29.05.19
36 - Modelismo Naval 7.12 - "Cutty Sark" 2.9
marearte
Caros amigos
(continuação)
Antes de o “Ferreira” se ter envolvido neste acidente em 1916, já tinha dobrado o Cabo da Boa Esperança um sem número de vezes, quer como “Cutty Sark”, quer como “Ferreira”. O desenho acima mostra o “Ferreira” a passar a Montanha da Mesa (Cape Town) sob o comando do capitão Megano.
Desenho da autoria de Johan Richardson
Todos os desenhos apresentados neste post são da autoria de John Richardson
Desmastreamento do “Ferreira”
A história do desmastreamento do “Ferreira” é iniciada a partir do momento em que esteve sob o comando do capitão Fernando Domingues Megano, um experiente velejador que ingressou no navio em 1912. Sob os seus novos proprietários portugueses, o “Ferreira” era parcialmente tripulado por reservistas navais e navegou intermitentemente, tendo estado bastantes vezes fundeado no Tejo, sem navegar.
Quando navegou, fê-lo para os portos portugueses de África, Brasil, Índias Ocidentais, portos do Golfo, África Ocidental, e também aparecia no Reino Unido de tempos a tempos. Nas suas visitas às costas do Reino Unido, o “Ferreira” trouxe cargas para e de Gales do Sul, Londres, Hull, Newcastle e Mersey. Qualquer tipo de veleiro naqueles anos era uma raridade, e por causa do seu passado como “Cutty Sark”, o “Ferreira” era uma grande atração em todos os portos do Reino Unido onde aportava.
A sua penúltima visita às Ilhas Britânicas foi a Mersey, em Junho de 1914. Com uma carga mista de ossos e óleo de baleia vinda de Moçâmedes para Birkenhead. Após a descarga, o “Ferreira” carregou uma carga de carvão, cimento e tijolos para uma passagem de retorno a Moçâmedes, um porto sem acostagem, ao qual chegou em Outubro de 1914. Na altura da sua chegada, a Primeira Guerra Mundial estava em franco desenvolvimento desde 28 de Julho de 1914.
Como não havia cais de acostagem neste porto angolano, o “Ferreira” carregava e descarregava fundeado num ancoradouro aberto em plena baía. A zona de Moçâmedes é conhecida por ocasionais golpes de vento forte em direção a terra vindos do Atlântico, e é de fato um lugar onde o perigo de ser levado para terra é altamente provável. Depois de descarregar a carga em barcaças com o uso dos seus guinchos e passadiços e depois de ter quase completado o carregamento de outra carga de óleo de baleia para o Mersey, a pressão atmosférica indicada pelo barómetro começou a cair rapidamente.
Em vista de uma tempestade iminente que poderia arrastar o seu navio e encalhá-lo em terra, o capitão Megano não precisou de um segundo aviso e rapidamente suspendeu as suas duas âncoras e, logo depois… a tempestade rebentou! A passagem de volta para o Mersey foi normal, mas quando chegou ao porto, em Fevereiro de 1915, sem uma carga completa, os rebocadores de Liverpool foram rápidos em alegar que ele não estava sob comando e que o navio se tornava assim uma possibilidade de reivindicação para um salvado. No entanto esta pretensão não foi atendida.
No mês seguinte foi acrescentada mais uma página à história naval da Inglaterra quando o “Ferreira” desceu o rio Mersey em Março de 1915; esta foi a última vez na história da vela, que um navio aparelhado em “clipper” foi visto no rio. Um mês depois, quando o “Ferreira” passou entre Lundy Island e Hartland Point com uma carga de carvão galês de Newport para Lisboa, foi a última vez que um navio com aparelho de “clipper” foi visto em águas britânicas. Na sua chegada a Lisboa, em 2 de abril de 1915, o capitão Megano foi substituído pelo seu primeiro-oficial, Frederico Vicente de Sousa. O novo capitão, de Lisboa, serviu no navio durante quatro anos.
O "Ferreira" em pleno Atlântico a navegar com vento de força 7
O “Ferreira”, em seguida, voltou a rumar para as colonias africanas portuguesas, tendo como seu primeiro destino Moçâmedes. No entanto, enquanto navegava ao largo das ilhas de Cabo Verde, apanhou mau tempo e perdeu tanto o seu sobrejoanete de proa bem como o leme devido às condições adversas do mar tempestuoso. Com o uso de uma âncora flutuante (drogue) até que o tempo acalmasse, o resto da passagem teve que ser dirigida por manobra de velas e de âncoras flutuantes.
"Drogue" ou âncora flutuante moderna. As da época tinham um desenho muito semelhante só diferindo na cor já que eram feitos em lona grossa, cor "cru".
Velejar com âncoras flutuantes exige uma marinharia da mais alta qualidade, com muita habilidade, dependendo da direção do vento e do mar. Na ocasião, o capitão Frederico de Sousa usava um drogue e uma boia de arinque pendurados de cada lado da verga do traquete. Com um cabo “pronto a disparar” suspenso em cada extremidade da verga para levantar – ou baixar – um dos drogues no momento necessário. O tempo melhorou para o resto da passagem e o “Ferreira” chegou a Moçâmedes em 10 de Junho não tendo perdido muito tempo. Um telegrama foi então enviado para os proprietários em Lisboa informando-os da perda do leme.
Porto (baía) de Moçamedes. Carta de navegação do ano de 1967, ciquenta e dois anos depois destes acontecimentos
Não havia facilidades em Moçâmedes para a construção de um novo leme, e a única alternativa foi mandar fazer um em Lisboa e despachá-lo por vapor. Ancorado na enseada de Moçâmedes, o “Ferreira” esperou quatro meses antes que um leme de substituição chegasse de Lisboa. Enquanto isso, a maior parte da carga foi descarregada, mantendo apenas a suficiente na proa do navio para manter o navio com a popa mais elevada. Quando o leme chegou, descobriu-se que os espigões tinham sido posicionados incorretamente para encaixarem com as fêmeas. Quando a falha foi corrigida, o leme foi encaixado e a última parte da carga foi descarregada.
“Um” dos lemes do “Cutty Sark” onde se pode ver o alinhamento entre os pernos da porta do leme e os encaixes (fêmeas) no cadaste. Que me lembre, ao longo da vida do “Cutty Sark” e do “Ferreira”, quatro lemes foram parar ao fundo do mar em situações de mau tempo.
Após uma passagem de quinze dias, o “Ferreira” chegou ao seu porto de carregamento de carvão de Delagoa Bay (que ficava mesmo a Sudoeste de Lourenço Marques – hoje Maputo – ali para os lados da Matola), em Outubro de 1915.
"Delagoa Bay", junto a Lourenço Marques (atual Maputo). A zona de carga de carvão ficava situada na área da atual Matola, no rio do Espírito Santo na pequena baía a Norte, junto da linha de Caminhos de Ferro.
Mapa alemão, da época
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Um Aviso à Navegação
A versão desta “story” que aqui apresento é adaptada da que é apresentada por John Richardson no livro “The Cutty Sark Story”.
Segundo o meu conhecimento, existe uma outra versão que é, dizem, da responsabilidade do “Royal Museum of Greenwich”. Nunca a vi e não tenho a mais leve confirmação da sua existência. Esta versão seria baseada numa entrevista com o capitão Fernando Domingues Megano que foi comandante do “Ferreira” como já aqui ficou dito. E o capitão Megano descreve os acontecimentos que levaram ao desmastreamento do “Ferreira”. Seria plausível se não existisse uma forte contrariedade. O capitão Fernando Megano deixou o “Ferreira” quando aportou a Lisboa vindo de Newport em Abril de 1915 e foi substituído pelo seu 1º Oficial Frederico Vicente de Sousa que era o capitão do “Ferreira” nas datas do acontecimento – de Abril de 1916 a Janeiro de 1918. Portanto, não foi uma testemunha direta deste episódio. E dizem que o capitão Fernando Megano “inventou” muita coisa que contribuiu para deslustrar a Marinha Mercante Portuguesa. Não acredito que uma instituição como o “Royal Museum of Greenwich” se prestasse a isso e que um oficial da Marinha Mercante enveredasse por esse caminho. Para mim, tudo isto não passam de notícias falsas; ao tempo de ter tomado conhecimento deste assunto ainda não se falava em “Fake News”.
Ficamos assim com uma versão em segunda mão, ouvida da boca do capitão Frederico Vicente de Sousa, fornecida por um velho lobo-do-mar que se destacou pela sua dedicação a estas coisas da vela o capitão Emílio de Sousa e que foi passada à imagem/texto por John Richardson que, apesar de não deixar de cair na tentação de ter um comportamento por vezes menos próprio em relação aos portugueses, penso que tentou ser isento.
E, citando Marcel Proust em “À la Recheche du Temps Perdu” – “A lembrança das coisas passadas não é, necessariamente, a lembrança das coisas tal como se passaram.”
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Voltemos novamente à “estória”.
Mal o navio fundeou, uma delegação de representantes do governo português apresentou-se a bordo. O capitão Frederico de Sousa (capitão de Sousa daqui em diante) foi então informado pelas autoridades da entrada de Portugal na guerra contra a Alemanha. A delegação lembrou o capitão dos termos dos reservistas navais e avisou-o de que eles deveriam estar à disposição da Marinha Portuguesa, com efeito imediato. Além disso, o subsídio que a A&F Ferreira recebia do governo para treinar os seus marinheiros terminava imediatamente.
Guerra naval no Atlântico
Os submarinos alemães estavam em plena atividade no Atlântico e no Índico e afundavam indiscriminadamente qualquer tipo de navio inimigo de guerra e mercante, incluíndo os últimos veleiros de carga.
O capitão argumentou da melhor forma possível alegando que alguns membros da tripulação eram estrangeiros... ou que o cozinheiro era muito velho, e até sugeriu que tal guerra duraria apenas algumas semanas sem conseguir, no entanto, convencer as autoridades. As autoridades queriam que todos os homens, incluindo o capitão de Sousa, deixassem o navio, tendo declarado que o papel que o “Ferreira” desempenharia na guerra ia ser insignificante e que a sua capacidade de carga não correspondia ao número de homens necessários para o manobrar.
Foi uma negociação difícil para o capitão, mas depois de algumas garrafas do melhor vinho da sua reserva terem sido bebidas, as autoridades relaxaram um pouco a sua postura e mudaram a sua posição.
O resultado foi que o capitão de Sousa foi autorizado a permanecer a bordo de seu navio com um pequeno número de elementos da sua tripulação. Por fim, vários homens - que seriam oito dos seus marinheiros e um dos seus oficiais - foram transferidos para um navio de guerra português ancorado na estação de Lourenço Marques, nas proximidades.
O capitão de Sousa foi autorizado a manter no seu navio dois marinheiros, o cozinheiro e seis aprendizes que eram contratados pelo armador. Infelizmente, a remoção de nove homens deixou o capitão de Sousa com um número de tripulantes insuficiente para manobrar o “Ferreira”. Este número de homens era totalmente insuficiente para um navio aparelhado em “clipper” (Na primeira viagem de longo curso do "Cutty Sark" a equipagem foi constituída por 31 tripulantes).
As substituições de tripulantes eram impossíveis de ser feitas na altura, já que todo o pessoal capaz havia sido chamado às armas. Assim, o “Ferreira” ficou ancorado até meses depois em Delagoa Bay. Entretanto, o seu capitão conseguiu reunir meia dúzia de elementos camponeses moçambicanos e dois pescadores nativos; todos os que mostraram uma mínima inclinação para se tornarem marinheiros de águas profundas foram aproveitados. Cada um assinou com uma impressão digital. A tripulação, contava então com dezoito elementos, o que não era de forma alguma o suficiente para uma navegação segura e confortável.
Carvão a granel
Fundeado em Delagoa Bay, o “Ferreira” começou a carregar carvão a granel para a passagem de retorno a Moçâmedes.
Não se sabe se foram os estivadores locais ou os próprios marinheiros do “ Ferreira” - ou ambos - que carregaram a carga de carvão que atingiu 1.140 toneladas. E só mais tarde foi descoberto que a carga havia sido mal estivada.
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Quando um navio como o “Ferreira” carregava carvão, fundeado numa baía, a partir de barcaças, o método normal era usar as vergas mais baixas do navio como guindastes, unindo as diferentes vergas mais baixas entre elas e usando o guincho manual para trazer o carvão que se encontrava nas barcaças ao longo do costado.
O carvão era carregado a bordo em cestas que levavam entre duzentos e trezentos quilos de cada vez; depois de terem sido descidas até o topo da amurada, as cestas eram esvaziadas no porão inferior por meio de uma calha em madeira (tipo “escorrega”). Com três escotilhas de carga para seu único porão, o “Ferreira” carregou através de todas as escotilhas ao mesmo tempo.
O procedimento geral era que, enquanto o carvão estava a ser despejado no porão, um número de homens conhecidos como “compactadores” ou “espalhadores” (estivadores) de carvão eram responsáveis por espalhar e compactar o carvão uniformemente ao redor do porão para manter o navio nivelado. Infelizmente, surgiram problemas quando os estivadores, que provavelmente eram os novos membros da tripulação, começaram a deixar taludes e buracos, bem como vazios na carga de carvão junto ao casco do navio, quer a bombordo quer a estibordo.
A tarefa de estivar carvão mesmo em temperaturas normais só pode ser descrita como sendo muito desagradável. Mas quando o porão está cheio de pó de carvão que dificulta a visão, com os estivadores a ter que trabalhar com lanterna, luz de velas ou mesmo no escuro, essas condições precárias pioravam em muito.
Este trabalho também foi realizado num ambiente de calor tropical, não sendo assim de admirar que os estivadores apenas tivessem atirado o carvão para manter o navio em equilíbrio e saírem do porão o mais rapidamente possível. Infelizmente, e talvez o que não era conhecido por esses estivadores, foi o fato de que, quando o navio se faz ao mar e começa a rolar, o carvão estivado (mal) desloca-se devido aos taludes e buracos ocos e vazios, e para encontrar o seu próprio nível de equilíbrio – e às vezes com consequências terríveis – o navio desenvolve um adernamento!
No entanto, é mais do que provável que o carvão tenha sido atirado para o porão e não tenha sido espalhado e compactado.
No seu livro “Last of the Windjammers” – “O Último dos Grandes Navios de Carga“, (Brown Son & Ferguson – não publicado em português), Basil Lubbock descreve como alguns navios à vela eram carregados com carvão na costa australiana. Quando as embarcações, às vezes mal carregadas, deixavam o porto e enfrentavam mau tempo, o carvão inevitavelmente deslocava-se no bojo do navio. O navio adernado era então forçado a ir para uma baía portuária mais próxima, ou para algum outro refúgio para re-estivar a sua carga. Mas se o navio estivesse muito longe da terra, a tripulação teria que fazer esta tarefa com o navio em pleno mar alto. É claro que essa era uma tarefa muito difícil ou impossível em condições climáticas adversas, e é desnecessário dizer que grande parte dos navios nestas condições desapareceram da superfície dos mares sem deixar rasto. Basil Lubbock também afirma que muitos capitães de navios nestas condições, que conseguiram retornar ao mesmo local em que ele havia sido carregado, furiosamente apontavam para o adernamento do seu navio culpando os estivadores pelo mau carregamento.
Nessas circunstâncias, no entanto, deve ser explicado que há dois lados para esta história.
No caso dos estivadores, cujo trabalho é carregar o navio, eles tenderiam a encher o porão e a abandonar o navio o mais rapidamente possível carregando o próximo e assim aumentando o seu salário.
Por outro lado, e mais importante, é a responsabilidade do comandante do navio para garantir que o mesmo seja carregado corretamente. Se ele delega a um dos seus oficiais a supervisão do carregamento e da estiva, ou a deixa aos estivadores, ou até mesmo supervisiona ele próprio a operação, tal não faz diferença alguma. A responsabilidade final - até hoje - sempre foi do capitão.
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Quando o “Ferreira” suspendeu as suas âncoras para sair de Delagoa Bay, no dia 23 de Abril de 1916, era o último navio aparelhado como “clipper” a navegar pelos sete mares. A única outra embarcação “clipper”, da classe do “Ferreira”, era o português “Pero d'Alenquer” - ex “Thomas Stephens”. Mas ele tinha sido afundado com toda a tripulação alguns meses antes no Atlântico Norte. Assim, o “Ferreira” era o único clipper sobrevivente a navegar. Mesmo com quarenta e sete anos de idade, ainda podia fazer uma boa velocidade e, conforme a feição do vento, ainda tinha a habilidade de superar qualquer vapor de linha.
Apesar da equipa improvisada, tudo correu bem nos primeiros dias. Os recém-chegados receberam um curso intensivo em manobra de velas, direção do navio e todos os outros trabalhos de marinheiro necessários para manter um navio no mar. A nova tripulação mostrou notável habilidade e agilidade para trepar aos mastros e logo aprendeu a navegar com bom tempo. No entanto, alguns dos novos membros da tripulação pareciam saber mais sobre a selva do que sobre o navio, e logo depois de sair do porto começaram a sentir os efeitos enjoativos do movimento do mesmo.
Um exemplo de manobra do navio
O aprendiz mais velho ocupou a vaga de primeiro-oficial, e o capitão de Sousa vigiava os quartos em conjunto com ele. O capitão estava desejoso por ter uma passagem com bom tempo para que os seus novos “marinheiros” se aclimatassem. Infelizmente não foi assim, porque depois de cerca de uma semana no mar, com o “Ferreira” a navegar ao longo da costa da África do Sul, algures ao largo de East London, o tempo deu uma reviravolta e o navio começou a rolar pesadamente num mar de altas vagas.
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Bastante limitado em número de braços disponíveis para a viagem ao sair de “Delagoa Bay”, o “Ferreira” matriculou para esta viagem meia dúzia de tripulantes sem nenhuma experiência de mar. Os primeiros dias passaram de uma forma bastante boa com bom tempo; os aprendizes efetuavam a maioria das tarefas a bordo enquanto os novos “marujos” aprendiam as suas tarefas…
O navio seguia para o sudoeste na mesma direção de onde vinha o vento; o progresso tornou-se lento navegando por bordos. No dia seguinte, quando o “Ferreira” estava entre Port Elizabeth e East London, o tempo piorou drasticamente e os mares varreram os "decks" da proa à popa. O navio cabriolava e rolava pesadamente e a temperatura caiu visivelmente. Os galinheiros de cada lado do mastro da mezena tinham sido destruídos pelas vagas que varreram o convés durante a noite. Os galinheiros eram apenas troncos com penas de galinha flutuando pelo convés; havia também alguns cabos de manobra soltos das suas malaguetas que giravam na água que enchia o convés. O vendaval forte aumentou para força 10, e com o navio a cabriolar e a rolar da forma como estava, os novos marujos não conseguiam efetuar qualquer trabalho. Além disso, e com exceção de dois deles que tinham sido pescadores, estavam amontoados num estado de terror nos seus alojamentos à proa, recusando-se a sair.
Os galinheiros a cada um dos bordos do mastro da mezena
O navio continuava a mergulhar nos frios mares negros e, ao fazê-lo, o ar ficava cheio de um “spray” e de espuma o que reduzia em muito a visibilidade. Com as nuvens escuras passando tão baixo que pareciam estar a roçar as borlas dos mastros, tinha deixado de ser possível fazer a marcação do meio-dia com o sextante.
Com o capitão amarrado ao convés e dois aprendizes ao leme também amarrados, o trabalho no navio, que era principalmente manobra de velas, foi deixado para os outros jovens aprendizes, dois marinheiros e para o 1º oficial. O capitão de um navio de carga, com uma carga a granel procuraria monitorizar constantemente a situação na tentativa de determinar se a sua carga se conservava estável ou não. Neste caso do “Ferreira”, o capitão Sousa também estava preocupado com o fato de, com o porão mais baixo cheio e sem nada nos decks gémeos, o seu navio não estaria demasiado rígido. Esta situação poderia aumentar o efeito de pêndulo e induzir um rolamento excessivo contínuo.
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… mas, ao largo de “East London” o tempo ganhou uma faceta de tempestade.
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(Se um navio rolar vinte ou vinte e cinco graus em cada sentido, pode ser considerado normal em condições climáticas adversas, mas quando o mesmo barco rola trinta graus para um lado e apenas vinte para o outro – mais ou menos nas mesmas circunstâncias – então é óbvio que existe um adernamento. Quando um navio está a rolar e a cabriolar nas condições descritas, acontece que o rolamento é constante e vai aumentando quer para um lado quer para o outro e isso foi exatamente o que aconteceu com o “Ferreira”. Daqui resultou um adernamento para o lado de estibordo que arrastava as extremidades das vergas inferiores de estibordo na água.)
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Quando o capitão de Sousa percebeu que a carga se havia deslocado para estibordo tentou mudar de rumo para tirar o peso do lado de estibordo, mas devido ao excessivo adernamento o navio negou-se à manobra. Com o tempo tempestuoso que enfrentava, ele foi obrigado a arriscar e manobrar o navio para receber a incidência do vento do lado de estibordo.
O capitão sabia muito bem que o seu navio estava no meio de uma movimentada faixa de navegação, e também sabia que estava a ir diretamente para a costa sul-africana vizinha, acrescentando a isto que ele teria de suspender o navio para depois estivar novamente o carvão antes que pudesse retomar o seu curso.
Na parte da frente do alojamento da cabine de proa do “Ferreira”, havia uma porta pequena que levava ao convés intermédio e, a partir daí, podia-se alcançar a entrada do porão. Uma rápida pesquisa feita com uma lanterna revelou que a maior parte do deslocamento havia ocorrido na seção frontal do porão, mas a escotilha frontal não podia ser removida devido à grande quantidade de água que passava nesse local do convés. Eventualmente, parte da cobertura da escotilha foi retirada (um canto), o que permitiu uma luz suficiente no compartimento para a tarefa da estiva. Depois de algum tempo, um dilúvio de água entrou no porão, pelo canto de onde a escotilha havia sido removida e a escotilha teve de voltar a ser fechada.
Escotilha de proa no "Ferreira". A atual escotilha de "gaiúta", com portas, que se vê na fotografia, já é uma adaptação posterior - julgo que já depois do "Ferreira" ter voltado a ser "Cutty Sark" e ter ficado "atracado" em Greenwich - a uma escotilha de carga que se pode ver como base da atual.
A tarefa de estiva teve então que ser levada a cabo usando tanto uma lanterna de tempestade como velas de sebo. Infelizmente, o navio tinha um orçamento extremamente apertado e só possuía uma lanterna de tempestade.
Provavelmente, entre quinze a vinte toneladas de carvão tinham-se deslocado sobre estibordo, causando o adernamento. Embora possa não parecer muito num navio que transporta 1.140 toneladas, a diferença entre o lado de estibordo e o lado de bombordo era por volta de quarenta toneladas o que, num pequeno navio esguio e alto como o “Ferreira”, era bastante significativo. Além disso, tal adernamento só pioraria com o rolamento do navio, caso não fossem tomadas imediatamente medidas. Enquanto o navio ainda estava a rolar descontroladamente, havia sempre o risco de apanhar outra daquelas vagas maciças de través, onde outras quinze toneladas, ou mais, poderiam deslocar-se para estibordo. A partir, daí haveria pouca ou nenhuma esperança de estabilizar o navio. O capitão de Sousa agarrou-se ao leme e demorou a maior parte do dia para recuperar o equilíbrio do navio.
Lanterna de Tempestade
Sem retirar deste esforço, que foi coletivo, qualquer elemento da tripulação – cada um fez o que pôde – foram os adolescentes aprendizes que mereceram o maior crédito pela recuperação do navio. Enquanto aqueles rapazes estavam a trabalhar freneticamente na estiva do carvão para salvar o navio, as outras almas infelizes que estavam a fazer a sua primeira viagem no mar ainda estavam amontoadas no seu alojamento, a sofrer os efeitos terríveis tanto dos mares alterosos como do terror.
O “Ferreira” retomou o seu curso no dia 3 de Maio, mas depois de mais rolamentos durante a noite, mais uma vez desenvolveu um adernamento para estibordo. O capitão de Sousa ainda considerou levar o navio para Port Elizabeth para recuperar a carga, mas essas coisas custam dinheiro. O navio tinha estado ocioso durante seis meses em Delagoa Bay e antes, quatro meses em Moçâmedes, onde aguardou a chegada de seu novo leme. Não havia dinheiro disponível!
Por causa das perigosas rochas “Thunderbolt”, que ficam do lado de fora da entrada de Port Elizabeth, o capitão de Sousa decidiu que era muito arriscado tentar entrar. Os seus aprendizes tinham feito um excelente trabalho, e ele decidiu continuar, esperando que os ventos e os mares diminuíssem. Às primeiras luzes, no dia 4 de Maio, aqueles galhardos aprendizes, estavam mais uma vez no porão arremessando carvão de um lado do navio para o outro. Com o capitão constantemente ao leme o 1º oficial também desceu ao porão. E ele estava plenamente consciente, como todos os que estavam no porão de que, se o navio subitamente se inclinasse, todos eles seriam sepultados debaixo do carvão.
Baía de "Port Elizabeth" - Carta do Almirantado
Mas ninguém precisava dizer a esses homens que, mesmo que isso acontecesse, não faria alguma diferença se eles estivessem no porão ou no convés. Não haveria nenhuma oportunidade de lançar um bote salva vidas ao mar devido à força do vento e aos mares alterosos e o seu fim seria sem dúvida o mesmo. A água do mar, que havia entrado pela escotilha aberta, só veio aumentar as dificuldades daqueles marinheiros, já que a água acabaria por se infiltrar no porão contribuindo para que o navio afundasse rapidamente - a menos que pudesse ser bombeada para o mar.
Bombas manuais de escoamento do "Ferreira"
Mas as bombas não podiam ser manobradas devido aos grandes mares alterosos e furiosos que varriam o navio. Esses enormes dilúvios de água certamente esmagariam qualquer corpo contra os baluartes ou arrastá-los-ia para o mar. Os ventos fortes, as rajadas e os mares montanhosos continuaram, e isso só aumentou a miséria de uma tripulação completamente esfomeada, exausta e encharcada. O tempo continuava igual, assim como o deslocamento da carga. Repetidamente, esses rapazes foram enviados para nivelar o carvão, jovens garotos que, naquela altura, aproveitavam todas as oportunidades para alguns preciosos momentos de sono... onde quer que estivessem no final de cada sessão. Quando surgia a oportunidade, nenhum deles se preocupava em tirar as roupas encharcadas.
(continua)
Um abraço e ...
Bons Ventos