08.09.18
33 - Modelismo Naval 7.9 - "Glossário (e mais qualquer coisa) de Termos Náuticos - Grandes Veleiros 1"
marearte
Caros amigos
" - Suponho que seria impossível descrever toda esta confusão de cordas, madeiras e lonas sem recorrer a temos náuticos. Claro, claro que seria impossível.
- Sem recorrer a termos náuticos? Seria difícil, doutor, mas posso tentar, se quiser.
- Não, é melhor não. Suponho que, na grande maioria dos casos, os objectos em questão só são conhecidos por esses nomes..."
Este diálogo passa-se a bordo da fragata "Sophie" entre o Dr. Maturin, médico a bordo, e um marinheiro a quem ele pediu para lhe explicar algumas das "coisas" que existem nos navios.
O diálogo é uma citação de um dos 21 livros que Patrick O'Brian escreveu sobre a vida no mar na época da guerra entre a Inglaterra e a França napoleónica (mais a Espanha) e que são considerados como uma óptima referência sobre a terminlogia naval desta época, em todos os seus aspectos. O livro chama-se "Capitão de Mar e Guerra" e serviu de base ao guião para o filme "Master and Commander: The Far Side of the World". A tradução para português dos 3 primeiros livros desta série que inclui mais dois títulos a saber: "Capitão de Navio" e "A Fragata Surprise" (que também contribuíram com algumas cenas para o filme referido) foi publicada pelas Edições ASA até 2002 e apesar da tecnicidade dos mesmos é o mais fiel possível aos originais. Parabéns aos tradutores.
Penso que os restantes 21 livros não vão ser publicados em português. Há sempre a possibilidade de comprar as versões em inglês (que estão disponíveis na Internet em e.book) mas a sua leitura é deveras difícil, mesmo para quem seja fluente em inglês devido ao permanente uso de termos técnicos navais que exige muito dicionário. No entanto, sendo romances históricos grande parte do conteúdo dos livros é de fácil e agradável leitura.
Na realidade, a linguagem técnica de marinha é deveras dificil para quem, como o Dr. Maturin, se pode considerar como "marinheiro de sequeiro" ou seja, não iniciado na terminologia da profissão.
Mesmo tentando procurar em dicionários da especialidade - por vezes ilustrados - os verbetes que dão a definição de determinados termos recorrem muitas das vezes, a outra terminologia técnica o que vem baralhar mais a compreensão.
Atente-se ao seguinte exemplo retirado do "Guia do Marinheiro Amador" de Domingos Heitor Gomes que, pelo título, aparentemente seria um obra introdutória ao assunto:
"Adriça do Pique - É a que iça ou repica o penol da carangueja. Faz arreigada num olhal da pega do calcês, gurne de ré para vante, num moitão do terço de fora da carangueja, sobe a gurnir de cima para baixo num cadernal fixo a meia altura do calcês, desce a gurnir num moitão que engata num pé-de-galinha do terço médio da carangueja, sobe a passar no outro gorne do mesmo cadernal e desce ao longo do mastro a dar a volta na segunda malagueta do galindréu ou escoteira".
Claro como a água do mar... num dia de grande tempestade ... junto à costa!
Todo o verbete está certo mas, para quem não é marinheiro entendido, vai ter muito que procurar pela definição dos outros conceitos que aparecem no texto para poder?? compreender alguma coisa sobre a função, a localização e o funcionamento desta adriça.
Penol da carangueja, fazer arreigada, olhal da pega (lê-se pêga), calcês, gurne (gurnir), cadernal, moitão, pé-de-galinha, malagueta e galindréu ou escoteira são dez termos que é necessário entender para saber o que é a Adriça do Pique.
E mesmo depois de encontrar a definição destes termos, duvido que se consiga entender perfeitamente o que é, para que serve e qual a função desta adriça. A não ser que se tenha a sorte de encontrar alguma fotografia ou desenho que possibilite a visualização da mesma no contexto de um navio.
Tudo isto vem a talhe de foice da sequência de posts que tenho vindo a publicar sobre o "Cutty Sark" e da sensação - já por mim manifestada num dos posts anteriores desta série - de que a maioria dos possíveis leitores do meu blog não consegue entender grande parte destes posts pois o blogue não se dirige a especialistas mas sim às pessoas comuns (não quero com isto dizer que os especialistas não são pessoas comuns) que gostam do mar e da navegação em grandes veleiros, fazem ou pretendem vir a fazer modelismo naval e procuram melhorar os seus conhecimentos sobre o assunto.
Tendo isto em conta, inicia-se com este post e outros que serão publicados mais tarde, à medida em que estejam prontos (e eu tenha paciência), uma série de verbetes que pretendem abordar os termos e os conceitos diversos que caracterizam a terminologia náutica mais usada.
É de ter em atenção que as noções e termos apresentados dizem respeito a grandes veleiros a partir dos meados do séc. XVIII até aos nossos dias e é válido para diferentes países, embora haja algumas variações de país para país (não muitas).
No que diz respeito aos navios da época dos descobrimentos, embora haja nomenclatura coincidente, o melhor será consultar outras fontes mais adaptadas a essa época.
Para quem interessar, aqui ficam endereços de referência que eu uso com frequência e que apresenta um Glossário multilingua - Português incluído - para essa época. De notar que Filipe de Castro é português e arqueólogo mundialmente conceituado.
"Early Modern Iberian Ships - Tentative Glossary"
Filipe Castro et al. - Ship LAB - Texas A&M University
Part 1 - Toponomy and Fittings
Part 2 - Timber
https://www.academia.edu/34517000/Early_Modern_Iberian_Ships_Tentative_Glossary_Part_2_-_Timbers
Part 3 - Rigging
https://www.academia.edu/34517069/Early_Modern_Iberian_Ships_Tentative_Glossary_Part_3_-_Rigging
Este glossário ainda se encontra em construção e tem contado com o contributo de diferentes especialistas. Desejamos que chegue a bom porto!
Irei procurar contextualizar objectivamente, através de desenhos, esquemas e fotografias (quando possível) cada um dos termos e apresentá-los, numa sequência aleatória, dentro de 7 grandes grupos a saber:
1 - Ideia Geral do Navio - Nomenclatura básica do navio e de navegação;
2 - Mastreação - Os diferentes mastros de um navio;
3 - Massame - Os cabos (nunca cordas*) do navio;
4 - Poleame - Os aparelhos para funcionamento dos cabos;
5 - Velame - Nomenclatura das velas e seu funcionamento;
6 - Manobra do Navio - Os diferentes cabos, vozes e faina na navegação;
7 - Diversos - Tudo o que não couber nos anteriores itens.
* Como piada, costumava-se dizer que as únicas cordas que existiam num navio eram a corda do sino, a corda dos cronógrafos e a do relógio do comandante. Hoje em dia terá que se cingir à corda do sino já que, tanto os cronógrafos como o relógio do comandante, possivelmente já são digitais.
A fim de possibilitar a pesquisa em literatura de língua inglesa apresenta-se também, quando possível, a tradução em Inglês (a vermelho) dos termos apresentados, bem como as diferentes grafias e nomes usados com o mesmo significado. Lamentavelmente, a maioria das fontes de referência sobre náutica encontra-se na língua inglesa e, para esta época, existe muito pouca coisa em português.
Para este glossário e sem intuito de erudição, indico para quem quiser aprofundar estes assuntos, a bibliografia que consultei:
- Dicionários, Glossários e Enciclopedias
1 - "Dicionário do Mar"
Cherques, Sérgio; Editora Globo - 1999, 1ª edição, S.Paulo, Brasil
2 - "Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual"
Com.tes LEITÃO, Humberto e LOPES, J. Vicente, Edição do Centro de Estudos Históricos e Cartografia Antiga - 1990, 3º Edição, Lisboa, Portugal
3 - "A Terminologia Naval Portuguesa anterior a 1460"
CARBONELL PICO, Maria Alexandra Tavares, Edição da Sociedade de Língua Portuguesa - Lisboa, Portugal
4 - "Dicionário de Marinha / Português - Inglês"
Com.te ESPARTEIRO, António Marques, Centro de Estudos de Marinha - 1975, Lisboa, Portugal
5 - "Dictionary of Naval Terms / English - Portuguese"
Capt. ESPARTEIRO, António Marques, Centro de Estudos de Marinha - 1974, Lisboa, Portugal
6 - "Comprehensive Technical Dictionary"
SELL, Lewis L. - 1953, McGraw-Hill, S. Paulo, Brasil
7 - "The Encyclopedia of Ships"
GIBBONS, Tony et al. - 2003, Amber Books, Ltd e De Agostini UK Ltd, London, UK
8 - "Dicionário Visual dos Navios e Navegação" - in "O Corpo Humano e outras Grandes Máquinas"
WILKINSON, Paul et al. - 1991, Dorling Kindersley Limited, Londres / 1992, Editorial Verbo, Lisboa /
Jornal Público
- Manuais e Livros Técnicos
9 - "The Elements and Practice of Rigging and Seamanship - Illustrated with Engravings, in two volumes"
STEEL, David - 1794, Historic Naval Ships Association, London, Great Britain
10 - "Grandes Veleiros"
4 volumes, 1999, Ediciones Altaya, Barcelona, Espanha
11 - "Navios & Veleiros - História, Modelos e Técnicas"
5 volumes, 1993, Editorial Planeta Agostini, S.A.
12 - "Sagres a Escola e os Navios"
1990, Edições Culturais da Marinha, Lisboa
13 - O Navio"
LANDSTRÖM, Björn, 1961, Publicações Europa-América, Lisboa
- Outras Fontes
14 - "Como se Fala a Bordo"
PENTEADO, Francisco, c. 1910, Publicado pela Universidade de S.Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Boletim 139, Literatura Portuguesa nº 10 em 1952, S. Paulo, Brasil
15 - "No Catavento de um Veleiro"
Com.te MELLO BAPTISTA, Ernesto de, 1956, Imprensa Naval, Rio de Janeiro, Brasil
16 - "Agenda do Marinheiro"
BRAGA, Fernando Celestino (Texto) e GUIMARÃES, Artur (Ilustrações), 1947/1948/1949, Edição do Autor, Porto, Portugal
(para mim, esta "Agenda", pela sua simplicidade, é digna de ser lida com toda a atenção)
Nos diferentes verbetes destes posts, por baixo da ilustração e quando for o caso, irão figurar, entre parenteses, o(s) nº.(s) referentes a esta listagem das fontes. Também no texto dos posts, serão introduzidas referências comprovativas de algumas afirmações
A maioria dos desenhos são da minha autoria (mal) feitos com base em referências fotográficas ou ilustrações. Quando provierem de outras fontes tal será indicado.
Vamos então ao que interessa.
1 - Ideia Geral do Navio
Comecemos pelo que é mais básico mas essencial à compreensão do navio.
Desenho 1
Termos Básicos de Náutica
(8) (1)
1 - Vante - Frente do navio, secção da proa; Fore, Foreward.
2 - Amura - Direcção entre a proa e o través, de cada bordo; Projecção do costado em curva, de um a outro bordo entre o través e a proa (o m.q. bochecha); Bow.
3 - Través - Direcção perpendicular à quilha na altura da meia-nau; Beam.
4 - Alheta - Região da popa entre o painel e o costado; Direcção de cerca de 45o da popa entre o través e a popa; Quarter.
5 - Ré - Trás, atrás, na parte de trás; Stern = Popa.
6 - Popa - Parte posterior de qualquer embarcação onde se situa o leme; Stern = Ré.
7 - Meia nau = Meio navio - Parte do casco compreendido entre a popa e a proa e não perfeitamente delimitado; Em Portugal aceita-se que é "o espaço de centro do navio, compreendido entre o mastro grande e o traquete". Dicionário de Marinha de J.P. Amorim, 1841; Center Line, Fore and Aft Line = Linha de Mediania.
8 - Proa - Extremidade anterior da embarcação, geralmente de forma afilada para melhor fender as águas; Head, prow, nose (por vezes aparece como bow).
9 - Bombordo*/BB - Lado ou bordo esquerdo da embarcação para quem olha para a proa, oposto ao estibordo que, em Brasileiro se chama boreste; Port, Port side, larboard, ou Left nos U.S.A.
10- Estibordo/EB - Lado ou bordo direito da embarcação para quem olha para a proa, oposto ao bombordo. O boreste dos brasileiros; Starboard, Starboard side ou Right nos U.S.A.
11 - Barlavento - Direcção de onde sopra o vento. O contrário é o sotavento; Wind side, windward, weather side, weather luff.
12 - Sotavento - Lado oposto aquele de onde sopra o vento, para onde vai o vento. O contrário é o barlavento; Lee .
* A origem do termo Bombordo é, muitas vezes, atribuída aos portugueses (principalmente pelos mesmos) como tendo origem na época dos descobrimentos, quando foi iniciada, depois das primeiras navegações à costa de África, a descida dessa mesma costa em direcção ao Sul. Estas viagens foram efectuadas quase sempre à vista da costa que se apresentava pelo lado esquerdo dos navios. Esta situação que facilitava a navegação no sentido do Sul teria levado os navegadores a considerarem o lado esquerdo do navio como o bordo bom do mesmo ou seja, o bombordo. Por esta lógica, quando vinham para "cima", de regresso a casa, o bombordo passaria a ser o lado direito do navio! Seria confuso!
Durante o Estado Novo, tudo se fez para cobrir de glória os descobrimentos - que a merecem - tentando justificar o injustificável, o Império Colonial, mas exagerando com a invenção de "factos" inexistentes que não resistem a uma análise mais atenta.
A data considerada para o início dos Descobrimentos Portugueses é a da conquista de Ceuta em 1415. Só a partir de 1420/1422 se inicia uma descida sistemática, com muitos hiatos, da costa africana ou seja, só a partir desta data poderia ter acontecido a observação do bom bordo como sendo o lado esquerdo do navio a navegar no sentido Norte/Sul pela costa africana.
Na "Terminologia Naval Portuguesa anterior a 1460" editado pela Sociedade de Língua Portuguesa, de Maria Carbonell Pico, existem dois verbetes, um na página 222 de BABOR ou BABORDO, s.m. que diz "do neerl. bakboord , directa ou indirectamente (Valkhoff), talvez pelo catalão" outro, na página 233 de ESTRIBOR ou ESTRIBORDO, s.m. que também diz "do neerl. stierboord (Valkhoff), talvez pelo catalão". (3)
E a autora apresenta a primeira vez em que os termos foram usados na lingua portuguesa escrita. No volume I dos "Descobrimentos Portugueses" na página 242, datado de 28/29 de Abril de 1416 consta num documento "... e tomou o leme da dicta naoo E o botou com as mãaos a babos e estribor...". Isto foi 4 a 6 anos antes da dita descida!
Por outro lado e continuando a citar a investigadora, a origem do termo em neerlandês terá sido, segundo o dicionário Bl-Wart: " backboord é composto de bak (costas) e de boord (bordo), donc bord du dos, ainsi nomée parce que, lors de la formation du mot en néerl., le pilote, gouvernant une godille fixée du cotê droit du bateau, tournait le dos au cotê gauche".
Pode-se continuar a divulgar esta "estória" a par da invenção da bússola pelos portugueses (melhoramento das que eram há muito usadas na China, é possível) da existência da Escola de Sagres (12) num sentido físico - os painéis de identificação do reduto em Sagres afirmam isso - (quanto muito poderia ter sido em Lagos mas nem isso) e de outras, mas não correspondem à verdade. E temos muitos factos verdadeiros dos descobrimentos dos quais nos podemos e devemos orgulhar (ao contrário do que agora alguns pretendem negar).
2 - Mastreação
Embora os veleiros possam ter menos ou mais de três mastros, podemos dizer que a maioria arvora 3 mastros que são, da proa para a ré, o Traquete, o Grande e a Mezena (ou Mastro da Gata em alguns países ou locais).
Todos eles - o Traquete, o Grande e o mastro da Mezena - são compostos por três elementos que vão afunilando até ao calcês, com palha (espessura) e guinda (altura) diferentes
Os terços inferiores dos mastros que enfurnam (passam) numa enora (buraco) do convés e assentam nas carlingas (encaixe) da sobrequilha, tomam o nome de Mastro Real (quer para o Traquete, quer para o Grande, quer para o da Mezena) e terminam num engrossamento (romã) onde assentam os cestos das gáveas que encaixam os mastaréus da gávea, tomando estes o nome de Mastaréu do Velacho quando no Traquete, Mastaréu da Gávea quando no Grande e Mastaréu da Gata quando no da Mezena.
Normalmente eram construídos em madeira mas os Mastros Reais também, por vezes, foram construídos em metal.
A estes mastaréus são sobrepostos outros, por um processo de ligação semelhante aos anteriores, e que se chamam Mastaréu do Joanete do Traquete, Mastaréu do Joanete do Grande e Mastaréu do Joanete da Mezena (ou Gata).
Mais à frente, quando se abordar o item do Velame, veremos que poderá haver outro tipo de masteréus que se sobrepôem ao do Joanete.
Desenho 2
Dos mastros dos Grandes Veleiros
(1)
22 - Vaus - Cada uma das quatro vergônteas, duas transversais e duas longitudinais (no caso do desenho são só duas transversais), assentes nos curvatões, sobre as quais descansa o cesto de gávea.Chamam-se reais ou de gávea quando no Mastro Grande, no Traquete e na Mezena e de joanete quando no mastaréu do Joanete de Proa, do Joanete Grande e da Sobregata. - Crosstrees.
23 - Pega (Pêga) - Grossa peça de madeira, chapeada de ferro, quase rectangular, com uma abertura quadrangular para a mecha do calcês do mastro e outra, redonda, para enfiar o mastaréu, imediatamente superior. - Cap, (pega real, pega de gávea) Lower Mast Cap, (pega do joanete) Topmast Cap, (pega do sobrejoanete) Topgallant Cap, (pega do gurupés) Bowsprit Cap, Bowsprit Cranse-iron, (pega do mastro) Mast Cap.
24 - Panela de encapeladura dos Joanete - Manga de ferro ou cobre que abraça o mastaréu do Joanete para receber as encapeladuras das enxárcias e dos brandais. - Mast Funnel, Jack.
25 - Panela de encapeladura do Sobre - Manga de ferro ou cobre que abraça o mastaréu do Sobre para receber as encapeladuras das enxárcias e dos brandais. - Mast Funnel, Jack.
26 - Galope - Extremo superior do mastro ou mastaréu, desde a encapeladura mais alta até à borla do topo - Gallop, Pole, (galope do sobrejoanete) Royal Pole.
(continua)
Um abraço e...
Bons ventos