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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

24.08.18

32 - Modelismo Naval 7.8 - "Cutty Sark" 2.7


marearte

 

 

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(continuação)

 

Caros amigos

 

Matriculada uma nova equipagem em Londres em 9 de agosto de 1892, a viagem 23 começou com uma tripulação de 22 homens. Naquela viagem particular, Richard Woodget Júnior que na época era o aprendiz sénior, foi promovido a 2º oficial com um salário de 4£ por mês. Deixando a doca das Índias Ocidentais em 12 de Agosto de 1892, a passagem para Newcastle foi feita sem qualquer incidente notável, exceto que o “Cutty Sark” levou até 7 de Novembro e 87 dias para alcançar o seu destino. Depois de descarregar em Newcastle NSW, onde não foi possível a consignação de nenhuma carga, o capitão Woodget levou o seu navio 60 milhas para sul para o porto de Sidney. Mas os vapores tinham mais uma vez obtido a maior parte das cargas e tudo o que Woodget conseguiu foi uma remessa de lã para Antuérpia. Mas – numa nota mais otimista – um recorde de 4.723 fardos de lã foram acondicionados no navio, 87 mais que a sua última carga e 434 mais do que a primeira carga de lã que foi tomada pelo capitão Moore em 1882-83.

Mas enquanto o Cutty Sark estava a carregar em Sidney um dos aprendizes, Percy French Mortlock, desertou. Outro desertor, que tinha 19 anos, foi HN Maitland que havia sido contratado como rapaz por 1£ por mês. Para compensar o défice na tripulação, foi contratado um AB australiano de Sidney chamado Thomas Lewis. Também foi contratado Edwin Laister, de 53 anos que, a 1s por mês, trabalhou pela passagem para Antuérpia.

O carregamento foi concluído em 7 de Janeiro de 1893 e o “Cutty Sark” desatracou no mesmo dia. Apanhou ventos cruzados durante os primeiros dias, mas o capitão Woodget foi mais para o Sul em direção ao gelo onde os ventos eram geralmente mais fortes e mais consistentes. Mas algumas semanas depois, quando o capitão Woodget estava em 50º Sul e 46º Oeste, ficou surpreendido ao encontrar-se cercado por icebergs por vários dias. Era muito incomum encontrar um número tão grande de icebergs tão ao norte mas mais tarde descobriu-se que uma enorme porção de gelo se tinha destacado do planalto da Antártida e começado a partir-se durante o seu trajeto para o Norte. Também outros navios que dobraram o cabo Horn naquele ano encontraram e relataram um número excecionalmente grande de icebergs.

 

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Um iceberg fotografado pelo capitão Woodget, muito possivelmente na viagem 23, de regresso a casa.  

 

Felizmente, era verão no hemisfério Sul e esses icebergs podiam ser avistados facilmente. O “Cutty Sark” passou o cabo Horn em 5 de Fevereiro de 1893. Para o capitão Woodget, a viagem foi razoavelmente boa, mas só até um desastre ter atingido o navio com consequências fatais, às 14h15 em 2 de Abril de 1893. Naquela data o “Cutty Sark” encontrava-se na posição 47º Norte e 52º Oeste, ao largo da Terra Nova em pleno Atlântico Norte.

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Localização do “Cutty Sark” ao largo da Terra Nova na altura do desastre, assinalada com seta vermelha

 

Havia um mar cruzado desagradável correndo com as vergas nos brandais e a roda do leme tensa. O capitão Woodget era de fato um homem da vela, mas com o granizo a cair e o vento a intensificar, ele ordenou que a vela do sobrejoanete do mastro grande e a giba fossem abafadas. Depois que o sobrejoanete foi abafado rapidamente, dois marinheiros subiram ao pau da bujarrona para abafar a vela da giba. Naquele momento em particular, o timoneiro era o novo AB Thomas Lewis, que havia sido contratado recentemente em Sidney. O navio estava a jogar de um lado para o outro nas grandes ondas e, devido a isso, Lewis permitiu que o navio ocasionalmente deixasse de funcionar tendo perdido parcialmente o comando do mesmo. O capitão que na altura estava no convés da popa avisou-o sobre os dois homens no pau da bujarrona.

 

A proa do Cutty Sark e Pau da Bujarrona.jpg

A proa do “Cutty Sark” com a escultura de “ Nannie Dee – a bela bruxa “ (1) e o pau da bujarrona com os diferentes estais que sustentam no sentido Proa/Popa o mastro do traquete interligado com os outros mastros

 

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(1) As lendas são particularmente importantes na cultura popular escocesa e há uma que se destaca sobre todas as outras e que o poeta Robert Burns grafou no poema erótico “Tam O’ Shanter” em 1791, altura em que a Escócia ainda almejava ser independente da Inglaterra.

Em traços largos, a história é a seguinte:

A figura de proa do “Cutty Sark” representa "Nannie Dee", uma bruxa jovem e bonita, vestida com uma Cutty (curta) Sark (camisa) que lhe deixa o peito nu e lhe molda as formas de uma forma provocante, camisa essa que lhe tinha sido dada pela avó quando era muito mais pequena e não a acompanhou no crescimento. “Tam O’Shanter” viu-a dançar numa dança de bruxas da qual ela se destacava provocantemente e meteu-se com ela aplaudindo-a dizendo “Well done , Cutty Sark” mas quando ela o tentou abordar recuou e fugiu montado no seu cavalo. "Nannie Dee" correu atrás dele tentando alcançar o cavalo mas, quando estava quase a consegui-lo e estava a estender o braço esquerdo para lhe agarrar a cauda o que conseguiu, o cavalo escapuliu-se e a única coisa com que ela ficou foi com um punhado de pelos da cauda.

Tam o Shanter.png

 

O original da escultura – que não é o que está no atual navio – foi esculpido por Frederick Hellyer de Blackwall que também esculpiu todo um friso de bruxas escassamente vestidas que deveriam ser colocadas no arco dourado que se prolonga da proa até ao início do través, que chegaram a ser colocadas mas posteriormente retiradas por ordem de John Willis que não queria provocar um escândalo quando o “Cutty Sark” estivesse nas docas com pessoas a passar e possivelmente a comentar. A (falsa) moral Victoriana imperava na Inglaterra. Em vez disso foi inscrita a frase lema de John Willis “Onde há um Willis”.

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A figura de proa do “Cutty Sark”, a bruxa Nannie Dee

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Parte da coleção de figuras de proa (réplicas) de diferentes navios que se encontram no piso inferior por baixo do casco do “Cutty Sark” em Greenwich

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Mas enquanto eles estavam a abafar esta vela com vento forte, Lewis mais uma vez permitiu que o navio se afastasse do curso e isso fez com que o navio se dirigisse para a cava do mar. Como consequência, o pau da bujarrona mergulhou no mar e deu um sacão para a direita o que provocou que os dois homens perdessem os apoios dos pés e caíssem à água. Ao perceber o que aconteceu, o capitão Woodget imediatamente atirou duas boias salva-vidas para a água. Os dois homens na água esforçavam-se para se manterem a flutuar pois estavam vestidos com fatos de oleado e botas de mar. Além disso, à medida que o navio continuava a dar guinadas, eles foram-se afastando e já  estavam muito longe da amurada de estibordo e só podiam lutar ingloriamente. O mar estava muito bravo para que um barco fosse arreado, mas mesmo que isso fosse possível, os dois marinheiros rapidamente deixaram de ser visos.

Estes dois homens que eram bem considerados pelo capitão Woodget e se referia a eles como sendo excelentes marinheiros, eram John Doyle, de 30 anos, e John Clifton, de 22 anos, de Brighton. O capitão Woodget ficou profundamente triste com a perda desses dois jovens, e também observou que, em sete anos que levava como capitão do “Cutty Sark”, foi a primeira vez que ele viu o navio “afocinhar” o pau da bujarrona no mar. Deve ter sido bastante penoso ao capitão escrever as cartas de pêsames para as mães das duas vítimas do Atlântico Norte.

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O bote salva-vidas (e de trabalho) de estibordo do “Cutty Sark”. É nítido no apoio do lado esquerdo a existência de uma cavilha que era retirada (do da frente e do de trás), dobrando o apoio pela dobradiça para permitir o arrear do bote. Embora pudesse ser usado não encontrei nenhum caso de homem ao mar em que isso tivesse acontecido. O arremesso de boias de salvação era o mais comum mas também pouco eficaz. Por outro lado existem alguns casos documentados de o homem ao mar ser devolvido ao convés pela vaga seguinte.

 

Apanhando maus ventos frontais, o progresso desde os Açores foi lento até Antuérpia, tendo o “Cutty Sark” levado 23 dias, até 15 de Abril de 1893, para chegar ao porto. Enquanto em Antuérpia, o navio foi desarmado.

Seria uma boa altura para limpar o casco do navio e fazer reparações nas obras mortas, que o capitão Woodget sabia que precisavam de uma atenção drástica. Na verdade, parecia-lhe que o dono do navio, Willis estava a manter os cordões da bolsa cada vez mais apertados.

 

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A cozinha do “Cutty Sark” em 1996

 

Uma carga foi finalmente obtida para Sidney e, durante o carregamento no porto belga, o “Cutty Sark” matriculou uma nova equipagem no dia 28 de Julho de 1893 para a viagem 24. Naquela viagem, o filho do capitão Richard, que tinha sido o 2º oficial, deixou o navio. Foi substituído por um alemão de 21 anos chamado R Littmann. Ao mesmo tempo, Henry Norman, que tinha sido o imediato na viagem 22, e que se havia retirado na viagem 23, voltou para a viagem 24. O filho mais novo do capitão Albert, de 15 anos, também se juntou ao navio, mas porque ele não havia assinado qualquer contrato, juntou-se como rapaz com um salário de 1s por mês.

O salário de 1s por mês (um xelim) é um salário simbólico que confirma legalmente que a pessoa contratada estava realmente no navio enquanto este esteve no mar. Um salário tão pequeno era frequentemente pago a pessoas que trabalhavam para a sua passagem de um porto para outro. Essas pessoas podiam ou não ser qualificadas como marinheiros. No caso dos qualificados, eles eram normalmente obrigados a trabalhar no convés como marinheiros. Os homens não qualificados que são frequentemente referidos como supranumerários eram, por vezes, passageiros e eram usados como criados ou qualquer outra ocupação que pudesse ser possível para eles.

A viagem do “Cutty Sark” número 24 começou com a matricula da tripulação em 28 de Julho de 1893 em Antuérpia. Na ocasião, 10 AB e um rapaz foram contratados, e havia 8 aprendizes, 4 dos quais estavam no alojamento dos marinheiros, à proa, o que perfazia um total de 22 tripulantes. O navio zarpou de Antuérpia 3 dias depois, em 1 Agosto de 1893 para Sidney, porto a que chegou em 28 de Outubro de 1893, depois de um percurso de 88 dias desde Antuérpia. John Johnsen, um sueco de 50 anos, foi despedido, e Francis Ernest Dunnett, um aprendiz, desertou. Foram substituídos por dois marinheiros comuns (OS) W Woodford e JA Smallbrook. Depois de ter descarregado e por estar bastante atrasado  para conseguir uma partida de lã para a venda de Londres, os seus agentes conseguiram obter uma carga para Hull. Foram estivados no porão do “Cutty Sark” um número recorde de 5.010 fardos no valor de £100.000. A taxa do frete para o "Cutty Sark" de volta a casa foi a enorme quantia de £4.000.

Instrumentos de navegação do capitão Woodget.png

Alguns instrumentos de navegação que o capitão Woodget tinha a bordo do “Cutty Sark”. No sentido dos ponteiros do relógio, começando às 9 horas: trompa acústica, óculo telescópico, cronómetro e barómetro. Atualmente encontram-se expostos no “Cutty Sark” em Greenwich.

 

Mas o reinado do “Cutty Sark” estava quase no fim. Quando saiu de Sidney em 24 de Dezembro de 1893, foi pela última vez que o fez. Devido ao clima inconsistente e a um fundo do casco bastante sujo, a viagem para casa foi tão ruim quanto o regime do vento, com o “Cutty Sark” a levar 87 dias para chegar ao seu destino em Hull a 23 de Março de 1894. Depois de descarregar na doca Alexandra, o que levou 20 dias, o “Cutty Sark” navegou para Londres em 16 de Abril, onde começou a embarcar carga no porão com destino a Brisbane.

A viagem 25, a última do “Cutty Sark” sob a “Red Insign” começou com a matricula da sua tripulação em Londres, em 22 de Junho de 1894. De acordo com os registros disponíveis, o complemento do navio para essa viagem foi de 19 tripilantes o menor até à altura. Sem contar com o capitão, embarcaram dois oficiais, quatro aprendizes, nove AB's, 1 cozinheiro e 1 despenseiro. Se assim foi, é mais do que provável que um dos AB’s tivesse sido nomeado como mestre carpinteiro, enquanto que um dos aprendizes foi nomeado como 3º oficial. Partindo a 25 de Junho de 1894 com uma carga geral para Brisbane, fez escala em Gravesend para carregar a remessa usual de pólvora. Nenhum problema de nota foi anotado durante as primeiras semanas, mas quando o navio entrou na faixa dos 40o Sul dos “ventos rugidores”, certamente que houve. Uma vez naquela região do mundo, os usuais ventos e os mares cavados e agitados foram enfrentados e, por falta de uma boa revisão e manutenção do navio nos últimos tempos, mastaréus, antenas e outras artes do “Cutty Sark” começaram a ser levados pelo vento.

Devido à “relutância” de John Willis em gastar dinheiro no navio, levou a que o “Cutty Sark” não conseguisse alcançar as suas melhores velocidades, tendo o seu capitão anotado no diário que entre 20 e 30 milhas por dia estavam a ser perdidas porque não podia içar as velas necessárias nos ventos do Oceano Antártico devido ao estado do navio. Mesmo assim, o capitão Woodget içou todas as velas que eram possíveis. Nesta situação, o estai do pica-peixe desapareceu, o mastro do joanete do traquete caiu para o lado e a verga da gávea superior do mastro grande partiu-se em duas. Deste último acidente resultou em que as duas metades da verga caíssem no convés antes de serem seguras no lugar, sendo depois consertadas e enviadas de volta novamente em oito horas de trabalho. E isto numa situação de mar bravio e de ventos ululantes. Além dos mencionados, houve muito mais danos causados às casas do convés quando os mares varreram o mesmo, também havia cadeias de impunidouros mal mantidas das quais três foram levadas pelas águas. No entanto, aparelho com problemas ou não, do Lizard a Brisbane, o “Cutty Sark” fez a passagem em 79 dias atracando em 15 de Setembro de 1894.

O “Blackadder” também estava em Brisbane para carregar lã e zarpou para Londres no dia 20 de Outubro numa viagem que iria demorar 123 dias. Quando o “Cutty Sark” começou a carregar um dos AB’s chamado John Smith desertou no mesmo dia em que o “Blackadder” partiu. Sem substituições de AB’s disponíveis, dois garotos chamados H Dickson e HW Hill, ambos provenientes de Brisbane, foram contratados no lugar de Smith. Em 9 de Dezembro de 1894 o “Cutty Sark”, com uma carga de lã, soltou as amarras e fez-se ao mar para começar o que seria sua última viagem de trabalho sob a “Red Insign”. Ancorada na Pile Light durante a noite devido a ventos adversos, levantou âncora no dia seguinte para nunca mais ver a Austrália. O cabo Horn foi alcançado após 27 dias em 26 de Janeiro de 1895 e depois de um percurso a uma velocidade média baixa no Atlântico, o “Cutty Sark” arribou a Londres e desarmou pela última vez em 26 de Março de 1895.

 

John Willis, proprietário do "Cutty Sark", colocou-o à venda

 

O capitão Woodget ficou surpreendido quando soube que “seu navio” nos últimos dez anos deveria ser vendido. John Willis, que já se havia descartado da maior parte de sua frota, disse-lhe que a maior parte dos navios da frota não ganhava para as despesas. Os dados estavam lançados e nada havia a fazer. Aparentemente, já tinham começado negociações com o armador “J & A Ferreira” de Lisboa. Essas negociações foram bem-sucedidas e o “Cutty Sark” foi vendido para navegar sob a bandeira portuguesa em 3 de Julho de 1895, tendo sido renomeada como “Ferreira”. Depois dessa data, foi enviada de Lisboa uma tripulação para a conduzir para o seu novo porto de destino no Tejo. Segundo os portugueses, o navio sofreu uma revisão completa quando chegou a Lisboa. Quanto ao capitão Woodget, ele recebeu o comando do “Coldinghame”, também um clipper, mas de nenhuma maneira com a mesma performance do “Cutty Sark”. Pouco depois Richard Woodget retirou-se para as suas raízes e tornou-se agricultor e criador de gado em Norfolk. E possivelmente continuou a sua atividade de criador de cães pastores da raça“Coolie”.

 

Os Coolies do capitão Woodget.png

Os “Coolie” do capitão Woodget que eram criados a bordo do “Cutty Sark”  durante as viagens

 

Como nota final deste post, ao longo de toda a história de navegação sob a bandeira inglesa do “Cutty Sark”, os marinheiros que integraram as suas tripulações eram provenientes dos mais variados países, incluindo Portugal, e as deserções eram o pão nosso de cada dia quando os navios tocavam portos australianos. O “Cutty Sark” não foi exceção. Nos portos da Austrália ficaram 87 desertores nas várias viagens efetuadas: 62 em Sidney, 24 em Newcastle NSW e 1 em Brisbane. Existem duas possíveis explicações para estes “desembarques” à papo-seco.

Muitos dos desertores ficavam num país que nestes anos estava em expansão e necessitava de mão-de-obra e de colonos para o desenvolvimento das várias atividades económicas.

Mas muitos dos desertores disponibilizavam-se seguidamente para serem contratados por outros navios. Isto acontecia porque os salários nos portos da Austrália eram muito superiores aos pagos nos contratos na Inglaterra. Contra o salário de miséria estabelecido pela “Comissão de Comércio” na Inglaterra que oscilava entre £2-20-0 e £3-5-0 por mês, nos portos da Austrália contratava-se a £4 até £5 por mês. E muitas das vezes os capitães, se queriam voltar para casa, tinham que se sujeitar a estes salários. Alguns, durante a permanência nos portos australianos chegaram a fechar a cadeado os tripulantes nos alojamentos durante o período de estadia. Dizem! E “desertar” na Marinha Mercante não era considerado crime, mas podia haver “prisão preventiva”, antes do “crime”, à moda de George Orwell.

Da lista de desertores como não podia deixar de ser, consta um luso-inglês que desertou em Sidney. O seu nome era Joseph Brown, de Portugal. O que é que os portugueses não fizeram?

(continua)

 

Um abraço e…

Bons Ventos

 

20.08.18

31 - Modelismo Naval 7.7 - "Cutty Sark" 2.6


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(continuação)

 

Caros amigos

No último post tínhamos deixado o “Cutty Sark” atracado no porto de Londres à sua chegada de Sidney em 17 de Janeiro de 1890, depois do famoso feito de ter ultrapassado o “SS Britannia”, tendo sido desarmado na mesma altura.

Novamente, foi necessária uma outra longa espera para consignação de uma carga em Londres, até que a tripulação de 22 homens para a viagem 21 foi matriculada em 12 de Maio de 1890, enquanto o navio se encontrava na doca seca para uma limpeza profunda do casco. Nesta viagem o capitão Woodget levou consigo dois filhos como aprendizes. Richard John de 17 anos e Harold, de 15 anos. Só foram contratados oito AB's para a viagem, mas havia oito aprendizes para completar a tripulação. O despenseiro falhou esta viagem e Tony Robson atuou como cozinheiro-despenseiro. Na passagem para a Austrália, o “Cutty Sark” teve a sua velocidade bastante condicionada pelos ventos. O seu melhor percurso diário foi de 340 milhas no Oceano Antártico, enquanto o pior foi apenas de 2 milhas.

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 Querenar (1) é o que está a ser feito neste navio junto a um pontão de baixa profundidade.

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(1) Tratava-se de fazer limpeza e/ou consertos e/ou pintura e/ou substituição de chapas de cobre, nas obras mortas do navio. Deixou de ser usada quando apareceram as docas secas que facilitaram este tipo de trabalho. O navio era levado a esta posição de deitado para um dos bordos com um conjunto de aparelhos de força. Era bastante trabalhoso e arriscado pois as manobras eram feitas em duplicado (bombordo/estibordo) e muitas vezes qualquer coisa se partia. O “Cutty Sark” já beneficiou de doca seca. Os nossos navios dos Descobrimentos foram assim reparados e limpos, principalmente em terras da descoberta.

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Apesar do fato de ter ultrapassado muitos dos seus rivais do comércio da lã na passagem para Sidney, o percurso do “Cutty Sark” feito em 75 dias foi relativamente normal. Contudo, um fato a assinalar é que o “Cutty Sark” nesta viagem ultrapassou o navio irmão do “SS Britannia”, o “SS Victoria”, ao largo do Cabo Otway (costa sul da Austrália), em 31 de Julho de 1890. À chegada a Sidney, a grande greve marítima estava em andamento. O resultado dessa situação foi uma longa espera para todos os navios de vela, e tudo porque, quando os fardos de lã chegavam aos armazéns do cais os navios a vapor, que eram mais rápidos e confiáveis, açambarcavam quase toda a lã disponível.

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Leitura da velocidade do navio à popa do “Cutty Sark”. Três homens, linha de barca (ou barquinha) e uma ampulheta. (2)
 
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(2) Uma técnica simples mas não muito fiável. Sempre que o tempo o permitia esta leitura era feita em cada quarto. A linha de barca é uma linha largada pela popa que está graduada em nós e meios nós. A velocidade era calculada tendo em conta a quantidade de linha que saía do carreto em determinado tempo. Penso que na altura já existiam sistemas de hodómetros mecânicos de hélice mas também não sei se o uso deste sistema não seria uma opção do “tradicional” capitão Woodget.

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O “Cutty Sark” só começou a carregar a 7 de Novembro de 1890 mas devido ao fato dos  fardos de lã estarem a chegar ao cais aos bochechos, só terminou o carregamento em 14 de Dezembro. Nesta data estavam no seu porão 4.617 fardos de lã devidamente acondicionados com lastro para estabilidade. Não havia deserções em Sidney naquela viagem, mas o aprendiz Charles Tite adoeceu na primeira semana de Dezembro tendo sido dispensado. O navio zarpou em 14 de Dezembro de 1890 com a esperança de chegar a tempo a Londres para as vendas de lã de Março. Mas, na primeira parte do percurso o navio apanhou vento adverso e situações de calmaria, tendo levado 33 dias até contornar o cabo Horn. O Equador foi cruzado em 13 de Fevereiro de 1891 e, depois de uma passagem de 93 dias, Londres foi atingida em 17 de Março de 1891. Foi, até aquela data, a viagem mais longa que o “Cutty Sark” fez à Austrália. Mas mesmo assim mais uma vez ganhou a corrida da lã. O navio que chegou em 2º foi o “Salamis” da “Aberdeen White Star Line”, oito dias depois dele.

A viagem 22 de Londres para Sidney começou com a matricula de uma equipa de 22 homens em 21 de Abril de 1891. William Turner, o mestre carpinteiro que estava no navio desde 13 de Julho de 1883, e fez oito viagens, deixou o navio para ser substituído por J Ohrnberg da Finlândia. Ao mesmo tempo Esplin, o despenseiro, voltou a retomar a sua função depois de ter estado ausente na viagem 21. Mais uma vez, havia oito AB’s, oito aprendizes e dois oficiais que integravam a tripulação do capitão Woodget. O aprendiz sénior ocupou o posto de 3º oficial, enquanto outro aprendiz tomou o trabalho de “moço das luzes”, responsável por manter as lanternas de bordo permanentemente atestadas e em bom funcionamento. Os contramestres e os mestres veleiros não integravam a tripulação havia uma série de viagens e a tendência continuou. O capitão Woodget tinha a opinião de que todos os marinheiros deveriam ser mestres veleiros, enquanto que os oficiais de quarto deveriam atuar como contramestres.

Alojamentos dos marinheiros na caso doconvés da proa2.png

Alojamentos dos marinheiros na caso doconvés da proa1.png  

Dois aspetos do alojamento dos marinheiros na casa do convés da proa. A exiguidade do alojamento era normalmente esta: 12 beliches, uma mesa para refeições e como assento as caixas dos pertences dos marinheiros. Mas diga-se de passagem que os alojamentos do capitão, dos oficiais e dos aprendizes também não eram nada do outro mundo. Não eram cruzeiros de luxo. E as viagens duravam muito tempo.

 

Largando de Londres para Sidney em 23 de Abril de 1891,o “Cutty Sark” fez a passagem de Dover para Portland em 24 horas. Com esse excelente começo, atravessou o Equador no dia 20 de Maio, mas os ventos inconstantes para o resto da viagem resultaram em ter levado 79 dias para chegar ao seu destino. Mas, mesmo sendo um tempo lento pelos padrões do “Cutty Sark” ainda conseguiu vencer o resto da frota de lã que foi para a Austrália nesse ano. O ponto de interesse mais notável durante a viagem ocorreu em 28 de Junho, quando o navio estava na zona dos “Roaring Forties” entre os paralelos 40o e 50o Sul. O registo do Diário de Bordo do capitão Woodget assinala que, durante o “quarto das emendas” (das 08:00 ás12:00), estando a navegar num mar bastante agitado, ele viu a maior onda que já havia visto em toda a sua vida, a rolar sobre a popa.

 Tão grande era a enorme e rosnadora crista, que ele achou que o navio ia ser inundado e afundado para sempre. Mas foi então que a maestria do desenho do “Cutty Sark” feito por Hercules Linton se revelou. A almeida quadrada da popa – que veio do design de “The Tweed” – bem como as bochechas e alhetas do casco do navio desenhadas por Hercules Linton, realmente desempenharam o seu papel ao máximo. Essa contra popa, de fato, levantou a ré do navio tal como tinha sido projetado fazer. Mas, como aumentava, a crista da onda envolveu a posição do timoneiro que, na altura devido ao estado do tempo, eram dois. A parede sólida de água então correu para a frente antes de desabar no convés principal envolvendo os alojamentos dos aprendizes. A casa do meio-convés estava cheia quase até ao nível do teto. O alojamento dos marinheiros também foi inundado, mas apenas ao nível dos beliches inferiores, quando a gigante do mar passou a rugir sobre o navio.

Tripulação em Sidney.png

Aos Domingos, quando o “Cutty Sark” se encontrava fundeado ou atracado na Austrália – neste caso em Sidney – tradicionalmente eram recebidas visitas de residentes locais (muitos possivelmente já amigos de longa data) para um convívio onde havia um sermão e pelos vistos, sessões de fotografia. Atrevo-me a dizer que possivelmente também haveria um tempo para o chá das 5 (ou outra hora qualquer) hábito que a nossa princesa D. Catarina levou para a corte Inglesa e que…pegou. Bem como a compota de laranja! Nesta fotografia aparecem dez “caras larocas” que vinham amenizar, com a sua presença, a vida dos oficiais e para-oficiais do navio em contraste com os dias de mar. Estão todos representados – oficiais e aprendizes e, possivelmente também os agentes da “John Willis & Son” em Sidney. O capitão é o 3º a contar da direita debruçado sobre a balaustrada do telhado da casa do convés da popa junto ao mastro da mezena, ao lado do vigário – suponho que da Igreja Anglicana – e tem na cabeça uma boina tipicamente escocesa. Como a do “Tam O’Shanter” da lenda da "Cuty Sark"que deu o nome ao navio.

 

Na verdade, se a popa não tivesse levantado quando isto aconteceu, aquela onda monstra teria desabado sobre o navio e varrido tudo, incluindo os botes auxiliares, as instalações do convés e sabe-se lá mais o quê. O 2º oficial, de 21 anos, Norman Canning, de St Mary's Jersey, lembra-se que enquanto estava à frente da oficina do carpinteiro viu, olhando na direção da popa, o enorme monstro com uma crista de espuma a crescer. Canning reparou que a vaga alcançou bem o nível da verga da vela da mezena e, com medo de ser varrido e esmagado, mergulhou para dentro da oficina e bateu com a porta atrás dele. A água que invadiu o navio correu ao longo do convés ao nível da vigia da porta da oficina com tanta força e barulho, que tanto o 2º oficial como o carpinteiro, que também estava dentro da oficina, acharam que estavam arrumados, mas depois de ir em direção da proa ao nível das vigias, aquela onda maluca passou pelo navio.

O capitão Woodget anotou que, quando a popa levantou, foi tão alta no ar, que o navio esteve momentaneamente num ângulo de 45 graus em relação ao mar. Então, quando o navio desceu pelo rosto daquela montanha de água deve ter atingido o dobro da velocidade a que já tinha navegado ou seja, 35 nós.

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Os tripulantes das atuais competições de Vela (Volvo Ocean Race, Velux 5 Oceans, Barcelona World Race, etc.) dizem que, quando os seus barcos correm no rosto de um mar enorme, como o “Cutty Sark” fez em 28 de junho de 1891, o registo de velocidade geralmente mostra pelo menos uma duplicação da sua leitura de velocidade normal.

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A roda do leme do Cutty Sark.png

Posição onde se encontravam os timoneiros que, em simultâneo, dirigiam o navio e respondiam às vozes do capitão. Há que ter em atenção que o seu papel não era de meros executantes de ordens. Tinham também de saber ler as situações e muitas vezes antecipavam-nas antes das vozes. Posicionavam-se ao lado da caixa de engrenagens virados de costas para a popa que fica mais ou menos a dois metros. Posição ingrata em mares alterosos. Qualquer onda fora do normal e eram os primeiros a sentirem-na no corpo. Daí que nestas situações, por norma, se amarravam com um cabo a qualquer ponto fixo sólido disponível, normalmente aos pés de fixação do suporte da retranca, um por cada bordo. A caixa de engrenagens é uma espécie de “direção assistida” composta de uma série de carretos que desmultiplicam a força necessária para virar o leme. Um mecanismo de sem-fim que existe na caixa liga à porta do leme por um eixo vertical (madre do leme) através da clara do leme, um buraco que atravessa o convés.

 

O capitão Woodget concluiu que, se os dois homens ao leme não estivessem amarrados ao navio, ambos teriam sido levados pelo mar sem nenhuma hipótese de resgate. O quarto de serviço no convés estava, felizmente, a trabalhar perto de seu alojamento. Também viram a enorme parede de água a chegar a bordo e largando tudo o que estavam a fazer mergulharam para dentro do seu alojamento. Mas antes que pudessem fechar a porta, bastante água do mar entrou, inundando o compartimento até aos beliches inferiores.

Passando o promontório de Wilson (ver, Mapa da costa Sudeste e Este da Austrália e da Nova Zelândia publicado no post nº 29; a ponta deste promontório é o South East Point; fica junto à cidade de Foster na província de Victória e situa-se no mapa, no canto inferior esquerdo) em 11 de Julho, o “Cutty Sark” chegou a Sidney dois dias depois, no dia 13 de Julho de 1891.

Nas 48 horas anteriores tinha feito uma média de 14,5 nós. Outra longa espera de doze semanas ocorreu antes que o agente finalmente conseguisse uma carga de lã. Junto às habituais 200 toneladas de lastro de estabilidade, o carregamento de 4.388 fardos começou em 27 de Outubro e terminou oito dias depois em 4 de Novembro. Navegando para Londres no dia seguinte, 5 de novembro de 1891, o capitão Woodget mudou a sua rota normal e foi passar a Norte da Nova Zelândia em vez de navegar pelo gelo.

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Circular Quay no centro de Sidney nos nossos dias e…

 

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… o cais do Circular Quay nos tempos em que o “Cutty Sark” aí carregava fardos de lã.

Hoje é mais um sítio para “enfardar” e para “carregar” na cerveja e no whiskey.

 

Embora o capitão Woodget tenha conseguido algumas boas velocidades, a sua mudança de plano resultou em ter levado mais um dia para chegar ao cabo Horn do que o navio “Salamis” da “Aberdeen White Star Line”. Este navio tinha saído de Geelong oito dias antes do “Cutty Sark”, e também o bateu por um dia na passagem do Equador e por outro dia na chegada a Londres. Na verdade, o “Salamis” foi o vencedor da corrida de lã naquele ano levando 82 dias para Londres, enquanto o “Cutty Sark” ficou em segundo lugar com uma duração de 85 dias. Em Londres desarmou em 29 de Janeiro de 1892 e esperou pela sua próxima carga. Na verdade, foram mais de seis meses antes de garantir uma carga geral, que era para Newcastle NSW.

 

(continua)

 

Um abraço e...

Bons ventos

15.08.18

30 - Modelismo Naval 7.6 - "Cutty Sark" 2.5


marearte

 

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(continuação)

 

Caros amigos

 

A viagem 19 começou com a matricula da tripulação em Londres em 14 de Maio de 1888. Provavelmente, devido ao episódio de desmastreação na viagem anterior, o imediato James Dimint, de 48 anos, deixou o navio e foi substituído pelo segundo oficial Thomas W Selby. Também incluído no complemento do navio, estava o aprendiz de 15 anos Richard Woodget, o filho mais velho do capitão, que fazia a sua primeira viagem de mar. Mas, filho ou não do capitão, o jovem Richard não recebeu nenhum favoritismo de um pai que tratava todos os homens a bordo com igualdade. Deixando a doca da Índia Oriental para Sidney em 17 de Março de 1888, o “Cutty Sark” carregou um suplemento de pólvora em Gravesend e fazendo-se à vela no dia seguinte, largou o rebocador em Dungeness.

A passagem do “Cutty Sark” para Sidney não foi nada fora do normal, tendo percorrido 320 milhas em 27 de Julho, o seu melhor dia. Chegando ao porto de carga em 5 de Agosto de 1888, teve que aguardar mais de um mês antes de meter lastro de estabilidade e 4.496 fardos de lã que foram acondicionados no porão. Deixando Sidney, em 26 de Outubro, com destino a Londres, o capitão Woodget aparentemente havia carregado pouco lastro de estabilidade, o que resultou num maior bordo livre. Três dias depois de sair de Sidney, em 29 de Outubro, com mau tempo, o navio adernou devido ao deslocamento da carga. Nesta situação o capitão mandou abafar os sobrejoanetes e os sobrinhos.

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A escala na proa do “CuttySark” – que se encontra atualmente em Greenwich – indica a profundidade a que se encontrava a base da quilha do navio em relação á linha de água, em determinada altura (1).

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(1) O bordo livre para essa determinada altura seria assim a distância vertical entre a superfície da água e o convés do navio. Estas escalas encontram-se em ambos os bordos do navio quer à proa, quer à popa.

Por outro lado, existe no casco do “Cutty Sark”, gravado pela “Lloyds”, um sinal gráfico que indica qual é a linha de água aconselhada para o navio estando ele carregado. Esta linha é conhecida pela linha de Plimsoll, que deriva do nome do deputado inglês Samuel Plimsoll, e começou a ser usada em 1876, o que significa que foi inscrita no casco do “Cutty Sark” posteriormente a 1869, data do seu lançamento.

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Atualmente o registo é bem mais complicado mas possivelmente mais eficaz. Embora continue a manter uma linha de água base, foram acrescentadas toda uma outra série de indicações consoante as condições de navegação.

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Em 31 de Outubro, o desastre alcançou o “Cutty Sark” quando o navio estava na posição de 46o Sul e 162o Leste. Durante o “quarto da modorra”, às 3 da manhã, o quarto de serviço estava no convés a estibordo a bracear as vergas orientando-as em relação ao vento. Foi então que uma enorme parede de água veio trovejando cair no convés vinda de barlavento. Aqueles que a viram ou se aperceberam que alguma coisa vinha aí sobre eles seguraram-se, não indo na onda. Mas em tais casos, dificilmente há tempo para alertar os outros. Cada um deve ter um sexto sentido que só é adquirido com a experiência. Mas infelizmente, o aprendiz de 17 anos, Sidney Cooke, que estava a fazer a sua primeira viagem no mar, nunca tinha tido essa experiência. Ele ainda tentou segurar-se a um cabo de bracear enquanto o convés rapidamente se encheu até ao topo da borda falsa, mas na escuridão da noite, o jovem foi arrastado sobre as redes de segurança e caiu no mar furioso. Infelizmente, nada mais foi visto do jovem aprendiz.

Nesses casos, não há nada que possa ser feito pelo capitão para tentar um resgate. Primeiro e mais importante, o jovem estava vestido com fato de oleado e botas de mar e devido a isso, terá mergulhado como uma pedra. Em segundo lugar, mesmo que o capitão conseguisse virar o navio em volta, devido à intempérie teria sido perigoso para o navio e para todos a bordo. Teria de virar em redondo para se aproximar novamente e tentar determinar a posição onde o homem terá caído ao mar e mesmo que ele pudesse ter feito atempadamente estas manobras, estava um vento muito rijo e um mar muito bravo para arrear um barco. E estava muito escuro.

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O clipper “Torrens” a navegar na tempestade com dois tripulantes a trabalharem no pau da bujarrona. De notar que o único apoio é o cabo para os pés que corre ao longo do comprimento da bujarrona – bem como ao longo das vergas dos outros mastros. O resto é força de mãos e jogo de cintura para acompanhar o “remexer” do navio. Não se nota se existe algum cabo a ligá-los (tipo “arnês”) a qualquer ponto fixo do navio. Julgo que não, já que a prática normal era os marinheiros não ligarem muito a essas “mariquices”. Faziam mal!

Desenho de John Richardson

O “Cutty Sark” passou dos 64o Sul para encontrar “os ventos”, mas tudo o que conseguiu encontrar foram ventos de Leste o que resultou numa passagem do cabo Horn só a 3 de Dezembro após 38 dias, 13 dias mais do que o habitual. O melhor dia do navio na viagem para casa foi de 306 milhas. O navio “Loch Vennacher” ganhou a corrida da lã para Londres naquele ano com uma passagem de 84 dias,” Salamis” ficou em segundo lugar com 85, enquanto que o “Cutty Sark” chegou em terceiro com 86. O “Cutty Sark” desarmou em 21 de Janeiro de 1889.

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O “Loch Vennacher” (2)

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(2) Era um clipper de casco de ferro, de três mastros que operou entre a Grã-Bretanha e a Austrália desde os finais do séc. XIX a 1905 ao serviço da “Loch Line”. Foi construído nos estaleiros “Thomson’s” em Clyde, Glasgow e foi lançado em Agosto de 1875.

Afundou-se em Setembro de 1905 com toda a tripulação a bordo perto da “West Bay” tendo sido encontrados destroços do navio na costa sul da ilha de Kangaroo, no Sul da Austrália.

Em 1976 foram descobertos na zona da posição atrás assinalada os restos do naufrágio do navio a 12 m de profundidade pela “SUHR - Society for Underwater Historical Research”, Austrália.

O navio tinha 1.485 T, um comprimento de 76,23m, uma boca de 11,66m e um calado de 6,81m e durante toda a sua existência sofreu vários acidentes ao ponto de ser considerado “um navio sem sorte”.

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Depois dos barcos a vapor terem afastado os veleiros do comércio do chá, as estações de reabastecimento de carvão foram melhor estabelecidas na rota para a Austrália. Além disso, as modernas máquinas de vapor de expansão tripla deram aos “steamers” uma maior potência de vapor. Os resultados foram que as cargas para os veleiros, mesmo para os Antípodas, se tornaram mais difíceis de consignar. Com esses fatos e depois de desarmar em Janeiro de 1889, o “Cutty Sark” teve que esperar três meses antes de poder consignar uma car

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A zona do porto de Londres onde ficava a “West India Dock”

 

A nova viagem do “Cutty Sark”, como invariavelmente acontecia, começou com a matricula da tripulação em 2 de Maio de 1889 e, ao deixar a doca da Índia Oriental dois dias depois, o clipper foi carregar a partida habitual de pólvora em Gravesend para começar a viagem número vinte. Nesta viagem, 8 AB’s e nove aprendizes foram matriculados. York Atkinson foi promovido a 3º oficial e o complemento do navio tinha 23 tripulantes. Nada fora do comum aconteceu nesta viagem até que o navio se aproximou da costa sudeste da Austrália. Entre as datas de 23 e 24 de julho, o “Cutty Sark” teve um bom desempenho e registou 332 milhas mas, no dia seguinte, quando avistaram o promontório de Wilson – a ponta mais austral de Austrália – o rumo do navio foi alterado para a ENE.

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O mastro do traquete do “Cutty Sark”
 

Pouco depois do meio-dia, quando o vento desacelerou, o “Cutty Sark” estava a fazer entre 10 e 11 nós quando o navio símbolo da “P&O - Peninsular & Oriental Steam Navigation Company” o “SS Brittania”, passou o “Cutty Sark” pelo oeste. Desenvolvendo uma velocidade de 15 nós, o orgulho da poderosa linha deixou o casco do “Cutty Sark” para trás, até desaparecer na linha do horizonte. Mas depois do “Cutty Sark” ter passado o cabo Howe, quando alterou o curso para NE, o vento mudou para um oeste forte e firme. Este vento refrescante tocou o clipper em frente na sua maior velocidade.

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O “SS Britannia” (3) que foi ultrapassado pelo “Cutty Sark” no dia 26 de Julho de 1889 à 01h00 AM durante o “quarto da modorra”. O pessoal do Britannia estava a dormir.

 

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(3) O “SS Britannia” de 6.525 toneladas foi construído por “Caird & Co” de Greenock para a “P&O-Peninsular & Oriental Steam Navigation Company” e lançado em 18 de Agosto de 1887. Nos seus ensaios marítimos de 15 de Outubro de 1887, os seus motores de expansão tripla deram uma velocidade de 16,5 nós. Registado no dia seguinte, ele serviu a linha “P&O Line” até ter sido abatido ao efetivo e desmantelado em Gênova, em 1909.

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O “Cutty Sark” a voar sobre a água à velocidade de 17,5 nós – a maior que atingiu – a ultrapassar por estibordo o “SS Brittania” o vapor mercante mais rápido do mundo, aquela luzinha branca que se destaca sobre o fumo de carvão na parte média da direita da fotografia. Com propriedade, ”ficaram a ver (o) navio(s)”.

 

O clipper saltou para a frente como um galgo. Como de costume, o seu “mais velho”(4) capitão Woodget estava junto à balaustrada do convés da popa; uma posição onde passou a maior parte de sua vida no mar. Então, na primeira hora do “quarto da modorra”, quando o clipper corria como um galgo, uma miríade de luzes do navio de passageiros apareceu por cima do resbordo de proa do “Cutty Sark”. Na verdade, era o mesmo navio que havia passado o “Cutty Sark” no início da tarde – o novo e poderoso “SS Brittania”. A hora e a data foram registadas como sendo 1h AM em 26 de Julho de 1889. Com seus mastaréus do joanete curvados perigosamente para a frente e os cabos e as velas esticadas como cordas de violino até quase ao ponto de rutura, o clipper singrava impulsionado por um vento e um mar perfeitos, tanto para ele quanto para a ocasião.

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(4) Este “mais velho – old man” é um “calão” da Marinha Mercante Inglesa e é usado por “capitão”, no mesmo sentido que na África Subsaariana é usado ou seja, como tratamento respeitoso a pessoas importantes e de destaque.

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Os vigias dos navios a vapor geralmente não eram obrigadas a relatar as luzes que apareciam atrás da esteira do navio, de modo que o homem da gávea do “Brittania” provavelmente nunca se preocupou em olhar para trás. Mas na ponte do navio de passageiros, que na época era considerado o navio mercante mais rápido existente, o 2º oficial, Robert Olivey, viu uma luz vermelha a aparecer no seu quarto de estibordo. Ao ver que não havia luzes de mastro para acompanhar esta única luz vermelha, deve ter pensado que era estranho, pois apenas um navio de vela apresentaria uma tal luz. Certamente que não poderia ser um navio à vela a tentar ultrapassar o “Brittania”! Mesmo na época, os mais recentes navios de guerra da Royal Navy teriam dificuldade para o acompanhar - e muito menos passar por ele. Mas quando essa luz vermelha começou a ganhar relevo e a passar ao lado dele, a verdade impressionante atingiu-o em cheio. De fato, uma pequena embarcação de vela estava a ultrapassar o poderoso “Brittania” da “P&O Lines”.

O oficial de quarto tinha enviado recado para o capitão Hector aparecer e testemunhar por si mesmo o espetáculo inacreditável. No entanto, com o “Cutty Sark” atingindo mais de dezassete nós – ou vinte milhas por hora – rapidamente ficou a uma milha de distância do navio a vapor. Muito diferente do grande navio a vapor que deixava uma esteira em ebulição à sua volta e atrás de si, o clipper deixou apenas um fluxo de deslizamento estreito e calmo. Então, quando o navio de vela mais rápido do mundo ultrapassou o vapor mais rápido do mundo, a sua luz vermelha de bombordo foi-se desvanecendo lentamente enquanto ele se afastava, até desaparecer. Foi substituída por uma luz branca. A luz de popa do “Cutty Sark”!

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 A popa do “Cutty Sark” que a tripulação do “SS Britannia” não chegou a ver. Vislumbrou-a!

O “Cutty Sark” na doca seca de Greenwich em Agosto de 1994

 

Todos os marinheiros de vela da altura nada mais desejavam do que poder acenar a um vapor numa ultrapassagem, em especial um de uma linha de passageiros. Esta ultrapassagem foi a maior conquista de todos os tempos e tornou-se no ponto de discussão nas tabernas dos portos durante muitos anos. Foi pena que fosse de noite no momento dessa ultrapassagem histórica. Por isso os marinheiros do “Cutty Sark” não poderam gozar o privilégio de arrastar um cabo sobre a popa, convidando a “chaleira fumegante de estanho” a apanhar um reboque!

Na continuação de seu sprint épico e depois de ancorar no porto de Sidney, o “Cutty Sark” estava a acabar de arrumar as velas quando o navio de passageiros chegou. Uma hora depois, às 10 da manhã. Nos vinte anos anteriores, o “Cutty Sark” já tinha passado por vários vapores, mas passar o “Brittania”, o navio de passageiros mais rápido do mundo, para aqueles homens do “Cutty Sark” foi a maior conquista. A silhueta dourada da “Pequena Camisola” no topo do mastro principal deve ter ofuscado de brilho todos os que a contemplavam naquele dia de Sol no porto de Sidney. John Willis em Londres deve ter ficado encantado ao ouvir a notícia do famoso troféu do “Cutty Sark” e, sem dúvida, os telegramas com os seus parabéns foram rapidamente enviados através dos agentes de Sidney, à atenção do capitão Woodget.

O Cutty Sark a secar as velas.png

O “Cutty Sark” a secar as velas no porto de Sidney … à espera que o “SS Britannia” chegue. Já estão quase secas!

 

Á espera na baía de Sidney até 23 de Outubro de 1889, o “Cutty Sark” foi obrigado a ser o último na fila dos navios que carregavam lã. Isso ocorreu porque os expedidores queriam que todos os transportadores de lã chegassem a Londres aproximadamente ao mesmo tempo para as vendas de lã. Portanto, os navios mais lentos foram os primeiros na fila, enquanto o mais rápido ficou em último. O resultado dessa decisão significou que o “Cutty Sark”, que era o último na fila, teve de esperar na baía durante doze semanas até acostar no cais. Dez dias depois de ter acostado, ele tinha embarcado 4.557 fardos de lã e mais de 200 toneladas de lastro de estabilização constituído por minério de crómio, deixando o cais com destino a Londres em 3 de Novembro de 1889.

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Protótipos dos fardos de lã australiana que costumavam ser transportados pelo “Cutty Sark” que se encontram a bordo do navio atualmente em Greenwich.

 

Enquanto o “Cutty Sark” estava em Sidney, um AB chamada William Pari nascido na Nova Zelândia, desertou no dia 22 de Outubro. Foi substituído por Oscar Hausen que, por sua vez, depois de receber um adiantamento dos salários, não compareceu, sendo substituído por SA Frazer, de New York, que embarcou. O 2º oficial William Naylor foi de baixa no dia 19 de Agosto sendo substituído por um dos AB's Robert Walker em 1 de Novembro, que estará de novo na ribalta na história do “Cutty Sark” já quando o navio navegava sob a bandeira portuguesa com o nome de “Ferreira”.

Por ordem de partida em relação às suas velocidades, os outros clippers que deixaram Sidney antes do “Cutty Sark” foram: “Derwent”, “Cairnbulg”, “Orontes”, “Woolahora”, “Cimba”, “Sófocles”, “Serica” e “Rodney”.

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Anúncio de carregamento do "Cutty Sark" nas "East India Docks" "with very quick despatch",  com destino a Sidney sob o comando do capitão R. Woodget

 

Havia também os clippers de transporte de lã “Loch Vennacher” e “Salamis” de Melbourne e “Blackadder” de Brisbane. Com “Derwent” com uma vantagem de 20 dias em relação ao “Cutty Sark”, a corrida para Londres estava lançada. Um mau percurso de 30 dias do “Cutty Sark” para o cabo Horn foi seguido por um bom percurso de 23 dias até ao Equador, e de outros 22 dias até Londres. Ao todo o “Cutty Sark” levou 75 dias de Sidney para Londres, façanha que foi igualada pelo ”Cimba”. O clipper “Derwent” foi, na realidade, o primeiro a chegar a Londres após 80 dias, mas o percurso mais rápido foi conquistada pelo “Cutty Sark” e pelo “Cimba”, com 75 dias, que terminaram em conjunto. Á chegada do “Cutty Sark” a Londres, em 17 de Janeiro de 1890, o navio foi desarmado.

 

(continua)

Um abraço e…

Bons Ventos