meses depois em Delagoa Bay. Entretanto, o seu capitão conseguiu reunir meia dúzia de elementos camponeses moçambicanos e dois pescadores nativos; todos os que mostraram uma mínima inclinação para se tornarem marinheiros de águas profundas foram aproveitados. Cada um assinou com uma impressão digital. A tripulação, contava então com dezoito elementos, o que não era de forma alguma o suficiente para uma navegação segura e confortável.

 

1519.jpg

Carvão a granel

Fundeado em Delagoa Bay, o “Ferreira” começou a carregar carvão a granel para a passagem de retorno a Moçâmedes.

 

Não se sabe se foram os estivadores locais ou os próprios marinheiros do “ Ferreira” - ou ambos - que carregaram a carga de carvão que atingiu 1.140 toneladas. E só mais tarde foi descoberto que a carga havia sido mal estivada.

 

=============================================================================

Quando um navio como o “Ferreira” carregava carvão, fundeado numa baía, a partir de barcaças, o método normal era usar as vergas mais baixas do navio como guindastes, unindo as diferentes vergas mais baixas entre elas e usando o guincho manual para trazer o carvão que se encontrava nas barcaças ao longo do costado.

 

O carvão era carregado a bordo em cestas que levavam entre duzentos e trezentos quilos de cada vez; depois de terem sido descidas até o topo da amurada, as cestas eram esvaziadas no porão inferior por meio de uma calha em madeira (tipo “escorrega”). Com três escotilhas de carga para seu único porão, o “Ferreira” carregou através de todas as escotilhas ao mesmo tempo.

 

O procedimento geral era que, enquanto o carvão estava a ser despejado no porão, um número de homens conhecidos como “compactadores” ou “espalhadores” (estivadores) de carvão eram responsáveis ​​por espalhar e compactar o carvão uniformemente ao redor do porão para manter o navio nivelado. Infelizmente, surgiram problemas quando os estivadores, que provavelmente eram os novos membros da tripulação, começaram a deixar taludes e buracos, bem como vazios na carga de carvão junto ao casco do navio, quer a bombordo quer a estibordo.

 

A tarefa de estivar carvão mesmo em temperaturas normais só pode ser descrita como sendo muito desagradável. Mas quando o porão está cheio de pó de carvão que dificulta a visão, com os estivadores a ter que trabalhar com lanterna, luz de velas ou mesmo no escuro, essas condições precárias pioravam em muito.

 

Este trabalho também foi realizado num ambiente de calor tropical, não sendo assim de admirar que os estivadores apenas tivessem atirado o carvão para manter o navio em equilíbrio e saírem do porão o mais rapidamente possível. Infelizmente, e talvez o que não era conhecido por esses estivadores, foi o fato de que, quando o navio se faz ao mar e começa a rolar, o carvão estivado (mal) desloca-se devido aos taludes e buracos ocos e vazios, e para encontrar o seu próprio nível de equilíbrio – e às vezes com consequências terríveis – o navio desenvolve um adernamento!

 

No entanto, é mais do que provável que o carvão tenha sido atirado para o porão e não tenha sido espalhado e compactado.

 

No seu livro “Last of the Windjammers” – “O Último dos  Grandes Navios de Carga“, (Brown Son & Ferguson – não publicado em português),  Basil Lubbock descreve como alguns navios à vela eram carregados com carvão na costa australiana. Quando as embarcações, às vezes mal carregadas, deixavam o porto e enfrentavam mau tempo, o carvão inevitavelmente deslocava-se no bojo do navio. O navio adernado era então forçado a ir para uma baía portuária mais próxima, ou para algum outro refúgio para re-estivar a sua carga. Mas se o navio estivesse muito longe da terra, a tripulação teria que fazer esta tarefa com o navio em pleno mar alto. É claro que essa era uma tarefa muito difícil ou impossível em condições climáticas adversas, e é desnecessário dizer que grande parte dos navios nestas condições desapareceram da superfície dos mares sem deixar rasto. Basil Lubbock também afirma que muitos capitães de navios nestas condições, que conseguiram retornar ao mesmo local em que ele havia sido carregado, furiosamente apontavam para o adernamento do seu navio culpando os estivadores pelo mau carregamento.

 

Nessas circunstâncias, no entanto, deve ser explicado que há dois lados para esta história.

 

No caso dos estivadores, cujo trabalho é carregar o navio, eles tenderiam a encher o porão e a abandonar o navio o mais rapidamente possível carregando o próximo e assim aumentando o seu salário.

 

Por outro lado, e mais importante, é a responsabilidade do comandante do navio para garantir que o mesmo seja carregado corretamente. Se ele delega a um dos seus oficiais a supervisão do carregamento e da estiva, ou a deixa aos estivadores, ou até mesmo supervisiona ele próprio a operação, tal não faz diferença alguma. A responsabilidade final - até hoje - sempre foi do capitão.

=============================================================================

 

Quando o “Ferreira” suspendeu as suas âncoras para sair de Delagoa Bay, no dia 23 de Abril de 1916, era o último navio aparelhado como “clipper” a navegar pelos sete mares. A única outra embarcação “clipper”, da classe do “Ferreira”, era o português “Pero d'Alenquer” - ex “Thomas Stephens”. Mas ele tinha sido afundado com toda a tripulação alguns meses antes no Atlântico Norte. Assim, o “Ferreira” era o único clipper sobrevivente a navegar. Mesmo com quarenta e sete anos de idade, ainda podia fazer uma boa velocidade e, conforme a feição do vento, ainda tinha a habilidade de superar qualquer vapor de linha.

 

Apesar da equipa improvisada, tudo correu bem nos primeiros dias. Os recém-chegados receberam um curso intensivo em manobra de velas, direção do navio e todos os outros trabalhos de marinheiro necessários para manter um navio no mar. A nova tripulação mostrou notável habilidade e agilidade para trepar aos mastros e logo aprendeu a navegar com bom tempo. No entanto, alguns dos novos membros da tripulação pareciam saber mais sobre a selva do que sobre o navio, e logo depois de sair do porto começaram a sentir os efeitos enjoativos do movimento do mesmo.

 

 

Z91.png

Um exemplo de manobra do navio

 

O aprendiz mais velho ocupou a vaga de primeiro-oficial, e o capitão de Sousa vigiava os quartos em conjunto com ele. O capitão estava desejoso por ter uma passagem com bom tempo para que os seus novos “marinheiros” se aclimatassem. Infelizmente não foi assim, porque depois de cerca de uma semana no mar, com o “Ferreira” a navegar ao longo da costa da África do Sul, algures ao largo de East London, o tempo deu uma reviravolta e o navio começou a rolar pesadamente num mar de altas vagas.

 

Z39.png 

1

Bastante limitado em número de braços disponíveis para a viagem ao sair de “Delagoa Bay”, o “Ferreira” matriculou para esta viagem meia dúzia de tripulantes sem nenhuma experiência de mar. Os primeiros dias passaram de uma forma bastante boa com bom tempo; os aprendizes efetuavam a maioria das tarefas a bordo enquanto os novos “marujos” aprendiam as suas tarefas…

 

 

O navio seguia para o sudoeste na mesma direção de onde vinha o vento; o progresso tornou-se lento navegando por bordos. No dia seguinte, quando o “Ferreira” estava entre Port Elizabeth e East London, o tempo piorou drasticamente e os mares varreram os "decks" da proa à popa. O navio cabriolava e rolava pesadamente e a temperatura caiu visivelmente. Os galinheiros de cada lado do mastro da mezena tinham sido destruídos pelas vagas que varreram o convés durante a noite. Os galinheiros eram apenas troncos com penas de galinha flutuando pelo convés; havia também alguns cabos de manobra soltos das suas malaguetas que giravam na água que enchia o convés. O vendaval forte aumentou para força 10, e com o navio a cabriolar e a rolar da forma como estava, os novos marujos não conseguiam efetuar qualquer trabalho. Além disso, e com exceção de dois deles que tinham sido pescadores, estavam amontoados num estado de terror nos seus alojamentos à proa, recusando-se a sair.

 

Z82.png

Os galinheiros a cada um dos bordos do mastro da mezena

 

O navio continuava a mergulhar nos frios mares negros e, ao fazê-lo, o ar ficava cheio de um “spray” e de espuma o que reduzia em muito a visibilidade. Com as nuvens escuras passando tão baixo que pareciam estar a roçar as borlas dos mastros, tinha deixado de ser possível fazer a marcação do meio-dia com o sextante.

 

Com o capitão amarrado ao convés e dois aprendizes ao leme também amarrados, o trabalho no navio, que era principalmente manobra de velas, foi deixado para os outros jovens aprendizes, dois marinheiros e para o 1º oficial. O capitão de um navio de carga, com uma carga a granel procuraria monitorizar constantemente a situação na tentativa de determinar se a sua carga se conservava estável ou não. Neste caso do “Ferreira”, o capitão Sousa também estava preocupado com o fato de, com o porão mais baixo cheio e sem nada nos decks gémeos, o seu navio não estaria demasiado rígido. Esta situação poderia aumentar o efeito de pêndulo e induzir um rolamento excessivo contínuo.

 

 

Z40.png

 

2

… mas, ao largo de “East London” o tempo ganhou uma faceta de tempestade.

 

========================================================================================

(Se um navio rolar vinte ou vinte e cinco graus em cada sentido, pode ser considerado normal em condições climáticas adversas, mas quando o mesmo barco rola trinta graus para um lado e apenas vinte para o outro – mais ou menos nas mesmas circunstâncias – então é óbvio que existe um adernamento. Quando um navio está a rolar e a cabriolar nas condições descritas, acontece que o rolamento é constante e vai aumentando quer para um lado quer para o outro e isso foi exatamente o que aconteceu com o “Ferreira”. Daqui resultou um adernamento para o lado de estibordo que arrastava as extremidades das vergas inferiores de estibordo na água.)

========================================================================================

 

Quando o capitão de Sousa percebeu que a carga se havia deslocado para estibordo tentou mudar de rumo para tirar o peso do lado de estibordo, mas devido ao excessivo adernamento o navio negou-se à manobra. Com o tempo tempestuoso que enfrentava, ele foi obrigado a arriscar e manobrar o navio para receber a incidência do vento do lado de estibordo.

 

O capitão sabia muito bem que o seu navio estava no meio de uma movimentada faixa de navegação, e também sabia que estava a ir diretamente para a costa sul-africana vizinha, acrescentando a isto que ele teria de suspender o navio para depois estivar novamente o carvão antes que pudesse retomar o seu curso.

 

Na parte da frente do alojamento da cabine de proa do “Ferreira”, havia uma porta pequena que levava ao convés intermédio e, a partir daí, podia-se alcançar a entrada do porão. Uma rápida pesquisa feita com uma lanterna revelou que a maior parte do deslocamento havia ocorrido na seção frontal do porão, mas a escotilha frontal não podia ser removida devido à grande quantidade de água que passava nesse local do convés. Eventualmente, parte da cobertura da escotilha foi retirada (um canto), o que permitiu uma luz suficiente no compartimento para a tarefa da estiva. Depois de algum tempo, um dilúvio de água entrou no porão, pelo canto de onde a escotilha havia sido removida e a escotilha teve de voltar a ser fechada.

 

Z144.png

Escotilha de proa no "Ferreira". A atual escotilha de "gaiúta", com portas, que se vê na fotografia,  já é uma adaptação posterior  - julgo que já depois do "Ferreira" ter voltado a ser "Cutty Sark" e ter ficado "atracado" em Greenwich - a uma escotilha de carga que se pode ver como base da atual.

 

 

A tarefa de estiva teve então que ser levada a cabo usando tanto uma lanterna de tempestade como velas de sebo. Infelizmente, o navio tinha um orçamento extremamente apertado e só possuía uma lanterna de tempestade.

 

Provavelmente, entre quinze a vinte toneladas de carvão tinham-se deslocado sobre estibordo, causando o adernamento. Embora possa não parecer muito num navio que transporta 1.140 toneladas, a diferença entre o lado de estibordo e o lado de bombordo era por volta de quarenta toneladas o que, num pequeno navio esguio e alto como o “Ferreira”, era bastante significativo. Além disso, tal adernamento só pioraria com o rolamento do navio, caso não fossem tomadas imediatamente medidas. Enquanto o navio ainda estava a rolar descontroladamente, havia sempre o risco de apanhar outra daquelas vagas maciças de través, onde outras quinze toneladas, ou mais, poderiam deslocar-se para estibordo. A partir, daí haveria pouca ou nenhuma esperança de estabilizar o navio. O capitão de Sousa agarrou-se ao leme e demorou a maior parte do dia para recuperar o equilíbrio do navio.

 

Lampiao-de-tempestade.jpg

Lanterna de Tempestade

 

Sem retirar deste esforço, que foi coletivo, qualquer elemento da tripulação – cada um fez o que pôde – foram os adolescentes aprendizes que mereceram o maior crédito pela recuperação do navio. Enquanto aqueles rapazes estavam a trabalhar freneticamente na estiva do carvão para salvar o navio, as outras almas infelizes que estavam a fazer a sua primeira viagem no mar ainda estavam amontoadas no seu alojamento, a sofrer os efeitos terríveis tanto dos mares alterosos como do terror.

 

O “Ferreira” retomou o seu curso no dia 3 de Maio, mas depois de mais rolamentos durante a noite, mais uma vez desenvolveu um adernamento para estibordo. O capitão de Sousa ainda considerou levar o navio para Port Elizabeth para recuperar a carga, mas essas coisas custam dinheiro. O navio tinha estado ocioso durante seis meses em Delagoa Bay e antes, quatro meses em Moçâmedes, onde aguardou a chegada de seu novo leme. Não havia dinheiro disponível!

 

Por causa das perigosas rochas “Thunderbolt”, que ficam do lado de fora da entrada de Port Elizabeth, o capitão de Sousa decidiu que era muito arriscado tentar entrar. Os seus aprendizes tinham feito um excelente trabalho, e ele decidiu continuar, esperando que os ventos e os mares diminuíssem. Às primeiras luzes, no dia 4 de Maio, aqueles galhardos aprendizes, estavam mais uma vez no porão arremessando carvão de um lado do navio para o outro. Com o capitão constantemente ao leme o 1º oficial também desceu ao porão. E ele estava plenamente consciente, como todos os que estavam no porão de que, se o navio subitamente se inclinasse, todos eles seriam sepultados debaixo do carvão.

ZA_4154_1.jpg

Baía de "Port Elizabeth" - Carta do Almirantado

 

Mas ninguém precisava dizer a esses homens que, mesmo que isso acontecesse, não faria alguma diferença se eles estivessem no porão ou no convés. Não haveria nenhuma oportunidade de lançar um bote salva vidas ao mar devido à força do vento e aos mares alterosos e o seu fim seria sem dúvida o mesmo. A água do mar, que havia entrado pela escotilha aberta, só veio aumentar as dificuldades daqueles marinheiros, já que a água acabaria por se infiltrar no porão contribuindo para que o navio afundasse rapidamente - a menos que pudesse ser bombeada para o mar.

 

Z143.png

Bombas manuais de escoamento do "Ferreira"

 

Mas as bombas não podiam ser manobradas devido aos grandes mares alterosos e furiosos que varriam o navio. Esses enormes dilúvios de água certamente esmagariam qualquer corpo contra os baluartes ou arrastá-los-ia para o mar. Os ventos fortes, as rajadas e os mares montanhosos continuaram, e isso só aumentou a miséria de uma tripulação completamente esfomeada, exausta e encharcada. O tempo continuava igual, assim como o deslocamento da carga. Repetidamente, esses rapazes foram enviados para nivelar o carvão, jovens garotos que, naquela altura, aproveitavam todas as oportunidades para alguns preciosos momentos de sono... onde quer que estivessem no final de cada sessão. Quando surgia a oportunidade, nenhum deles se preocupava em tirar as roupas encharcadas.

 

 

(continua)

 

Um abraço e ...

Bons Ventos

23.05.19

35 - Modelismo Naval 7.11 - "Cutty Sark" 2.8


marearte

ib-04.1.jpg

 

Caros amigos

 

(continuação)

 

Retomando a publicação da história do "Cutty Sark" vamos continuar no ponto em que terminámos no post 32 (Modelismo Naval 7.8 - "Cutty Sark" 2.7 em 24 de Agosto 2018) desta série, que foi a venda do navio por John Willis à empresa armadora portuguesa "JA Ferreira & Cª" em 3 de Julho de 1895, tendo sido renomeado como “Ferreira” e navegado para Lisboa, já com tripulação portuguesa. 

 

Segundo informação, o navio sofreu uma revisão completa quando chegou a Lisboa. Esta informação sobre uma revisão completa do navio é plausível (embora se desconheçam pormenores e a fonte) já que, como sabemos, John Willis nos últimos anos como proprietário do "Cutty Sark" fechou os cordões á bolsa e gastou o menos possível com o navio. Disto se queixava o capitão Richard Woodget, último comandante do navio sob a flâmula de John Willis.

 

Ficamos assim com o "Cutty Sark" – de agora em diante e até Janeiro de 1920, o "Ferreira" – fundeado no "Mar da Palha" (no rio Tejo perto do Terreiro do Paço), em frente a Lisboa. 

z36.png

O “Ferreira” a fundear em Lisboa vindo de Gales do Sul numa outra viagem

 

 

1 - "Ferreira" - As viagens sob o pavilhão Português - 03/07/1895 a 05/10/1910  (monarquia) e de 06/10/1910 a 01/1920 (república)

 

bandeiras Portuguesas.jpg

 

 

Infelizmente, pouca informação existe nos arquivos nacionais sobre estes anos do "Ferreira". O Museu de Marinha de Portugal ao ser questionado acerca  da existência de material sobre o "Ferreira" – diários de bordo, listas de tripulação, viagens efetuadas, reparações, etc. – informou o autor da "The Cutty Sark Story", John Richardson, em 13/09/1995, que “nada havia nos arquivos do museu sobre este navio”.

 

Esta informação não põe de lado a possibilidade de, noutros arquivos ainda não pesquisados, existir informação sobre a vida do navio enquanto navegou sob o nome de "Ferreira" e de “Maria do Amparo”. Pessoalmente estou convencido de que algures, a nível de arquivos da Torre do Tombo ou de outras bibliotecas especializadas, vai ser possível encontrar mais e melhor informação sobre este período do “Cutty Sark” (”Ferreira”/”Maria do Amparo”), período esse que se alonga por 25 anos.

 

Basicamente, sabe-se que efetuou diversas viagens com destino a Moçambique, Angola, Brasil (Rio de Janeiro), New Orleans, Reino Unido e que já no século XX viajou com uma certa regularidade entre o Porto, New Orleans, Rio de Janeiro e Lisboa.

 

Z63.png

 

Cópia do ofício enviado pelo Museu de Marinha de Portugal a John Richardson em 13-09-1995

 

Também se sabe que nunca mais fez as grandes viagens transoceânicas da época do transporte do chá da China ou da lã da Austrália para a Inglaterra. Nunca mais percorreu o Oceano Pacífico e o Atlântico Sul tocado pela força dos ventos rugidores.

 

O que se sabe é que, sobre a “A Pequena Camisola” (nickname dado pelas tripulações portuguesas enquanto o “Cutty Sark” navegou sob a bandeira portuguesa com o nome de “Ferreira” e “Maria do Amparo”), podemos consultar basicamente duas fontes.

 

Uma primeira é a informação (escassa) que existe nos arquivos da própria “Cutty Sark” (ou que pelo menos é possível aceder). A segunda é a que aparece no livro que tem sido seguido por mim nesta, já longa, história do “Cutty Sark”

 

O que levou John Richardson a escrever esta “The Cutty Sark Story” em particular, que possivelmente contribuiu um pouco para a sua história, foi um episódio furtuito que teve lugar na Cidade do Cabo em 1990. John Richardson estava lá para assistir ao início da regata oceânica de veleiros Cape Town-Lisboa, um evento em que o filho participava como membro da tripulação do “Dundley”. Sabendo que ele tinha uma paixão por barcos á vela ou por qualquer um que os tripulasse, o filho apresentou-o ao capitão de um iate adversário chamado ”IG Insurance”. Este capitão era Emílio Carlos de Sousa, um lobo-do-mar português bem curtido pelo tempo passado a navegar “pelos sete mares”.

 

Mas quem era o Capitão Emílio Carlos de Sousa? Por coincidência, era sobrinho do Capitão Frederico Vicente de Sousa que tinha sido o comandante do “Ferreira” em 1916 quando este quase se perdeu no Sul do Índico numa viagem de Delagoa Bay (Moçambique) para Mossamedes – como se escrevia na altura – (Angola), com uma carga de carvão a granel, um incidente mal descrito e documentado o que, para John Richardson, era ouro sobre azul obter informações de quem, como o Capitão Emílio Carlos de Sousa, tinha ouvido – várias vezes – a história contada diretamente por um dos protagonistas do acidente, o seu tio.

 

O Capitão Emílio de Sousa não era conhecido só por ser sobrinho do Capitão Frederico Vicente de Sousa.

 

Nasceu em Soudos, Torres Novas a 17 de Janeiro de 1921 e faleceu na África do Sul onde vivia, em Fevereiro de 2017 com a bonita idade de 96 anos. Descende de uma longa linhagem de marinheiros – avó, tio, pai. Em 1940 abraçou a vida do mar e em 1942 terminou o Curso de Pilotagem da Escola Náutica, tendo embarcado em navios da Companhia Insulana de Navegação, Soponata, SNAB e Companhia Portuguesa de Pesca. Obteve a carta de Capitão da Marinha Mercante em Julho de 1951.

 

Mudou-se para a Cidade do Cabo na África do Sul em 1965 onde foi superintendente e depois administrador na mais importante companhia de pesca da África do Sul. Em 1981 assumiu funções no "Department of Transports, Marine Division", como responsável pelas inspeções de navios e certificação de tripulantes, tendo-se reformado com 81 anos de idade em 2002.

 

Foi o primeiro comandante da Caravela da APORVELA “Bartolomeu Dias”, cuja construção nos estaleiros de Vila de Conde acompanhou ativamente em 1987 a convite do Governo da África do Sul, tendo no mesmo ano comandado a mesma na viagem comemorativa dos 500 anos que recriou o percurso seguido por Bartolomeu Dias de Lisboa para Mossel Bay em 1487/1488.

 

Scanner_20190416 (5).png

Selos comemorativos dos 500 anos sobre a passagem do "Cabo das Tormentas" por Bartolomeu Dias

Scanner_20190416 (2).png

Rota tomada pela Caravela "Bartolomeu Dias", comandada pelo Capitão Emílio Carlos de Sousa, na viagem comemorativa dos 500 anos da passagem do "Cabo da Boa Esperança" entre Lisboa  (Portugal) e Mossel Bay (África do Sul) de Novembro de 1987 a Fevereiro de 1998.

Publicado no Àlbum Filatélico Comemoratvivo dos 500 anos da viagem de Bartolomeu Dias pelos Correios e Telecomunicações de Portugal - "Por Esse Mar Fora" - com texto de Francisco Crruz Neves e Ilustrações de Henrique Cayatte, que integrram a tripulação de 17 elementos desta "aventura".

 

O filho de John Richardson sabia que ele estava interessado em conhecer este velho marinheiro. Emílio Carlos de Sousa que tinha uma relação familiar com o Capitão Frederico Vicente de Sousa (irmão de Jacinto Vieira de Sousa pai do capitão Emílio Carlos de Sousa), o homem que em 1916 tinha sido o mestre do “Ferreira”/ “Cutty Sark”, assunto que ele estava precisamente a investigar!

 

Na longa conversa que tiveram durante todo o dia, soube que o capitão Emílio Carlos de Sousa servira no mar desde que deixara a escola e possuía um certificado de mestrado de vela oceânica. Das suas numerosas aventuras marítimas, a última tinha sido navegar numa réplica da caravela do século XV “Bartolomeu Dias” de Lisboa à África do Sul. Aquela viagem histórica, que seguiu os padrões dominantes de vento do Oceano Atlântico, começou em 8 de Novembro de 1987 e terminou em Mossel Bay, semanas depois, em Fevereiro de 1988. Esta viagem devia coincidir com o desembarque de Bartolomeu Dias na África do Sul em Fevereiro de 1488.

D (1).png

 

A réplica da caravela "Bartolomeu Dias" na qual  Emílio de Sousa navegou de Lisboa para Port Elizabeth. Esta viagem por mar que durou mais de dois meses, marcou a comemoração dos 500 anos da viagem de Bartolomeu Dias na passagem do Cabo da Boa Esperança.

WO1 Johan Swarts SA Navy

 

B.png

 

 

John Richardson à direita do Capitão Emílio Carlos da Sousa

 

 

Os dois tiveram uma longa e frutífera conversa sobre o tema do desmastreamento do “Ferreira” pois o capitão Emílio estava extremamente bem informado sobre o assunto. O seu tio havia-lhe contado o episódio do desmastreamento do “Ferreira” alguns anos antes, e Emílio ficou satisfeito por alguém demonstrar interesse sobre este assunto.

 

C.png

 

A preparar o barco para a regata Oceânica Cabo – Lisboa em 1990.

O Capitão Emílio de Sousa (em primeiro plano, ao centro) e dois membros da tripulação a “estivarem” mantimentos a bordo do “IG Insurance”

 

John Richardson, enquanto ajudava a tripulação a carregar os mantimentos para a regata, foi fazendo anotações e esboços de cada fragmento de informação que o capitão Emílio de Sousa foi capaz de lhe fornecer. Os fatos sobre o desmastreamento do “Ferreira” foram muito interessantes e informativos e contribuíram em muito para aumentar e melhorar a pequena quantidade de informação que ele já tinha sobre o assunto.

 

Consequentemente, disse ao capitão Emílio de Sousa que um dia, no futuro, faria o seu melhor para elaborar um manuscrito ilustrado sobre o episódio do desmantelamento do “Ferreira”. No entanto, tal só seria viável se integrado num livro sobre o “Cutty Sark” – “Ferreira”, que dificilmente poderia ser completo sem fazer alguma referência também à história do “Cutty Sark” e dos “clippers” seus concorrentes na altura.

 

 

Uma linha cronológica

 

Para não cair no risco de esquecer alguns acontecimentos importantes sobre o “Ferreira” – uns, muito ligeiramente documentados que pertencem mais à área da especulação; outros, documentados – vamos tentar alinhar cronologicamente o que se sabe e não se sabe desde a venda do “Cutty Sark” em 3 de Julho de 1895 ao armador de Lisboa “J&A Ferreira” até à sua passagem para a propriedade da “Companhia Nacional de Navegação”, também de Lisboa, com o nome de “Maria do Amparo” em ??/01/1920.

*****************************************************************************

“Ferreira”

03/Julho/1895 – Venda do “Cutty Sark” por John Willis (UK) ao armador português “J&A Ferreira” pela quantia de £2,100 passando a denominar-se “Ferreira”;

 

(De 3 de Julho de 1895 até 25 ou 26 de Setembro de 1906 – por volta de 11 anos – não existe informação, que seja do meu conhecimento, sobre o “Ferreira”, nomeadamente comandantes, itinerários e/ou acidentes onde tenha estado envolvido.

 

Sabe-se que só saiu do ancoradouro no rio Tamisa aproximadamente um mês após a compra e que o seu primeiro destino foi a cidade do Porto. Também se sabe que, quando chegou pela primeira vez a Lisboa após a compra e vindo do Porto, o novo armador mandou efetuar uma revisão e arranjo geral em profundidade (não se sabe onde) tendo-se constatado que o casco do navio se encontrava em boas condições e que o navio “ficou como novo” tendo iniciado, de seguida, o serviço na Marinha Mercante Portuguesa.

 

Como nota importante, na altura em Portugal competiu à Marinha de Guerra seguir uma política de apoio à renovação da frota mercante através da formação de marinheiros de vela (que integraram uma Reserva Naval) mas que entretanto trabalharam a bordo de veleiros mercantes sendo os seus vencimentos integralmente suportados pelo Governo. Isto possibilitou que o armador “J&A Ferreira” pudesse investir na compra do “Cutty Sark”/ (1895) ”Ferreira”/ (1920) ”Maria do Amparo”; do “Argonaut”/ (1898) ”Elvira”/ (1913) ”Argo”; do “Otago”/ (1881) “Emília”, do “Thomas Stephens” / (1869) “Pero d’Alenquer e mais tarde, diretamente do Canadá, do “Thermopylae”/ (1897-Canadá) “Pedro Nunes”, com destino a ser o navio escola “Pedro Nunes” e que acabou torpedeado e afundado pela Marinha de Guerra Portuguesa ao largo do Forte de S. Julião da Barra.

 

Na altura da compra do “Cutty Sark” os Ingleses tentaram boicotar a compra e fizeram uma campanha para a obtenção de fundos no sentido de que o navio – um símbolo nacional para os ingleses – não saísse da Inglaterra. Não conseguiram esse intuito.

 

Com a sua arrogância e chauvinismo típicos em relação aos portugueses e não só, durante e após o período do “Cutty Sark” como “Ferreira” /”Maria do Amparo”, procuraram denegrir a imagem da Marinha Mercante Portuguesa dizendo “cobras e lagartos” sobre o profissionalismo dos marinheiros que embarcaram no “Ferreira”/”Maria do Amparo”.

 

Três coisas são certas:

 

1 – A compra do “Cutty Sark” por um armador “comercial” português a um armador “comercial” inglês, não envolveu a compra dos deveres de “preservação do património naval inglês” por parte dos portugueses;

2 – Se o armador português não tivesse comprado o “Cutty Sark” o destino deste navio seria o usual: transformação em depósito de “carvão” e posterior venda para a sucata ou afundamento;

3 – Todas as acusações de negligência (desleixo na conservação) que foram – e ainda são – assacadas às tripulações portuguesas, em diferentes períodos da vida do “Ferreira”/”Maria do Amparo”, não têm outro fundamento que não seja de ordem económica e foram contingentadas por desígnios de Deus (acidentes) ou dos homens (1ª Guerra Mundial).

=============================================================================

25 ou 26/09/1906 – O “Ferreira” foi danificado superficialmente por um furacão em “Pensacola” USA, enquanto se encontrava atracado ao cais a carregar uma carga de madeira;

 

Z38.png

 

Os estragos causados pelo furacão no “Ferreira” no acidente em “Pensacola”

 

??/??/1912 – O Capitão Fernando Domingues Megano assume o comando do “Ferreira”;

 

??/05/1913 – O “Ferreira” encontrava-se atracado num cais em New Orleans (episódio do furto do sino);

 

??/06/1914 – O “Ferreira” visita pela penúltima vez o UK (Mersey) ainda com armação de “Clipper” onde descarrega uma carga de óleo e ossos de baleia vinda de Moçâmedes;

 

??/10/1914 – O “Ferreira” chega ao porto de “Moçâmedes” (Angola) com uma carga de carvão, cimento e tijolos vindo de “Mersey”;

 

??/02/1915 – O “Ferreira, vindo de” Moçâmedes”, chega a “Mersey” com uma carga de bidons de óleo de baleia;

 

??/02/1915 – O “Ferreira” encontrava-se a descarregar em “Birkenhead”;

 

 

Z34.png

O “Ferreira” a descarregar em “Birkenhead” em Fevereiro de 1915

 

??/04/1915 – O “Ferreira” passava “Lundy Isle” tendo sido a última vez que um navio “clipper” foi visto em águas Britânicas;

Z35.png

 

O “Ferreira” passa “Lundy Isle” em Abril de 1915, a última vez que um navio arvorado em “clipper” foi visto em águas Britânicas

Pintura de John Richardson

02/04/1915 – Chegada do “Ferreira” a Lisboa. O Capitão Frederico Vicente de Sousa (que era o imediato do navio) substitui o Capitão Fernando Domingues Megano no comando do “Ferreira”;

??/??/1915 – O “Ferreira” zarpa para Moçâmedes tendo perdido o leme e o sobrejoanete de proa numa forte tempestade ao largo das Ilhas de Cabo Verde;

10/06/1915 – Chegada do “Ferreira” a Moçâmedes onde permaneceu durante 4 meses à espera da chegada de um leme vindo de Lisboa para substituir o que foi perdido ao largo de Cabo Verde;

Z37.png

 

O “Ferreira” fundeado no Porto de Moçâmedes onde a carga e descarga era efetuada com transporte em barcaças

??/10/1915 – Chegada do “Ferreira” a “Delagoa Bay” após uma viagem de 15 dias vindo de Moçamedes, para uma carga de carvão com destino a Moçâmedes;

 

(De 25 ou 26 de Setembro de 1906 a 23 de Abril de 1916, a linha de acontecimentos sobre o “Ferreira” é bastante consistente com exceção dos primeiros anos de 1907, 8, 9, 10 e 11 que primam pela ausência. No entanto sabe-se ou melhor, diz-se que o “Ferreira” esteve muito tempo fundeado no mar da palha (Tejo) sem fretes?).

 

À chegada ao porto de “Delagoa Bay” (Lourenço Marques) o capitão Frederico Vicente de Sousa foi informado pelas autoridades do Governo de que Portugal tinha declarado guerra à Alemanha e que, atendendo a que os tripulantes do “Ferreira” faziam parte da “Reserva Naval” eram requisitados para servirem na Marinha de Guerra estacionada em Moçambique. O que aconteceu nos meses seguintes até 10 de Janeiro de 1918 vai ser desenvolvido nos posts seguintes.

===========================================================================

23/04/1916 – O “Ferreira” deixa “Delagoa Bay” com uma carga de carvão com destino a Moçâmedes; foi o último “clipper” a navegar os sete oceanos já que o “Pero d’Alenquer” – ex “Thomas Stephens”, tinha sido afundado um par de meses antes no Atlântico Norte, sem sobreviventes;

 

Entre Port Elizabeth e East London (África do Sul) o “Ferreira” foi apanhado por uma forte tempestade de força 10 que levou a um rolamento do navio na ordem dos 20 a 25 graus, tendo causado o deslocamento da carga de carvão no sentido de estibordo;

 

03/05/1916 – O “Ferreira” consegue retomar o seu curso mas, logo a seguir, voltou a adernar perigosamente tendo o capitão Vicente de Sousa desistido do seu intento, por diversas razões, de entrar em “Port Elizabeth” para recondicionar a carga;

 

06/05/1916 – O capitão Vicente de Sousa, que não tinha tido céu limpo há alguns dias, assumiu que o navio se encontrava a umas 100 milhas a Sul de “Mossel Bay”;

 

07/05/1916 – Foi abatido o mastro principal;

 

09/05/1916 – O capitão Vicente de Sousa continua a tentar – sem êxito – diminuir o peso dos mastros no sentido de restabelecer o equilíbrio do navio;

 

10/05/1916 – Contato com o “SS Kia Ora”;

 

14/05/1916 – Reboque pelo “SS Indraghiri” até à entrada do porto de “Table Bay”;

 

15/05/1916 – O “Ferreira” entra no porto de “Table Bay” a reboque do rebocador “Ludwig Weiner” para reparações que se prolongaram por 18 meses;

 

1917 – O pior ano (para os aliados) da guerra marítima no Atlântico;

 

10/01/1918 – O Ferreira” zarpa de “Cape Town” aparelhado como “lugre-patacho”;

 

(No período de 23 de Abril de 1916 a 10 de Janeiro de 1918 – por volta de vinte meses – o “Ferreira” sofreu um acidente (deslocamento da carga de carvão o que causou adernamentos da ordem dos 250 a 350), o que levou ao desmastreamento quase total do navio e à necessidade de paragem para reparações. Foi este o episódio ilustrado por John Richardson em desenhos (tipo banda desenhada) com base nas informações do capitão Emílio de Sousa transmitidas pelo seu tio capitão Vicente de Sousa na altura comandante do “Ferreira”.

===========================================================================

21/01/1918 – O “Ferreira” descarrega em Moçâmedes a carga de carvão a granel carregada em “Delagoa Bay” em 23/04/1916 passados 20 meses;

 

??/??/???? – Voltou de seguida a Moçambique para uma outra carga de carvão;

 

1920 – Chegada a Londres vindo de Pensacola, Florida;

 

1920 – De Londres para Swansea (Escócia) para limpeza do casco e manutenção geral;

 

1920?-1921? – Cargas de carvão de Swansea para Lisboa e de Newcastle para Lisboa; mas nesta altura o “Ferreira” era um navio que dava prejuízo a “J&A Ferreira”, não só pela dificuldade de consignação de cargas (concorrência dos “steamers”) mas também e talvez principalmente por ter terminado o subsídio governamental para a formação de marinheiros de vela (aumento dos custos de funcionamento).

 

??/01/1920 – Venda do “Ferreira” por “J&A Ferreira” à “Companhia Nacional de Navegação” passando a denominar-se “Maria do Amparo”.

 

(No período de 21 de Janeiro de 1918 a 1920 esta é a informação, embora fraca e não muito consistente, que existe).

*****************************************************************************

“Maria do Amparo”

1920 – Foram pintadas no casco imitações de portinholas de canhões;

Z72.png

 

A pintura de portinholas de canhões nos costados de navios mercantes tinha como finalidade enganar? os U-Boats durante a 1ª Guerra Mundial. No entanto, em 1921 ou 1922 já não teria muita razão de ser.

1921?-1922? – Encontrava-se na Doca Seca para reparações nas “Surrey Commercial Docks”, Falmouth;

 

Z68.png

 

Depois de uma permanência nas “Surrey Commercial Docks” (para limpezas? reparações? as duas?) o “Maria do Amparo” regressou ao porto de Lisboa mas apanhou mau tempo no Canal e refugiou-se no Porto de Falmouth. Foi aqui que foi reconhecido como o “Cutty Sark” pelo capitão “Dowman” que iniciou as negociações para a sua compra.

 

1922 – Saída de Falmouth para Lisboa onde carrega uma carga de sucata de ferro com destino a Hamburgo. Foi nesta altura que apareceu um novo comprador para o ex “Cutty Sark”. Viagem de Hamburgo para Lisboa.

 

 

Z69.png

Pelo aspeto, estava mesmo a precisar de uma “Doca-Seca”

 

1922 – Venda ao Capitão “Wilfred Dowman” pela quantia de £3,750.

 

(continua)

 

Um abraço e …

Bons Ventos