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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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20.08.18

31 - Modelismo Naval 7.7 - "Cutty Sark" 2.6


marearte

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(continuação)

 

Caros amigos

No último post tínhamos deixado o “Cutty Sark” atracado no porto de Londres à sua chegada de Sidney em 17 de Janeiro de 1890, depois do famoso feito de ter ultrapassado o “SS Britannia”, tendo sido desarmado na mesma altura.

Novamente, foi necessária uma outra longa espera para consignação de uma carga em Londres, até que a tripulação de 22 homens para a viagem 21 foi matriculada em 12 de Maio de 1890, enquanto o navio se encontrava na doca seca para uma limpeza profunda do casco. Nesta viagem o capitão Woodget levou consigo dois filhos como aprendizes. Richard John de 17 anos e Harold, de 15 anos. Só foram contratados oito AB's para a viagem, mas havia oito aprendizes para completar a tripulação. O despenseiro falhou esta viagem e Tony Robson atuou como cozinheiro-despenseiro. Na passagem para a Austrália, o “Cutty Sark” teve a sua velocidade bastante condicionada pelos ventos. O seu melhor percurso diário foi de 340 milhas no Oceano Antártico, enquanto o pior foi apenas de 2 milhas.

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 Querenar (1) é o que está a ser feito neste navio junto a um pontão de baixa profundidade.

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(1) Tratava-se de fazer limpeza e/ou consertos e/ou pintura e/ou substituição de chapas de cobre, nas obras mortas do navio. Deixou de ser usada quando apareceram as docas secas que facilitaram este tipo de trabalho. O navio era levado a esta posição de deitado para um dos bordos com um conjunto de aparelhos de força. Era bastante trabalhoso e arriscado pois as manobras eram feitas em duplicado (bombordo/estibordo) e muitas vezes qualquer coisa se partia. O “Cutty Sark” já beneficiou de doca seca. Os nossos navios dos Descobrimentos foram assim reparados e limpos, principalmente em terras da descoberta.

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Apesar do fato de ter ultrapassado muitos dos seus rivais do comércio da lã na passagem para Sidney, o percurso do “Cutty Sark” feito em 75 dias foi relativamente normal. Contudo, um fato a assinalar é que o “Cutty Sark” nesta viagem ultrapassou o navio irmão do “SS Britannia”, o “SS Victoria”, ao largo do Cabo Otway (costa sul da Austrália), em 31 de Julho de 1890. À chegada a Sidney, a grande greve marítima estava em andamento. O resultado dessa situação foi uma longa espera para todos os navios de vela, e tudo porque, quando os fardos de lã chegavam aos armazéns do cais os navios a vapor, que eram mais rápidos e confiáveis, açambarcavam quase toda a lã disponível.

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Leitura da velocidade do navio à popa do “Cutty Sark”. Três homens, linha de barca (ou barquinha) e uma ampulheta. (2)
 
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(2) Uma técnica simples mas não muito fiável. Sempre que o tempo o permitia esta leitura era feita em cada quarto. A linha de barca é uma linha largada pela popa que está graduada em nós e meios nós. A velocidade era calculada tendo em conta a quantidade de linha que saía do carreto em determinado tempo. Penso que na altura já existiam sistemas de hodómetros mecânicos de hélice mas também não sei se o uso deste sistema não seria uma opção do “tradicional” capitão Woodget.

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O “Cutty Sark” só começou a carregar a 7 de Novembro de 1890 mas devido ao fato dos  fardos de lã estarem a chegar ao cais aos bochechos, só terminou o carregamento em 14 de Dezembro. Nesta data estavam no seu porão 4.617 fardos de lã devidamente acondicionados com lastro para estabilidade. Não havia deserções em Sidney naquela viagem, mas o aprendiz Charles Tite adoeceu na primeira semana de Dezembro tendo sido dispensado. O navio zarpou em 14 de Dezembro de 1890 com a esperança de chegar a tempo a Londres para as vendas de lã de Março. Mas, na primeira parte do percurso o navio apanhou vento adverso e situações de calmaria, tendo levado 33 dias até contornar o cabo Horn. O Equador foi cruzado em 13 de Fevereiro de 1891 e, depois de uma passagem de 93 dias, Londres foi atingida em 17 de Março de 1891. Foi, até aquela data, a viagem mais longa que o “Cutty Sark” fez à Austrália. Mas mesmo assim mais uma vez ganhou a corrida da lã. O navio que chegou em 2º foi o “Salamis” da “Aberdeen White Star Line”, oito dias depois dele.

A viagem 22 de Londres para Sidney começou com a matricula de uma equipa de 22 homens em 21 de Abril de 1891. William Turner, o mestre carpinteiro que estava no navio desde 13 de Julho de 1883, e fez oito viagens, deixou o navio para ser substituído por J Ohrnberg da Finlândia. Ao mesmo tempo Esplin, o despenseiro, voltou a retomar a sua função depois de ter estado ausente na viagem 21. Mais uma vez, havia oito AB’s, oito aprendizes e dois oficiais que integravam a tripulação do capitão Woodget. O aprendiz sénior ocupou o posto de 3º oficial, enquanto outro aprendiz tomou o trabalho de “moço das luzes”, responsável por manter as lanternas de bordo permanentemente atestadas e em bom funcionamento. Os contramestres e os mestres veleiros não integravam a tripulação havia uma série de viagens e a tendência continuou. O capitão Woodget tinha a opinião de que todos os marinheiros deveriam ser mestres veleiros, enquanto que os oficiais de quarto deveriam atuar como contramestres.

Alojamentos dos marinheiros na caso doconvés da proa2.png

Alojamentos dos marinheiros na caso doconvés da proa1.png  

Dois aspetos do alojamento dos marinheiros na casa do convés da proa. A exiguidade do alojamento era normalmente esta: 12 beliches, uma mesa para refeições e como assento as caixas dos pertences dos marinheiros. Mas diga-se de passagem que os alojamentos do capitão, dos oficiais e dos aprendizes também não eram nada do outro mundo. Não eram cruzeiros de luxo. E as viagens duravam muito tempo.

 

Largando de Londres para Sidney em 23 de Abril de 1891,o “Cutty Sark” fez a passagem de Dover para Portland em 24 horas. Com esse excelente começo, atravessou o Equador no dia 20 de Maio, mas os ventos inconstantes para o resto da viagem resultaram em ter levado 79 dias para chegar ao seu destino. Mas, mesmo sendo um tempo lento pelos padrões do “Cutty Sark” ainda conseguiu vencer o resto da frota de lã que foi para a Austrália nesse ano. O ponto de interesse mais notável durante a viagem ocorreu em 28 de Junho, quando o navio estava na zona dos “Roaring Forties” entre os paralelos 40o e 50o Sul. O registo do Diário de Bordo do capitão Woodget assinala que, durante o “quarto das emendas” (das 08:00 ás12:00), estando a navegar num mar bastante agitado, ele viu a maior onda que já havia visto em toda a sua vida, a rolar sobre a popa.

 Tão grande era a enorme e rosnadora crista, que ele achou que o navio ia ser inundado e afundado para sempre. Mas foi então que a maestria do desenho do “Cutty Sark” feito por Hercules Linton se revelou. A almeida quadrada da popa – que veio do design de “The Tweed” – bem como as bochechas e alhetas do casco do navio desenhadas por Hercules Linton, realmente desempenharam o seu papel ao máximo. Essa contra popa, de fato, levantou a ré do navio tal como tinha sido projetado fazer. Mas, como aumentava, a crista da onda envolveu a posição do timoneiro que, na altura devido ao estado do tempo, eram dois. A parede sólida de água então correu para a frente antes de desabar no convés principal envolvendo os alojamentos dos aprendizes. A casa do meio-convés estava cheia quase até ao nível do teto. O alojamento dos marinheiros também foi inundado, mas apenas ao nível dos beliches inferiores, quando a gigante do mar passou a rugir sobre o navio.

Tripulação em Sidney.png

Aos Domingos, quando o “Cutty Sark” se encontrava fundeado ou atracado na Austrália – neste caso em Sidney – tradicionalmente eram recebidas visitas de residentes locais (muitos possivelmente já amigos de longa data) para um convívio onde havia um sermão e pelos vistos, sessões de fotografia. Atrevo-me a dizer que possivelmente também haveria um tempo para o chá das 5 (ou outra hora qualquer) hábito que a nossa princesa D. Catarina levou para a corte Inglesa e que…pegou. Bem como a compota de laranja! Nesta fotografia aparecem dez “caras larocas” que vinham amenizar, com a sua presença, a vida dos oficiais e para-oficiais do navio em contraste com os dias de mar. Estão todos representados – oficiais e aprendizes e, possivelmente também os agentes da “John Willis & Son” em Sidney. O capitão é o 3º a contar da direita debruçado sobre a balaustrada do telhado da casa do convés da popa junto ao mastro da mezena, ao lado do vigário – suponho que da Igreja Anglicana – e tem na cabeça uma boina tipicamente escocesa. Como a do “Tam O’Shanter” da lenda da "Cuty Sark"que deu o nome ao navio.

 

Na verdade, se a popa não tivesse levantado quando isto aconteceu, aquela onda monstra teria desabado sobre o navio e varrido tudo, incluindo os botes auxiliares, as instalações do convés e sabe-se lá mais o quê. O 2º oficial, de 21 anos, Norman Canning, de St Mary's Jersey, lembra-se que enquanto estava à frente da oficina do carpinteiro viu, olhando na direção da popa, o enorme monstro com uma crista de espuma a crescer. Canning reparou que a vaga alcançou bem o nível da verga da vela da mezena e, com medo de ser varrido e esmagado, mergulhou para dentro da oficina e bateu com a porta atrás dele. A água que invadiu o navio correu ao longo do convés ao nível da vigia da porta da oficina com tanta força e barulho, que tanto o 2º oficial como o carpinteiro, que também estava dentro da oficina, acharam que estavam arrumados, mas depois de ir em direção da proa ao nível das vigias, aquela onda maluca passou pelo navio.

O capitão Woodget anotou que, quando a popa levantou, foi tão alta no ar, que o navio esteve momentaneamente num ângulo de 45 graus em relação ao mar. Então, quando o navio desceu pelo rosto daquela montanha de água deve ter atingido o dobro da velocidade a que já tinha navegado ou seja, 35 nós.

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Os tripulantes das atuais competições de Vela (Volvo Ocean Race, Velux 5 Oceans, Barcelona World Race, etc.) dizem que, quando os seus barcos correm no rosto de um mar enorme, como o “Cutty Sark” fez em 28 de junho de 1891, o registo de velocidade geralmente mostra pelo menos uma duplicação da sua leitura de velocidade normal.

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A roda do leme do Cutty Sark.png

Posição onde se encontravam os timoneiros que, em simultâneo, dirigiam o navio e respondiam às vozes do capitão. Há que ter em atenção que o seu papel não era de meros executantes de ordens. Tinham também de saber ler as situações e muitas vezes antecipavam-nas antes das vozes. Posicionavam-se ao lado da caixa de engrenagens virados de costas para a popa que fica mais ou menos a dois metros. Posição ingrata em mares alterosos. Qualquer onda fora do normal e eram os primeiros a sentirem-na no corpo. Daí que nestas situações, por norma, se amarravam com um cabo a qualquer ponto fixo sólido disponível, normalmente aos pés de fixação do suporte da retranca, um por cada bordo. A caixa de engrenagens é uma espécie de “direção assistida” composta de uma série de carretos que desmultiplicam a força necessária para virar o leme. Um mecanismo de sem-fim que existe na caixa liga à porta do leme por um eixo vertical (madre do leme) através da clara do leme, um buraco que atravessa o convés.

 

O capitão Woodget concluiu que, se os dois homens ao leme não estivessem amarrados ao navio, ambos teriam sido levados pelo mar sem nenhuma hipótese de resgate. O quarto de serviço no convés estava, felizmente, a trabalhar perto de seu alojamento. Também viram a enorme parede de água a chegar a bordo e largando tudo o que estavam a fazer mergulharam para dentro do seu alojamento. Mas antes que pudessem fechar a porta, bastante água do mar entrou, inundando o compartimento até aos beliches inferiores.

Passando o promontório de Wilson (ver, Mapa da costa Sudeste e Este da Austrália e da Nova Zelândia publicado no post nº 29; a ponta deste promontório é o South East Point; fica junto à cidade de Foster na província de Victória e situa-se no mapa, no canto inferior esquerdo) em 11 de Julho, o “Cutty Sark” chegou a Sidney dois dias depois, no dia 13 de Julho de 1891.

Nas 48 horas anteriores tinha feito uma média de 14,5 nós. Outra longa espera de doze semanas ocorreu antes que o agente finalmente conseguisse uma carga de lã. Junto às habituais 200 toneladas de lastro de estabilidade, o carregamento de 4.388 fardos começou em 27 de Outubro e terminou oito dias depois em 4 de Novembro. Navegando para Londres no dia seguinte, 5 de novembro de 1891, o capitão Woodget mudou a sua rota normal e foi passar a Norte da Nova Zelândia em vez de navegar pelo gelo.

Circular Quay Sidney.jpg

Circular Quay no centro de Sidney nos nossos dias e…

 

Circular Quay anos 1880.png

… o cais do Circular Quay nos tempos em que o “Cutty Sark” aí carregava fardos de lã.

Hoje é mais um sítio para “enfardar” e para “carregar” na cerveja e no whiskey.

 

Embora o capitão Woodget tenha conseguido algumas boas velocidades, a sua mudança de plano resultou em ter levado mais um dia para chegar ao cabo Horn do que o navio “Salamis” da “Aberdeen White Star Line”. Este navio tinha saído de Geelong oito dias antes do “Cutty Sark”, e também o bateu por um dia na passagem do Equador e por outro dia na chegada a Londres. Na verdade, o “Salamis” foi o vencedor da corrida de lã naquele ano levando 82 dias para Londres, enquanto o “Cutty Sark” ficou em segundo lugar com uma duração de 85 dias. Em Londres desarmou em 29 de Janeiro de 1892 e esperou pela sua próxima carga. Na verdade, foram mais de seis meses antes de garantir uma carga geral, que era para Newcastle NSW.

 

(continua)

 

Um abraço e...

Bons ventos