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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

31.07.18

29 - Modelismo Naval 7.5 - "Cutty Sark" 2.4


marearte

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(continuação)

 

Caros amigos

 

Viagens 16 a 25 – Capitão Richard Woodget

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Ao longo dos séculos, na Grã-Bretanha, existiram inúmeros marinheiros que serviram tanto em navios à vela como em navios a vapor. Mas entre desse número incontável de marítimos, há um grupo que se destaca, um grupo formado por aqueles que, por causa de sua marinharia e outras habilidades a bordo, destacam-se claramente no mundo das ações marítimas e do heroísmo. Estes homens do mar estão inscritos nos anais da história marítima como é o caso de Horatio Nelson, que nasceu em "Burnham Thorpe" em Norfolk, e que se destacou pelos seus feitos na Marinha de Guerra Inglesa.

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O cemitério em Burnham Norton onde possivelmente se encontra sepultado o capitão Woodget

 

Outro grande marinheiro foi o Capitão Richard Woodget que nasceu a uma curta distância de Burnham Thorpe em Norfolk, terra de nascimento de Nelson. Richard Woodget (que tomou o nome da propriedade agrícola do pai – Woodget) nasceu em 1845 em "Burnham Norton", no condado de Norfolk. À sua educação na escola da aldeia de Burnham Market, seguiu-se um contrato com” Bullard, King & Co” em 1861 tendo-se engajado no pequeno navio "Johns". Foi o início de uma carreira que fez de Richard Woodget um dos maiores capitães da Marinha Mercante da Grã-Bretanha.

O seu primeiro navio era de navegação de cabotagem entre a Tyne e o Tamisa mas, um ano depois, o aprendiz Woodget foi enviado para a escuna "Paz". Em 1863 foi para o brigue de 196 toneladas "British Insign", navio no qual ele iniciou as deslocações para fora da Inglaterra e tomou, pela primeira vez, o gosto da vida a bordo. Neste navio, ele visitou o Mediterrâneo Oriental, a África do Sul e as Índias Ocidentais. No final do seu contrato em 1865, foi transferido para o "Faith" de 50 toneladas, outro navio de cabotagem no qual ele era o único oficial e onde tomava parte nos quartos de vigia. Em embarcações deste tamanho, geralmente havia uma tripulação de não mais de cinco tripulantes cuja alimentação era fornecida pelos próprios que a traziam para bordo.

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As primeiras viagens do capitão Woodget como marinheiro foram efetuadas entre o rio Tyne (Newcastle) e o rio Tamisa (Londres), dentro de um itinerário parecido com o que está traçado a vermelho no mapa supra

 

A partir de então, atingiu o certificado de 2º oficial, e navegou pela costa leste ao serviço da “Geordie Collier Brigs” (transporte de carvão) até conseguir o certificado de imediato e depois o de capitão. Os veleiros em que ele serviu durante esse período foram as barcas "Dolphin" e "Charles Lambert" que eram de cerca de 350 toneladas, o brigue "Twedsdale", o clipper "Alexandra", as barcas "Princess Dagmar" seguida por "Abbotsford", "Isabel" e "Nina", como imediato da escuna "Freak" de 98 toneladas, oficial na barca "Priscilla" e depois em 1874, primeiro como segundo oficial e depois como imediato, entrou para o seu maior navio até aquela data, o clipper de 876 toneladas "Copenhague", uma embarcação na qual serviu por seis anos. Em 1881 recebeu o seu primeiro comando do armador John Willis, o clipper "Coldstream", de 756 toneladas no qual ficou até 1885. Foi neste navio que ele provou ao empregador que era um marinheiro e capitão da mais alta qualidade.

 

Enquanto esteve a bordo do "Coldstream", o capitão Woodget deve-se ter roído com inveja enquanto era observado com desprezo por todas as embarcações de vela que o deixavam na esteira, especialmente os clippers que muitas vezes o ultrapassavam e desapareciam no horizonte dentro do mesmo quarto de vigia. Na realidade o navio construído em teca e pesado, tinha tantos anos quantos Woodget tinha de idade. Era lento e bastante imprevisível e precisava de um vento rijo para obter algo como dez ou mesmo nove nós. Maior velocidade era muito difícil de atingir, mesmo com bons capitães. Apesar disto, Richard Woodget foi um capitão que conseguiu tirar o melhor proveito deste navio antigo, muito diferente do capitão antes dele. Obteve pequenos lucros com o navio mas constantes, para o seu empregador. John Willis ficou muito impressionado com as competências de marinhagem e de negócios do seu capitão. Então, quando o "Coldstream" voltou a Londres vindo da Austrália, em Março de 1985, John Willis levou o capitão Woodget à doca da Índia Oriental onde o "Cutty Sark” estava a ser carregado.

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Foto do “Cutty Sark” feita pelo capitão Woodget na baía de Sidney

À medida que o lindo e elegante clipper se definia mais nitidamente no horizonte, John  Willis disse a Woodget que o capitão Moore, que tinha sido o seu comandante nas últimas três viagens, estava prestes a ser transferido para o seu navio bandeira o "The Tweed" e, como recompensa pelos seus esforços, o capitão Woodget deveria passar a comandar o "Cutty Sark". Para Richard Woodget, deve ter sido como um sonho tornado realidade, especialmente depois de ter navegado em alguns dos navios em que navegou.

Mas o capitão Woodget não tinha recebido o comando do "Cutty Sark" apenas para seu próprio benefício. Um outro intuito ligava-se ao destino para o qual John Willis tinha mandado construir o “Cutty Sark”. Cumprir o que tinha sido o almejado com o projeto e a construção e que nenhum capitão até à data tinha sido capaz de alcançar: obter o máximo de desempenho do “Cutty Sark” e colocar o "Thermopylae" firmemente no seu lugar, obtendo alguns recordes de vela!

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O “Thermopylae” no final da sua viagem inaugural em 1869

 

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O “Thermopylae” quando foi vendido ao Canadá em 1890 já com os mastros encurtados em 7 pés (2,13m)

 

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O “Thermopylae” já convertido em barca na altura em que foi comprado por Portugal (1895) para ser transformado no futuro navio escola “Pedro Nunes”. É de notar o comprimento do pau da bujarrona que é 10 pés maior do que os dos navios similares em tamanho o que melhorava a exposição ao vento das velas de estai, permitindo ao navio navegar mais chegado ao vento.

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Sobre a história do “Thermopylae” em Portugal, podem consultar neste blogue o post nº 20 onde essa história é contada. Embora nesse post tenha lamentado o torpedeamento propositado do “Thermopylae” na baía de Cascais pela Marinha Real Portuguesa (1907), vim a descobrir posteriormente que o estado de conservação do navio era bastante mau, que esse estado já vinha da Inglaterra e que ao fim de 19 anos de idade o navio – 2 anos antes de ser vendido para o Canadá que o despachou para Portugal 5 anos depois – já tinha sofrido reparações profundas no casco e nas vergas, dizem que por questões da qualidade da madeira da construção. No entanto não deixou de ser considerado pela Lloyds como um A1, tal e qual o “Cutty Sark”. Possivelmente para Portugal o navio tinha um mal para o qual não havia cura que fosse economicamente viável. País pobre, pobrezinho!

Mas a esta história há que juntar um outro clipper que também foi comprado aos ingleses, este por “tuta e meia” em 1869, também para servir como navio escola. Chamava-se “Thomas Stephens”. O estado de conservação do navio era péssimo. Era um clipper construído em ferro em 1869 que, depois de algumas confusas peripécias de passagem de mão mesmo antes de estar construído, começou a navegar na linha da Austrália durante 24 anos como carregueiro e em Julho de 1893 foi apanhado por uma enorme tempestade no Pacífico Sul tendo sofrido grandes estragos no convés e no aparelho. Três anos depois, em 1896, ao chegar a Londres, tinha sido vendido a Portugal, em Abril.

Veio para Portugal debaixo do comando do capitão Gomes (?) e com tripulação portuguesa acompanhado pelo capitão Belding, antigo comandante do navio. No Golfo da Biscaia o navio incendiou-se e foi graças à ação do capitão Belding em conjunto com a tripulação, que se conseguiu extinguir o fogo. Chegou a Lisboa sem mais sobressaltos e o capitão Belding foi condecorado com uma alta condecoração (?) e convidado a ficar como “consultor” num programa de treinamento de pessoal. O navio foi recuperado do fogo, batizado com o nome de “Pero d’Alenquer” e iniciou uma “nova” carreira como navio de treino da marinha mercante sob o comando do capitão Gomes, tendo partido de Lisboa com destino a Lourenço Marques e 8 de Outubro de 1896. Na passagem de regresso o navio tocou Luanda onde meteu uma carga de carvão rumando a Lisboa onde chegou a 9 de Julho de 1897.

A segunda viagem foi para a Índia, a terceira e a quarta foram novamente para Lourenço Marques com carregamentos de carvão de Moçâmedes (Angola). Embora tenha sido usado com uma certa intensidade, não voltou aos mares do sul nem a enfrentar a passagem do cabo Horn. Tal como o “Ferreira/Cutty Sark” e o “Pedro Nunes/Thermopylae”, as suas viagens tiveram grandes intervalos; ficou fundeado no Tejo desde 1909 a 1911 sendo usado como alojamento e como navio de treino estacionário. Em 1911 foi abatido ao efetivo e foi usado como depósito de carvão.

Mas no Verão de 1912, com a idade de 43 anos, foi vendido comercialmente (?) e recuperado para o serviço mercante. Em Dezembro de 1915 largou de Lisboa com destino a Boston onde carregou carga geral, tendo deixado esse porto com destino a Lisboa em 17 de Março de 1916. A 1ª Grande Guerra estava no seu auge tal como o mau tempo no Atlântico Norte. Nem o navio nem nenhum dos seus tripulantes voltaram a dar notícias.

Como nenhum U-Boat reclamou o afundamento do navio, só se pode presumir que o “Pedro d’Alenquer” se afundou e perdeu-se com todos os seus tripulantes.

 

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O “Thomas Stephens” enquanto novo

 

 

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Desenho de John Richardson

O“Pero d’Alenquer”

Mas há mais!

Também o "Argonaut" e o "Otago" foram comprados pelos armadores "J. & A. Ferreira".

O "Argonaut" foi construído nos estaleiros de "Barclay, Curle & Co. Ltd." em 1876 e era um clipper de casco de ferro com 72,5m de comprimento e 11,8m de boca, para o armador "A. & J. Carmichael" de Greenock na Escócia para quem navegou até 1898 tendo nesse ano sido vendido ao armador português "J. & A.  Ferreira" que o rebatizou com o nome de "Elvira", passando a chamar-se "Argo", a partir de 1913. Segundo a documentação, foi afundado no Atlântico nas coordenadas 47º 46' N 10º 45' W pelo submarino alemão SM U-34 em 23 de Março de 1917.

 

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O "Argonaut" - "Elvira" - "Argo"

 

O "Otago", também um clipper "composite" de 1050 toneladas foi construído em 1869 no estaleiro de "Duncan & Co." em Glasgow para "P. Henderson & Co." também de Glasgow. Em 1881 foi vendido também a "J. & A. Ferreira" de Portugal tendo sido registado com o nome "Emília". Como o "Argo", também foi afundado no Atlântido pelo submarino alemão SM UC-20 em 1916, ao largo das Canárias.

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 O "Otago" - "Emília"

 

Nota: Existiu um outro navio na época com o mesmo nome de "Otago" que foi comandado durante um ano e pouco pelo escritor Joseph Conrad - ex-oficial da marinha mercante e o autor do célebre livro "Coração das Trevas" que inspirou o filme  de 1970 "Apocalypse Now" de Francis Ford Coppolla. A armação deste "Otago" era de barca.

 

 

UM APELO - Tenho procurado saber onde encontrar informações sobre o armador "J. & A. Ferreira", mas não tenho encontrado nada de substâncial. Se por acaso alguém ler este post e, também por acaso, tenha alguma informação sobre este armador ou sobre um arquivo onde esteja o espólio da empresa, fico desde já agradecido se tiver a amabilidade de me informar. O meu obrigado desde já.

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Continuando, depois deste parentisis sobre os clippers portugueses, na verdade estava-se numa era em que muitos capitães haviam optado pelos navios de vapor mais confortáveis e os bons marinheiros de 1ª (AB) na vela, eram cada vez mais difíceis de encontrar. Mas, como veio a acontecer mais tarde, Richard Woodget da pequena aldeia de Norfolk, estava destinado a cumprir esse objetivo.

Uma coisa que o proprietário de "Cutty Sark" e seu novo capitão tinham em comum, era que ambos eram homens da vela comprometidos e ambos se opunham ao vapor, fato confirmado por Willis não ter nenhum navio a vapor na sua frota e por Woodget, que poderia ter tido comandos de navios a vapor, ter escolhido, em vez disso, os navios de vela. Portanto, em 30 de Março de 1885, Richard Woodget contratou com o "Cutty Sark" como seu capitão. A ironia de tudo isto no entanto, é que ele foi o último capitão do navio, sob a “Red Insign”. Se ele tivesse recebido o comando do "Cutty Sark" muitos anos antes, quando os clippers do chá corriam para casa, vindos da China com a primeira safra, então a história marítima da "Rota do Chá" podia ter sido muito diferente.

O capitão Moore que, de fato, tinha herdado um navio moribundo e arruinado da mão do capitão Bruce, fez tudo – mesmo que só tivesse feito três viagens – o que um bom capitão devia fazer para trazê-la de volta a um estado de respeitabilidade e navegabilidade. Quando Moore se transferiu para o "The Tweed", deixou o "Cutty Sark" em condições impecáveis, mas levou consigo os seus aprendizes confiáveis.

Ao mesmo tempo, os aprendizes do “The Tweed” foram para "Cutty Sark". Junto com os aprendizes também foi o cozinheiro Tony Robson, um homem de descendência oriental que, junto com o capitão Woodget, passou os seguintes dez anos no "Cutty Sark".

 

 

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Tripulação dos veleiros com a roupa que na maioria dos dias de viagem era usada no convés: suestes, fatos de oleado e botas de mar. Evitava ficarem encharcados mas também podia contribuir para que desaparecessem no mar

A tripulação para a 16ª viagem era constituída pelo capitão Woodget, 1 imediato, 1 segundo oficial, 1 terceiro oficial, 6 aprendizes, 1 contramestre, 1 mestre veleiro, 1 mestre carpinteiro, 1 despenseiro, 1 cozinheiro, 10 marinheiros de 1ª (AB) e 1 marinheiro ordinário (OS), num total de 25 sem contar com o capitão.

Deixando Londres em 1 de Abril de 1855, para o capitão Woodget foi como se tivesse estado nos últimos 25 anos a dirigir cavalos de tiro e agora, por artes mágicas, passasse a dirigir um cavalo de corrida puro-sangue. De fato, um navio da mais alta qualidade! O navio deve ter-se sentido como um ser vivo quando ele colocou o “ Cutty Sark” num andamento regular rumo a Sidney e, apesar dos ventos fracos sentidos por muito tempo, chegou ao seu destino em 20 de Junho de 1855 (meio do inverno) após 77 dias, superando todos os seus concorrentes na corrida para a Austrália. (1)

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(1) Na realidade, esta “corrida da lã” de Londres/Austrália/Londres não foi a mesma coisa do que a “corrida do chá” da China para Londres. Na segunda existiam, além das apostas efetuadas sobre quem chegava primeiro a Londres com as caixas de chá cheias de folhas da última colheita, prémios pecuniários estabelecidos para o barco vencedor.

No caso da “corrida da lã” o que interessava não era chegar primeiro mas sim demorar menos tempo nas várias etapas do percurso (hoje chamar-lhes-iam “pernas” do percurso) ou seja Londres – Austrália, Austrália – Cabo Horn, Cabo Horn – Equador, Equador – Londres e na totalidade do percurso. E estas vitórias tinham como compensação a satisfação pessoal do armador, do capitão e dos tripulantes por serem os vitoriosos da altura. Procurei por compensações pecuniárias, não encontrei nenhuma referência a elas mas estou em crer que existiam. E apostas “por fora” deviam de ser bastante concorridas a ajuizar pela tendência para apostar em tudo o que mexa (ou que esteja parado) dos ingleses de hoje.

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Mapa da Austrália.png

Mapa da costa Sudeste e Este da Austrália e a Nova Zelândia. Destaca-se na costa da Austrália do Sul para o Norte o estreito de Bass com o “South East Point-Promontório Wilson” no estado de Victória, “Cape Howe”, “Sidney” e “Newcastle” na Nova Gales do Sul e “Brisbane” já no estado de Queensland.

Na Nova Zelândia a passagem do Norte, a norte de “Three Kings Island”, que por vezes era usada pelos navios saídos de Brisbane com destino ao cabo Horn, o Estreito de Cook entre a Ilha do Norte e a Ilha do Sul, que liga o Mar da Tâsmania ao Pacífico e que possibilitava, para os navios vindos de Sidney, Newcastle ou Brisbane tendo como destino o Atlântico, uma entrada rápida na zona dos ventos entre os 40o e os 50o Sul e o contorno do “West Cape” e passagem para o Pacífico pelo Estreito de Foveaux” entre a Ilha do Sul e a ilha Stewart, para quem arriscava os ventos ululantes e o gelo para chegar mais depressa ao cabo Horn.

 

À chegada a Sidney, P Conway, um AB e um OS (marinheiro comum) A Perry que estiveram trabalhar pela passagem por 1s por mês, desembarcaram. E Wicker, um AB, foi despedido (provavelmente por doença) e outros dois AB’s, CF Ersson e O Ovens, bem como o mestre veleiro do navio, desertaram. Isto deixou o capitão com dezanove tripulantes, mas ele sabia poder confiar em todos eles tanto quanto eles confiavam nele. Portanto, nenhum novo tripulante (dos dispendiosos marinheiros de Sidney) foi contratado e assim o capitão Woodget economizou o salário de quatro AB’s e de um mestre veleiro e estava bastante confiante em que poderia conseguir levar o seu navio com segurança para casa, mesmo com uma equipe tão reduzida.

Após uma espera de três meses pela partida de lã, o “Cutty Sark” deixou Sydney para Londres em 16 de Outubro de 1885 com 4.465 fardos de lã e outras mercadorias, usadas como lastro de estabilidade. O capitão Woodget deveria levar o seu navio pela volta do cabo Horn onde os ventos fortes eram geralmente mais disponíveis, uma rota diferente da que havia feito na viagem de Londres, Embora já tivesse feito a passagem do cabo Horn antes, era a primeira vez que o ia fazer no comando de um navio. Para apanhar os fortes ventos desejados, levou o navio até 58o Sul onde o avistamento de icebergs era comum.

No percurso para o cabo Horn, os ventos guinchantes fizeram os danos habituais no aparelho mais elevado do navio, mas o “Cutty Sark” singrou com elegância e arredondou o cabo Horn em 8 de Novembro após 23 dias. Daqui, levou 20 dias para alcançar o Equador. Neste percurso o "Cutty Sark" arrebatou o recorde de duração “Cabo Horn-Equador” ao clipper "Heather Bell", que era de 21 dias.

A viagem para casa desde o Equador estava a ir bem até que o Ushant (do lado da França, na entrada sul do Canal da Mancha) foi alcançado. Mas a partir daqui o vento amainou e o navio avançou fazendo apenas dois ou três nós por cinco dias consecutivos, o que veio impossibilitar o que poderia ter sido uma excelente viagem para o capitão Woodget. No entanto, na chegada a Londres em 29 de Dezembro de 1885, após uma viagem de 74 dias, o "Cutty Sark" bateu todos os outros navios de transporte de lã por mais de uma semana, e isso incluiu o seu grande rival "Thermopylae". John Willis estava tão satisfeito com o capitão Woodget e com o "Cutty Sark", que mandou fazer em silhueta, cortada de uma folha de latão, o contorno de uma "Pequena Camisola" - que  supostamente, era usada pela bruxa "Nannie Dee" - para ser colocada no topo do mastro principal como um catavento durante a permanência nos portos. No entanto, e apesar do seu excelente desempenho, o navio não pôde obter uma carga geral e teve que ficar satisfeito com uma carga de sucata para Shangai.

 

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 A silhueta da "Pequena Camisola" que foi usada como catavento no "Cutty Sark" quando da sua permanência nos portos de escala

  

Na sua 17ª viagem, o "Cutty Sark" matriculou em Londres em 15 de Fevereiro de 1886. A tripulação era composta por 25 membros. Incluídos na tripulação estavam Robert Andrewes, de 21 anos, 3º oficial, e o seu irmão Walter, aprendiz, de dezoito anos de idade. Durante a maior parte da passagem sopraram ventos médios. Tendo aportado em Anger após noventa e seis dias – de onde o capitão trouxe dois macacos – o "Cutty Sark" chegou ao seu destino, depois de uma longa e tediosa viagem de 124 dias, em Junho de 1886. A sucata de ferro foi descarregada, mas não havia nenhuma carga para transportar. Joseph Murphy, o contramestre de 54 anos morreu em Shangai em 25 de setembro de 1886. Foi substituído por John Usher um AB de Surrey. Depois de uma espera de três meses, não havendo nenhuma carga consignada, o navio navegou em lastro para  Sidney em Outubro mas, quando chegou, a 5 de Dezembro, estava atrasado para a campanha de lã desse ano e três meses adiantado para a próxima.

 

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Adernado a bombordo era a forma como os capitães dos clippers gostavam de governar estes navios. De assinalar as figuras minúsculas dos homens no convés e o seu equilíbrio precário, menos do que se encontra à direita da fotografia que aparenta estar como em casa.

 

Em 23 de março de 1877, Carl Lundberg, um AB sueco, assinou por 1 xelim por mês para a sua passagem de volta a Londres. Três dias depois, em 26 de março de 1887, o navio zarpou com 4.296 fardos de lã. O “Cutty Sark” foi apanhado em calmaria durante os primeiros quatro dias depois de deixar Sidney, mas depois de rumar a Sul, navegou através dos icebergs com ventos rijos de Oeste até arredondar o cabo Horn em 19 Abril. Esses ventos rijos continuaram até Rio da Prata, uma região onde o aprendiz Walter Andrewes foi arrastado para o mar por fortes vagas. O seu irmão mais velho, o 3º Oficial que estava a trabalhar ao seu lado, só pôde assistir horrorizado. Mas, não pela primeira ou pela última vez na história marítima, o jovem aprendiz como tantos outros homens antes e depois dele, foi trazido de volta ao convés no seguinte rolamento do navio para sotavento.

Mas mais drama iria acontecer nesta viagem de retorno a casa quando, ao largo dos Açores, o navio foi surpreendido por uma súbita mudança da Intensidade do vento. Mas felizmente, as velas que estavam nas vergas eram velas de bom tempo (menos pesadas e menos resistentes), que rapidamente se esfarraparam deixando de resistir ao vento. Se as velas fossem de mau tempo (mais pesadas e mais resistentes) certamente trariam os mastros para baixo. A viagem até Londres terminou em 6 de Junho de 1887 após a passagem de 72 dias, e não é necessário dizer que o “ Cutty Sark” havia mais uma vez ultrapassado todos os que partiram antes dele e efetuou a passagem mais rápida do ano desde a Austrália. Para o capitão Woodget, um fato irónico foi o navio ter-se atrasado 4 dias à saída de Sidney devido à ausência de vento.

 

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 A “ginga” do capitão Woodget para dar umas voltinhas no “velódromo” do convés do “Cutty Sark”. Topo da gama das BTT da altura, pelo aspeto geral devia de ser o modelo italiano “Leonardo da Vinci”. Pneus anti furo de liga leve, nada das chinesices de corrente e travões, selim e guiador ergonómicos, molas de suspensão do último grito, tração direta à roda pedaleira. Tudo coisas que o mestre carpinteiro – que também era ferreiro – podia consertar a bordo rapidamente, caso fosse necessário.

 

Um dos aprendizes nesta viagem foi Toby Mayall, de 14 anos, na sua primeira viagem ao mar. Era o filho de um fotógrafo conceituado e durante a viagem, o capitão Woodget soube da profissão do pai, tendo mais tarde contatado o fotógrafo através do seu filho. Depois desse contato, comprou todos os equipamentos fotográficos necessários para começar, a par do andar de bicicleta e de criar cães "Coolie", um novo passatempo – a fotografia. Durante o resto da sua permanência no “Cutty Sark”, o capitão Woodget tirou e revelou muitas fotografias históricas, que têm sido impressas em várias publicações.

 

Novo contrato foi efetuado em Londres em 15 de agosto de 1887 para a viagem 18, tendo o “Cutty Sark” largado dois dias depois em direção a Newcastle NSW. Cruzando o Equador 32 dias depois no dia 19 de outubro, tendo passado as ilhas "Tristan e Gough" para estabelecer um curso para o leste. No entanto, três dias depois, o navio foi parcialmente desarvorado. O incidente aconteceu logo após a meia-noite a 39o Sul 45o Este a 22 de Outubro de 1887, quando o “quarto da modorra” entrou de vigia. Havia um novo homem no leme e um novo oficial de quarto no convés, e a roda do leme estava pesada, com as vergas nos brandais. Mas o vento de repente mudou de direção para virar de estibordo para bombordo. Em primeiro lugar, o imediato Jerry Dimint e o homem na roda do leme reagiram tardiamente. O resultado final foi que o mastaréu do joanete do traquete cedeu para estibordo, levando consigo a vela do joanete e algum do aparelho a ele associado. O capitão Woodget pôs o navio de capa para efetuar reparos.

 

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 Localização das ilhas Tristão da Cunha e Gough no Atlântico Sul

 

Ao nascer do dia, o vento forte felizmente amainou tendo passado a uma suave brisa, um intervalo de tempo que permitiu que o capitão Woodget estudasse todas as peças e equipamento que haviam caído na escuridão, muito do qual estava pendurado na amurada e arrastava no mar. O aparelho de recurso levou dois dias a ser montado mas, enquanto as reparações estavam a ser feitas, o navio ainda fazia um bom caminho. Mesmo a navegar com o aparelho de recurso, o ”Cutty Sark” ainda conseguiu atingir mais de 200 milhas por dia, e no dia 11 de Novembro fez 330 milhas em 23 horas e meia. Aportou em Newcastle NSW no dia 17 de Novembro de 1887 e apesar dos seus infortúnios, o “Cutty Sark” tinha levado 89 dias nesta viagem.

Depois que a carga geral foi descarregada e depois de 4.515 fardos de lã terem sido carregados para Londres, o “Cutty Sark” passou o Natal em Newcastle NSW, antes de zarpar em 28 de Dezembro de 1887. Mais uma vez, dirigiu-se para o Sul onde sopram os fortes ventos dominantes de Oeste. Mas tão longe para o Sul Woodget levou o “ Cutty Sark” que, durante duas semanas ficou acima da marca de 60o Sul (os Guinchantes Sessenta) e em seguida, para obter o vento necessário, levou o navio para uma latitude superior a 64o 50’ Sul em 16 de janeiro de 1888. Escusado será dizer que, mesmo sendo Verão no hemisfério Sul, havia muitos icebergs no mar e também muito gelo no equipamento. O cabo Horn foi dobrado em 22 de Janeiro, 25 dias depois de deixar Newcastle NSW, e o Equador foi cruzado em 15 de fevereiro. O “Cutty Sark” teve uma boa viagem até casa e, depois de 71 dias, chegou a Londres em 10 de Março de 1888. Mais uma vez, o “Cutty Sark” voltou para casa em primeiro lugar e assim derrotou toda a frota da lã entre 12 e 59 dias.

 

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“The West India Docks”, em Londres, c.1894.

Fotografia por Peter Facey

 

(continua)

Um abraço e…

Bons Ventos.

 

 

 

29.07.18

28 - Modelismo Naval 7.4 - "Cutty Sark" 2.3


marearte

 

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(continuação)

 

Caros amigos

 

No último post, deixámos o “Cutty Sark” ancorado no porto de Singapura para onde, após o suicídio do capitão Wallace em plena viagem, foi levado pelo aprendiz sénior que assumiu o comando do navio pois o 2º Oficial declarou-se incompetente para o fazer. De Singapura foi telegrafada para John Willis a descrição dos tristes acontecimentos. E a vida continuou.

 

Viagem 12 – Capitão William Bruce

Na sequência dos últimos acontecimentos no “Cutty Sark” durante a 12ª viagem – a morte do marinheiro WH Francis, a fuga do imediato Smith e o suicídio do capitão Wallace – três acontecimentos azarentos para homens do mar que são significativamente supersticiosos, o ânimo de John Willis não quebrou. Sabendo que outro navio seu se encontrava em Hong Kong, o “Hallowe’en” (nome que vem mesmo a calhar para este ambiente supersticioso) comandado pelo capitão Fowler, telegrafou no sentido de saber se havia alguém disponível para assumir o comando do “Cutty Sark”.

William Bruce, de 42 anos de idade, nascido em Aberdeen era na altura o imediato do “Hallowe’en”. Mas não era nada popular entre a tripulação do navio e muito menos junto do seu comandante. Está mais que visto que o capitão Fowler recebeu este pedido com toda a satisfação e “voluntariou” de imediato o imediato William Bruce para o comando do “Curtty Sark”.

 

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Aberdeen, na Escócia, onde nasceu o capitão Bruce, foi uma cidade onde a construção naval de grandes veleiros (principalmente “composite ships – o “Thermopylae” foi lá construído em 1868 nos estaleiros “Walter Hood & Co”) floresceu em todo o séc. XIX. Este mapa, de 1865-7, mostra a ”Upper Dock” (The Inches) onde todo o lado sul - no que agora é “Jamieson's Quay” - estava ocupado por estaleiros navais; O mapa sugere a existência de 5 carreiras nesta zona. Existiam mais estaleiros nas margens dos rios Dee e Don, que banham a cidade.

 

Na continuação da décima segunda viagem William Bruce assinou em Singapura o contrato para o comando do “Cutty Sark” em 24 de Setembro de 1880 não tendo sido selecionado por uma questão de mérito mas sim porque simplesmente estava mais à mão e porque o capitão Folder estava ansioso em arranjar uma forma de se ver livre dele. À data em que ele assinou, parte da tripulação que tinha embarcado em Penarth no início da viagem, já tinha abandonado o navio tendo sido necessário para a sua substituição, matricular mais tripulantes. Assim foram matriculados o imediato C Smith (o nome do anterior era SW Smith), o 2º oficial ST Reynolds e mais 10 marinheiros de 1ª (AB). Entretanto, a carga de carvão destinada a Yokahama já tinha sido consignada a outro destino e descarregada no porto de Singapura.

Em lastro, o navio saiu com rumo a Calcutá à procura da consignação de uma carga. Logo de início, Bruce convocava orações coletivas diárias a que obrigava toda a tripulação a assistir no convés, o que irritava a maioria dos tripulantes. Além disto era um alcoólico da pesada, hipócrita e bem cedo provou que nenhumas garantias dava de se aplicar no comando do navio. Ou melhor, embora tivesse suficientes conhecimentos de navegação, poucos deles iria aplicar por falta de tempo, já que passava metade do tempo a embebedar-se e a outra metade a “tentar” curtir a bebedeira. Na realidade isto ficou bem patente para a tripulação que o considerava um covarde e inábil para comandar o navio pois, durante a viagem para Calcutá, provou que não sabia aproveitar os ventos, manobrando as velas de uma forma pouco eficaz. De qualquer modo, arribaram a Calcutá em Novembro de 1880. Como se costuma dizer: ”Ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo”!

 

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 Esquema da forma e das regras para carregar corretamente o chá num “composite clipper” como o “Cutty Sark”. Uma espécie de “vade mecum” para o chefe da estiva não se esquecer de nada, tal a importância desta tarefa no desempenho do navio na viagem de volta

Mas os agentes em Calcutá também não tinham cargas para o “Cutty Sark” e William Bruce teve de aguardar sendo assim obrigado a dispensar os novos marinheiros. Só ao fim de 4 meses os agentes conseguiram consignar carga para o “Cutty Sark” que era constituída por juta e chá com destino a Melbourne, Austrália. Como curiosidade, esta partida de chá foi a primeira que a Austrália importou.

Houve que matricular nova tripulação mas o navio estava curto de orçamento e o recrutamento incidiu principalmente sobre marinheiros que contratavam a 1s pela passagem para Melbourne. Entre eles, alguns já tinham vindo no “Cutty Sark” nesta viagem desde a Inglaterra como era o caso do mestre veleiro, um marinheiro russo de 56 anos Alexander Jansen, que era referido como um “Vanderdecken” o tipo mais impopular de “Jonah” (azarento) que profetizava constantemente desgraças para o navio. O “Cutty Sark” reiniciou a 12ª viagem com rumo a Melbourne em 5 de Março de 1881.

Também foi matriculado um novo imediato, com 25 anos de idade, de Londres e com o nome de William H Rutland que rapidamente se tornou o camarada de bebida do hipócrita comandante. Depois de uma tumultuosa viagem de “orgias alcoólicas” e “autos de fé” o capitão lá conseguiu levar o “Cutty Sark” ao seu destino, Melbourne, em 14 de Maio de 1881.

Depois da chegada a bom porto o marinheiro de 1ª William MacGregor caiu ao mar e afogou-se. E houve um corrupio de desistências. Os sete marinheiros, entre eles o 2º oficial A Selby, que embarcaram pela viagem, desistiram. O marinheiro aprendiz Stoughton também desistiu por incompatibilidade com o imediato.

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 A escotilha de acesso que levava ao alojamento dos marinheiros no castelo da proa bem como correntes das âncoras e o guincho das mesmas.

O capitão Bruce teve então de efetuar novo recrutamento para substituir os marinheiros que largaram o navio. Mas havia uma diferença em relação ao recrutamento feito em Singapura - os candidatos exigiam ser pagos pela tabela australiana, £4 contra as usuais £1 ou £2 de Londres.

Foram matriculados o 2º oficial H Carne bem como 3 Marinheiros de 1ª (AB) e 2 marinheiros ordinários (OS). Além disto, foi matriculado um despenseiro, JA Cave, de Sunderland. Os 3 marinheiros de 1º (AB) forma matriculados por £4 mensais cada.

Enquanto estiveram atracados no porto de Melbourne o capitão Bruce e o seu compincha imediato embebedavam-se de caixão à cova e o capitão Bruce “atuava” pregando no convés do “Cutty Sark” exibindo-se para todos os passantes e proclamando a sua grande “piedade”.

 

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 Navios à vela em “Sandridge Pier” no porto de Melbourne c. 1880. Este cais tinha a particularidade de ser atravessado a todo o comprimento por uma linha de caminho-de-ferro o que facilitava quer a descarga quer a carga de mercadorias.

O navio descarregou a juta e o chá e rumou para Sidney. Mas o capitão Bruce estava preocupado com a possibilidade de saída de mais membros da tripulação em Sidney. E assim aconteceu. Vários membros da tripulação saíram em Sidney – incluindo o cozinheiro – e o capitão Bruce teve de matricular mais homens, novamente aos preços da Austrália. Por exemplo, o novo cozinheiro ficou a ganhar £4-10-00. No total da tripulação do “Cutty Sark” naquela altura, 9 marinheiros de 1ª (AB) venciam pelo padrão australiano. £4 mensais.

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 “Circular Quay” no porto de Sidney, Nova Gales do Sul, Austrália

O capitão Bruce não era um homem feliz mas, na companhia do imediato e de uma garrafa de whisky – não “Cutty Sark” pois ainda não havia – arquitetaram um plano para pôr os marinheiros com o salário australiano de £4 a andar para fora do navio.

O “Cutty Sark” zarpou de Sidney em 2 de Julho de 1881 e depois de uma viagem razoável de 46 dias aportou a Xangai em 17 de Agosto de 1881. Depois de descarregar o carvão vindo de Sidney o imediato fez o seu melhor para conseguir correr do navio com os marinheiros com salário australiano. A estratégia foi fazê-los trabalhar de dia e de noite sem parar até que quebrassem. Quatro deles que não conseguiram aguentar por mais tempo as judiações do imediato desistiram por acordo mútuo.

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 O convés original do “Cutty Sark” era constituído por pranchas de teca com por volta de 3 a 4 polegadas de espessura e 5 a 6 polegadas de largura. Este tabuado foi colocado sobre a plataforma de ferro da estrutura e o espaçamento entre as tábuas foi preenchido com estopa. Breu em ebulição foi vertido por cima da estopa das ranhuras a fim de preencher o restante espaço e formar uma costura. Os conveses de madeira de todos os navios eram oleadas de forma regular com uma mistura igual de óleo cru e terebentina. Se o tempo o permitisse os conveses de madeira eram baldeados diariamente e esfregadas com pedras para evitar que a tripulação escorregasse. Esta fotografia não é do “Cutty Sark”.

 

Possivelmente foi isto que o imediato do “Cutty Sark” pôs a tripulação a fazer. E também lavagens do porão.

Mas nesta altura o navio foi assaltado por uma epidemia de cólera. Depois de 1 mês, três marinheiros de 1ª (AB) morreram de cólera no Hospital de Isolamento de Xangai. Dois eram do grupo do salário de £4. Os 6 marinheiros de 1ª (AB) e o outro marinheiro também falecido foram facilmente substituídos. Nesta altura a tripulação do “Cutty Sark” só tinha 3 marinheiros com o salário de £4. Foram matriculados em Shangai 4 novos marinheiros de 1ª (AB) com salários de £2-15-00 bem como um marinheiro aprendiz. O marinheiro aprendiz sénior foi promovido a 3º oficial.

 

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Xangai antiga c. 1880

 

Devido à cólera e depois de ter perdido uma viagem através do Pacífico para carregar madeira em Portland, o navio navegou para Cebu nas Filipinas para carregar juta que tinha sido enviada de Londres com destino a Sidney. Contudo, uma vez em Cebu, enfileirou na fila de espera para o carregamento e teve de esperar 6 semanas até o conseguir. Mas, mal o carregamento foi feito recebeu um aviso de que a carga tinha sido revendida a outro comprador (o que era comum, até com os navios já em trânsito, só tomando conhecimento de tal fato no porto de chegada) tendo recebido ordens para rumar a New York.

O capitão Bruce era conhecido por mudar de humor rapidamente. Num minuto podia ser cordial, amigável e simpático para a sua tripulação. Mas, no minuto seguinte podia torna-se no completamente oposto. Ainda antes de zarpar para New York convidou os tripulantes a descontraírem-se junto do mastro grande tendo-lhes fornecido algumas garrafas de aguardente filipina. Então, quando eles começaram, depois de se embebedarem, a lutar entre eles, prendeu Blood em terra por insubordinação, bebedeira e comportamento agressivo... Blood, que era de Hamburg foi o sétimo dos marinheiros de Sidney a sair, e era bastante evidente para a tripulação que tudo tinha sido manipulado pelo capitão. Blood foi condenado a uma sentença de prisão de 60 dias e o seu lugar foi ocupado por um dos nativos de Cebu, Feliciano Guilleras, por £ 1 por mês.

O golpe do capitão significou uma poupança de mais 3 libras esterlinas por mês em apenas um dos marinheiros de Sidney. Ao ver-se livre de sete dos nove marinheiros, substituindo-os por outros com uma remuneração mais baixa, o capitão Bruce, economizou a quantia de £ 11-15-00 no salário mensal. O conseguir ver-se livre de quatro dos marinheiros altamente remunerados de Sydney, e de mais três que morreram, foi habilidosamente orquestrado pelo capitão Bruce e pelo imediato. Mas havia mais dois que tinham de sair.

Na viagem em direção a New York, o “Cutty Sark” deixou Cebu em 6 de Dezembro de 1881, com a tripulação em tumulto e expectante sobre o que se avizinhava. O forrobodó começou mal o navio desatracou pois o capitão e o imediato começaram ou melhor, continuaram a embebedar-se. A esta empreitada também se juntou o despenseiro que, mesmo atuando como criado, juntou-se à sessão de copos. A bebida, de elevada graduação, atuou de imediato levando os foliões a ficarem ébrios, sem senso e a agir de forma muito perigosa.

O 2º oficial Henry Carne de Liverpool, com 21 anos, viu os perigos que corriam se nada fosse feito para alterar aquela situação. Assim, sub-repticiamente, serviu ao capitão tanta bebida que o tornou completamente incapaz. Então, enquanto o capitão se encontrava em tal estado que já estava perto do coma alcoólico, o 2º oficial atirou a caixa de bebidas pela borda fora.

 

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 A ilha de Cebu no arquipélago das Filipinas

 

Com a conivência dos marinheiros, o 2º e o 3º oficiais levaram o navio para 20 milhas a leste e ancoraram junto à ilha do Cabo Saint Nicholas. E ali ficaram dois dias até que o capitão apareceu a cambalear no convés! Apesar de ainda estar bêbado, o capitão ficou estupefato ao encontrar o navio ancorado. Ao questionar os oficiais e aprendizes sobre a forma como ancoraram ali, estes homens não lhe deram nenhuma explicação. O capitão Bruce nada disse sobre o desaparecimento da caixa de bebida. Devia de estar em tal estado, que os seus prováveis pensamentos ​​eram que ele, o imediato e o despenseiro tinham bebido tudo. Enquanto isto, e devido ao efeito do álcool, o imediato e o despenseiro ainda estavam a curtir a bebedeira nas suas cabinas. Mais uma vez, o navio retomou a navegação em direção a New York através do estreito de Sunda. Sem qualquer bebida a bordo!

Depois de apanharem ventos errantes e fracos, o navio “seco”, atingiu Anger Point quatro semanas depois, em 3 de janeiro de 1882. Foi lá que o capitão Bruce ancorou, mas somente para carregar mais bebidas alcoólicas. O suficiente para durar para ele e para os seus colegas de bebedeira, o imediato e o despenseiro, até que o navio chegasse a New York. Nada foi feito para reabastecer o navio com alimentos e com água e assim que o “Cutty Sark” levantou ferro, o forrobodó no salão recomeçou sem demora.

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Salão dos oficiais do “Cutty Sark” que foi testemunha das grandes pielas do capitão Bruce e do imediato Rutland. Atendendo a que isto se passou em 1882 e que o whisky “ Cutty Sark Blended Scotch Whisky” só apareceu em 1923, não será que a marca se “inspirou” nas monumentais cardinas destes três borrachos? 😀

Quando os capitães consideram e apoiam as tripulações de uma forma correta e constante, a disciplina a bordo é quase uma decorrência disso. A resposta às ordens de manobra é dada a tempo, com disciplina e com organização e precisão perfeitas. Mas quando os marinheiros são mal alimentados e mal tratados, eles naturalmente executam a faina de maneira mal-humorada e desanimada. Portanto, quando Bruce tentou tirar o navio do ancoradouro de Anger, a disciplina dos seus marinheiros, bem como o tempo de resposta às ordens do capitão, não foi o que deveria ter sido. O resultado foi que o navio foi apanhado por correntes, com o “Cutty Sark” a ser enviado em sentido contrário ao pretendido, correndo à popa, e quase colidiu com escolhos rochosos semisubmersos antes que as velas pudessem ter sido enfunadas.

Na sessão de bebedeira seguinte, o capitão e o imediato envolveram-se numa discussão violenta e ficaram tão embriagados que o imediato foi a cambalear (e o mar estava chão) para a sua cabina e trancou a porta, tendo por lá ficado alguns dias sem cuidar das suas tarefas. Amuou, digo eu! Os marinheiros tinham consciência de que a situação do navio com este capitão e este imediato era tudo menos boa, e por medo da sua própria segurança, imploraram ao 2º oficial que assumisse o comando. Mas o jovem de 21 anos sabia que se fizesse isso, mesmo tendo o apoio de toda a tripulação para as suas ações, teria à perna a Câmara de Comércio e a lei da Grã-Bretanha com uma opinião bem diferente sobre o assunto. Numa palavra, isso seria considerado motim!

Em 4 de fevereiro de 1882, um mês depois de deixar Anger, dois dos tripulantes, o 3º oficial Charles Sankey e o marinheiro de 1ª Thomas Dunton (um dos marinheiros embarcados em Sidney com o pagamento de £4) estavam a escalar os enfrechates de estibordo do mastro do traquete para trabalharem no topo do mesmo. Naquele momento, os estingues da vela maior estavam a ser manobrados com o guincho para permitir que a vela dianteira fosse colhida para os terços. Mas quando estes dois homens estavam a meio caminho, nos enfrechates, o imediato que estava no convés, desembraiou de repente o guincho que estava ligado ao colchete do punho da vela, e a engrenagem do moitão da escota e a vela já colhida, despencaram por aí abaixo sem aviso prévio.

Toda aquela engrenagem pesada caiu a grande velocidade derrubando o marinheiro Dunton para fora dos enfrechates tendo caído ao mar, enquanto o 3º oficial, embora atingido, conseguiu agarrar-se aos óvens. Ouviu-se "homem ao mar" mas, apesar de boias salva-vidas terem sido atiradas à água pelo timoneiro e de um bote ter sido arriado, o marinheiro de Hampshire, Thomas Dunton, nunca mais foi visto. Era o oitavo dos marinheiros de Sidney que estava marcado pelo capitão e pelo imediato para sair do barco, aparentemente de qualquer forma! Os marinheiros e os aprendizes ficaram indignados com a ação do imediato enquanto o mestre veleiro “Vanderdecken” afirmava que as suas profecias de desgraça tinham sido justificadas.

 

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Enxárcias de estibordo, neste caso do mastro da Mezena do “Cutty Sark”. Os enfrechates são os cabos de menor bitola que se encontram a ligar horizontalmente os brandais.

Logo depois, as provisões começaram a faltar. Os primeiros produtos que falharam foram o sumo de limão e o açúcar, itens que podiam ter sido comprados em Port Cebu onde eram abundantes e baratos. Quando o "Cutty Sark" estava à vista da “Table Mountain”, a meio caminho de seu destino de New York, o navio poderia facilmente ter aportado na Cidade do Cabo para reaprovisionar, mas o capitão Bruce tinha outras ideias.

 

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Existiam dois galinheiros no navio, essencialmente para produção de ovos que, em viagens normais raramente, mas muito raramente, chegavam à boca dos marinheiros. Os ovos destinavam-se a ser consumidos no “salão” pelo corpo de oficiais. Desconheço se havia alguma galinha a bordo nesta altura da viagem.

 

Depois, a farinha começou a ser insuficiente quando o navio passou pela ilha de Santa Helena, mas novamente o capitão não parou para reabastecer. Ele tinha o suficiente para si mesmo e isso era tudo o que importava.

 

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 As malhas que os Impérios teceram

As ilhas de Ascensão e de Santa Helena foram descobertas (aqui a palavra mais apropriada deveria ser “tropeçadas” pois foi mero acaso a descoberta desta ilhas) em 1501 pelo navegador galego João da Nova, que na ocasião estava ao serviço de Portugal. João da Nova dirigia-se à Índia.

O primeiro habitante permanente da ilha foi o soldado Fernão Lopes (? – 1545). Foi um soldado português na Índia que foi condenado ao degredo – depois de torturado e desfigurado – por ter ficado ao lado dos rebeldes de Rasul Khan numa rebelião em Goa contra o império português. Permaneceu isolado em Santa Helena de 1515 a 1545. Napoleão Bonaparte também foi exilado pelos ingleses para esta ilha em 1815 e lá permaneceu até à morte, por possível envenenamento, em 1821. Atualmente é Território Britânico Ultramarino

 

Uma pasta de aveia aquosa rapidamente tornou-se o único alimento a poder-se comer, e pouco tempo depois não havia nada e alguns marinheiros começaram a sentir os efeitos do escorbuto.

Mas felizmente para o capitão Bruce, o navio navegava na altura dentro das movimentadas rotas de transporte marítimo no Atlântico. Os navios que passavam foram alertados sobre a situação do “Curty Sark” e os sinais de bandeiras que foram exibidos na sua carangueja proclamaram o fato de que haviam esgotado as provisões. Alguns navios pararam para dar o pouco que podiam, mas muitos deles nem paravam. Mas a corveta de hélice ”HMS Thalia” parou para ajudar. Depois de ser conduzido num bote ao navio de guerra pelos seus aprendizes, o capitão Bruce foi a bordo da corveta e encontrou-se com o comandante.

 

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A corveta “HMS Thalia” aqui no rio Tamisa, foi o último navio a ser construído no “Woolwich Royal Dockyard” e foi lançado em 14 de julho de 1869

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Existe um modelo à escala do “Woolwich Royal Dockyard” no Museu Marítimo de Londres que fica muito perto da doca seca onde atualmente está o “Cutty Sark”. Este estaleiro foi fundado por Henrique VIII em 1512 e aí foram construídos uma grande parte dos navios de guerra ingleses. Foi encerrado em 1869 e hoje ainda existem alguns vestígios visíveis embora a maioria dos terrenos onde se situava tenham sido ocupados pela construção de habitação e escritórios.

 

Quanto á história que Bruce contou ao Comandante AK Bickford, no que diz respeito ao fato de ter ficado sem provisões, só pode ser adivinhada ou imaginada (em anos posteriores, o Comandante Bickford tornou-se num almirante bastante conhecido). No entanto deve ter sido uma boa história, porque uma carga inteira de provisões, incluindo pão fresco - ainda quente do forno da corveta - foi carregada no bote de Bruce e levada de volta para o clipper. Se a verdadeira história sobre as provisões tivesse sido contada, o capitão do navio de guerra provavelmente teria posto Bruce a ferros no porão da corveta enquanto aguardasse julgamento.

Mas as provações e atribulações da tripulação do “Cutty Sark” estavam longe de terminar; e por causa da sua posição contra os maus tratos desnecessários e a fome, tanto o 2º como o 3º oficiais passaram as passas do Algarve desde que deixaram Cebu.

No entanto, o capitão Bruce que, sem estar com os copos, era realmente um bom navegador, de um momento para o outro começou a ter um outro comportamento quando o navio se aproximou da costa americana. Pela primeira vez, deu lições de marinharia e de navegação aos aprendizes e até tentou adotar uma posição de aproximação com os timoneiros escalados. O “Cutty Sark” chegou a New York em 10 de abril de 1882, 125 dias depois de deixar Cebu.

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Trafego marítimo no porto de New York nos anos 80 do séc. XIX

Assim que o navio atracou tanto o 2º como o 3º oficiais, pediram dispensa. Mas Bruce recusou com a alegação de que a viagem ainda não tinha terminado. No entanto, o 2º oficial Carne, que tinha mantido um diário pessoal dos eventos do navio, visitou o cônsul britânico. O 2º oficial demostrou-lhe ao que a tripulação havia sido submetida desde que Bruce fora nomeado como comandante do navio. Escusado será dizer que o cônsul horrorizado enviou um telegrama a John Willis, em Londres, para o informar sobre as atrocidades que ocorreram num dos seus navios. Além disso, o telegrama informava também que a comida fora implorada a um dos navios de Sua Majestade, isto depois de as oportunidades de reaprovisionamento em Anger, Cidade do Cabo e Santa Helena terem sido ignoradas. Como todos os proprietários de navios, John Willis sempre foi um homem bastante agarrado aos cents, mas também era um ex marinheiro, e sempre se preocupou em que os seus navios estivessem bem apetrechados e que as suas tripulações recebessem comida mais do que a suficiente para sustentar a sua saúde e o seu bem-estar.

Deve ter sentido vergonha pelo fato de que um de seus navios ter implorado comida no mar e horrorizado com o que os marinheiros tiveram que suportar. Num inquérito marítimo subsequente realizado em New York, os certificados do capitão Bruce e do imediato Rutland foram suspensos.

Naquela infame duodécima viagem do “Cutty Sark”, que durou 12 dias menos que dois anos, um total de 79 homens foram matriculados no navio durante toda a viagem, enquanto apenas 23 a começaram e 21 a terminaram. Durante essa viagem de 709 dias, houve sete mortes e sete deserções.

Na altura ainda não tinham inventado o slogan “Se conduzir, não beba! Ou então fica sem a carta de marinheiro”.

A décima segunda viagem, depois de muitos azares e peripécias, terminou em New York a 10 de Abril de 1882.

 

 

Viagens 13 a 15 – Capitão F. Moore

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Após a suspensão do capitão Bruce e do seu imediato o capitão F. Moore foi contratado para o comando do “Cutty Sark” em 1 de Maio de 1882. Não se conhece o nome próprio do capitão F. e quanto ao local de nascimento sabe-se que foi na Inglaterra em 1839. Os registos não contêm mais pormenores.

Julga-se que nasceu na área de Tyneside, no Nordeste da Inglaterra e, como tantos outros marinheiros da época, iniciou a sua carreira aos 12 anos como aprendiz nos brigues de carvão no Nordeste tendo continuado a servir em barcos a vapor e veleiros chegando a imediato do “SS Leda” antes de, eventualmente, ter-se tornado o seu capitão. Neste navio, navegou entre South Shiels, o Báltico e o Mediterrâneo.

Em 1873 comandou a barca “Teviot” de 433 toneladas em viagens para as Maurícias e depois tomou o comando do “Dilharee”, um antigo clipper da rota da Índia que já tinha sido transformado em barca para transporte de imigrantes para a Nova Zelândia e mais tarde convertido para carga geral.

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“Peacock Spit” na foz do rio Columbia nos U.S.A.

 

Enquanto capitão deste navio, numa viagem de transporte de cereais a granel saída de Portland (U.S.A.) com destino a Queenstown (na ilha do Sul, Nova Zelândia), o mecanismo do leme do navio ficou danificado quando era rebocado no rio Columbia. Debaixo de tempestade, o barco encalhou em Peacock Spit na foz do rio Columbia ficando posteriormente partido em dois. No inquérito efetuado concluiu-se que houve falha mecânica do mecanismo de direção do navio aliando-se a isso o mau tempo que se fazia sentir, não podendo ser responsabilizados nem os capitães dos reboques nem o capitão F. Moore.

Depois deste acidente o capitão F. Moore juntou-se à frota de John Willis no comando do velho “Coldstream” construído em 1845 e, depois de pouco tempo, foi substituído no comando do navio pelo capitão Richard Woodget sendo-lhe atribuído, em 1881, o comando do “Blackadder” clipper já nosso conhecido.

Na terceira viagem do capitão F. Moore neste novo comando, o “Blackadder” escalou New York e quis o destino que tenha amarrado ao cais ao lado do “Cutty Sark” chegado da sua última viagem e comandado ainda pelo capitão Bruce. O “Cutty Sark” estava em completa agitação e confusão devido aos comportamentos do capitão William Bruce e do seu imediato. Como o navio tinha estado ausente da Inglaterra quase dois anos, a tripulação que tinha sobrado – 21 – foi dispensada na totalidade.

Enquanto durou o inquérito sobre os acontecimentos que já foram atrás descritos, a carga de juta que o “Cutty Sark” trazia foi descarregada e foram carregados 26.816 caixas, cada caixa contendo dez galões de petróleo em duas latas. Como a “Cutty Sark” não tinha capitão nem tripulação e estava carregada pronta a zarpar, John Willis decidiu transferir toda a tripulação do “Blackadder”, capitão incluído, para o “CuttySark”.

Assim, neste primeiro comando do capitão F. Moore no “Cutty Sark” embarcaram 3 oficiais – um imediato, um 2º e um 3º oficiais – 6 aprendizes, 1 mestre carpinteiro, 1 cozinheiro, 1 despenseiro e 10 marinheiros de 1ª (AB).

Dos originais 31 tripulantes da 1ª viagem restam 23 para a décima terceira viagem.

Em 4 de Maio de 1882 o “Cutty Sark” largou de New York, atravessou o Equador em 1 de Junho e aportou a Anger (estreito de Sunda) em 2 de Agosto de 1882 onde fez aguada tendo velejado para Semarang (ilha de Java) onde chegou a 20 de Agosto e descarregou as caixas de petróleo.

De seguida largou para Madras (hoje Chenai, no sul da Índia) em lastro com metade da tripulação atacada pela febre. Todos recuperaram com exceção de William Abraham de Lancashire que faleceu com 31 anos de idade, no mar, em 5 de Novembro de 1882, dois dias antes da chegada a Madras.

Dois dias antes do Natal o navio rumou para Bimlipitam (também na Índia) onde tomou uma carga de chifres, couros e juta navegando de seguida para Cocanda (também na Índia) para acabar de encher o porão do navio com o mesmo tipo de mercadorias, saindo para a Inglaterra em 31 de Janeiro de 1883. Depois de uma viagem de 122 dias, o “Cutty Sark” voltou a bom porto com um total de 397 dias.

O capitão Moore assinou novo contrato com o armador em 13 de Julho de 1883 tendo o “Cutty Sark” levantado ferro de Gravesend no Tamisa a 15 de Julho de 1883 para a sua décima quarta viagem, com rumo a Newcastle NSW, Austrália, onde chegou a 10 de Outubro de 1883, 79 dias depois da partida. Normalmente as viagens a Newcastle NSW eram para carregar carvão com destino, também normalmente, a Xangai. Desta vez não foi assim pois a carga que esperava para ser transportada no porão do “Cutty Sark” eram fardos de lã com destino à Inglaterra. Foi o primeiro frete de fardos de lã que o “Cutty Sark” efetuou.

 

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O carregamento do carvão era feito a granel usando sistemas como este. Aqui é no porto de Greymouth-Westland na Nova Zelândia em 1873 

 

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O “Cutty Sark” a carregar fardos de lã no “Circular Quay” em Sidney

 

A viagem de regresso a casa foi feito pelo Pacífico Sul entrando no Atlântico pelo Cabo Horn e, até fundear em Deal cidade já nossa conhecida, demorou 82 dias. Foi-lhe creditada esta duração como sendo a mais rápida viagem de transporte de lã daquela época tendo o “Cutty Sark” batido todos os outros navios por 1 mês ou mais.

Na maioria dos casos, os veleiros que saíam para os Antípodas do Reino Unido geralmente rumavam para o Este, fazendo rumo a Sul pelo Atlântico e depois rumo a Este pelo Índico/Antártico. Estes rumos foram escolhidos neste tipo de viagens tendo em conta a existência de ventos prevalecentes do Oeste no Atlântico e no Índico e por vezes já em paralelos do Oceano Antártico – os chamados “Quarenta Rugidores”, “Furiosos Cinquenta” e “Guinchantes Sessenta”, conforme os paralelos onde sopram (1). Assim, descendo o Atlântico usando os ventos que os portugueses também usaram na época dos Descobrimentos e passando ao Índico pelo Cabo da Boa Esperança em latitudes mais elevadas, esses mesmos navios de vela normalmente voltavam para o Reino Unido vindos da Austrália/Nova Zelândia rumando a Oeste cruzando o Pacífico e entrando no Atlântico junto do cabo Horn, resultando assim numa viagem de volta ao mundo. No entanto, ao usar a rota pelo cabo Horn mesmo aproveitando os ventos dominantes – o que era possível se os capitães fossem conhecedores e tivessem unhas… e mais qualquer coisa, para arriscarem – as passagens de volta ao Reino Unido sempre demoravam mais porque a distância era maior. Deve ser acrescentado que o único motivo pelo qual os veleiros foram capazes de ter vantagem no transporte de lã da Austrália, em relação aos “steamers” foi porque os navios a vapor da altura ainda não tinham uma rede de estações de abastecimento de carvão estabelecida para esta rota.

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(1) Mapa meteorológico da direção e intensidade dos ventos na região do cabo Horn, do “meteoblue”, gravada a 06/03/2018 pelas 08:00 …

 

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(2) e a previsão meteorológica para o mesmo dia de terça feira 06/03/2018 até sexta feira 09/03/2018 no cabo Horn e que pode ser obtida antecipadamente para qualquer ponto do percurso.

 

(1) (2) No dia 06/03/2018 vamos supor que, se eu comandasse o “Cutty Sark” e me encontrasse no ponto do mapa assinalado com uma +, em frente ao cabo Horn com destino a Sidney, (não é um percurso que o "Cutty Sark" alguma vez tenha feito) teria um vento que poderia atingir 30km/h e encontrava-me numa zona onde as rajadas de vento poderiam atingir os 70km/h. Se descaísse para Sul, entraria numa área com possiveis rajadas de 90km/h e se descaísse ainda mais poderia ser apanhado por possiveis rajadas de 120km/h. A decisão do rumo a tomar em direção à Austrália, descontando outras informações que não vou ter em conta para este “exercício exemplo” seria fácil de tomar. Tinha pela minha frente as ilhas Sandwich e um rumo sensivelmente de ENE – descontando o possível abatimento devido à acção do vento vindo do través de bombordo e das correntes – daria para passar a sul dessas ilhas e depois procurar a melhor posição para prosseguir para a Austrália.

Pois! Mas na altura não havia nada que se parecesse com estas ajudas. Cartas do Almirantado havia ainda pouco elaboradas, onde constavam as direções e intensidades médias dos ventos bem como as das correntes mas, previsões num dado momento, nickles. E estas previsões meteorológicas eram sempre feitas com base na experiência dos capitães e de outros membros da tripulação. Fico sempre espantado com o nível de conhecimento empírico e capacidade de tomada de decisão dos navegadores desta era, já para não falar nos dos séculos anteriores e presto-lhes a minha homenagem.

Isto é só um exercício e eu não sou marinheiro.

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 Passagem do cabo Horn

No dia em que esta fotografia foi tirada Éolo, deus grego dos ventos, tinha fechado os portões mas havia “carneirinhos”. Pelo aspeto do mar o vento seria possívelmente de força 5/6  na escala Beaufort.

 

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Os clippers do séc. XIX costumavam utilizar com frequência como rota para a Austrália e para a Nova Zelândia a faixa dos “Ventos Rugidores” nas latitudes de 40, 50 e 60 graus Sul, esta última já nos limites do Oceano Antártico, regressando à Europa via cabo Horn.

O mapa exemplifica uma viagem com saída da Inglaterra descendo o Atlântico (curiosamente, mas não por acaso, numa rota muito semelhante à das Naus Portuguesas que se dirigiam para o Oriente no séc. XV, aproveitando os ventos dominantes), dobrando o Cabo da Boa Esperança e aproando para Leste dentro de rumos contidos entre os 40 e os 50 graus Sul em direção à Austrália ou à Nova Zelândia. O regresso era efetuado passando a sul da Nova Zelândia ou entre a Ilha do Norte e a Ilha do Sul percorrendo o Pacífico dentro da faixa dos 40 a 50 graus Sul até às proximidades do Cabo Horn – que se situa a 55.98 graus de latitude Sul e 67.29 graus de longitude Oeste – onde tinham de entrar na faixa dos 50 a 60 graus Sul com ventos a soprarem com velocidades por vezes bastante assustadoras. Muitas vezes a passagem do Cabo Horn era um autêntico martírio quando se tratava de veleiros. Depois do cabo Horn  para casa, era sempre a direito, caso os ventos fossem favoráveis.

 

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Mapa de localização do cabo Horn no extremo austral da América do Sul

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A terceira viagem do capitão F. Moore no “Cutty Sark” e a décima quinta viagem do navio iniciou-se com a assinatura do contrato em Londres a 13 de Julho de 1884 e a saída do navio de Gravesend dois dias depois, a 15 do mesmo mês novamente com destino a Newcastle NSW via Atlântico/Índico do Sul, com carga geral incluindo 80 toneladas de pólvora. Nesta viagem embarcaram oito marinheiros de 1ª (AB) e oito aprendizes. O aprendiz sénior Jacques embarcou como 3º oficial. A aportagem em Newcastle NSW  foi a 5 de Setembro de 1884 depois de 82 dias de viagem desde Gravesend e foi necessário esperar 3 meses até um frete de 4.300 fardos de lã ter sido embarcado. A viagem de regresso foi feita via Cabo Horn e demorou 80 dias tendo o “Cutty Sark” ultrapassado todos os que partiram antes dele de Newcastle NSW, ganhando a “corrida da lã” desse ano.

Depois da chegada e descarregado o navio, o capitão F. Moore foi transferido por conveniência do armador, para o “The Tweed”, o navio “pai” dos clippers de sucesso que navegavam sob a bandeira da “John Willis & Son”.

 

(continua)

Um abraço e…

Bons Ventos