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Mar & Arte

Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

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Artesanato Urbano de Coisas Ligadas ao Mar (e outras)

30.03.18

27 - Modelismo Naval 7.3 - "Cutty Sark" 2.2


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27 - Modelismo Naval 7.3 - "Cutty Sark" 2.2

 

 (continuação)

 

Caros amigos

 

 

Viagem 4 – Capitão Francis W. Moore

 

Casa Convés.png

Ligados à história do “Cuty Sark” existem dois capitães com o mesmo sobrenome de Moore, embora não sejam familiares. O primeiro é Francis William Moore, de Flamborough, o capitão que tomou conta do “Cutty Sark”, a 20 de Novembro de 1872 em substituição do capitão George Moodle como vimos no post anterior.

Francis W. Moore tinha 50 anos na altura e já trabalhava para John Willis há bastantes anos tendo atrás de si 36 anos de experiência de mar. Em Novembro de 1872 ele era o “Ship’s Husband” – Supervisor Geral – da frota da linha “John Willis & Son” e estava numa situação de – digamos em linguagem atual – pré-reforma. Tinha regressado de uma viagem ao Oriente pois John Willis tinha tido necessidade de um capitão para o clipper “Blackadder” e não tendo ninguém disponível, convidou-o a comandar o navio. Contudo, esta missão foi de uma única viagem de ida e volta. Ao chegar preparava-se para a sua reforma quando novamente foi necessário substituir o comandante George Moodle que se tinha demitido do “Cutty Sark”. E, novamente quem estava mais à mão era o Capitão Moore. Penso que ele era o Supervisor Geral dos Bombeiros já que estava sempre disponível para apagar fogos.

Como já foi dito no “post” anterior, o tempo de permanência do “Cutty Sark” no porto de Londres foi aproveitado para a construção do alojamento para oito aprendizes e para a quarta viagem foram contratados quatro aprendizes.

Casa do Convés.png

A casa do convés. A parte da vante são os alojamentos para os oficiais inferiores. A parte do meio navio, conhecida como “half deck”, é onde estavam os beliches para oito aprendizes

A exemplo da viagem inaugural do “Cutty Sark” a tripulação era composta pelo comandante, por um 1º Oficial, por um Mestre de Equipagem, por um Mestre Carpinteiro, por um Cozinheiro do Navio e por 17 marinheiros de 1ª (AB) além dos aprendizes, num total de 26.

Nesta altura, quando da procura da consignação de cargas de chá nos portos de embarque, já os navios a vapor (SS) faziam forte concorrência aos navios à vela pois, além da velocidade constante que conseguiam manter – depois de ultrapassada a questão do abastecimento de carvão ao longo das rotas – o Canal do Suez já tinha sido inaugurado em Março de 1870, dois anos antes, o que abriu uma nova rota para os “steamers” mais curta e em menos tempo, rota essa que tinha custos incomportáveis para os veleiros que, por razões de “motorização” não podiam usá-la de uma forma económica. As taxas a pagar pelo reboque, pelo piloto e pela passagem do canal eram proibitivas para navios sem motorização. Além disto, os ventos na zona do Mar Vermelho eram fracos senão mesmo ausentes durante largos períodos o que originava a necessidade de ancoragem dos veleiros à espera de ventos de feição quer vindos da China, quer indo para lá.

 

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O “SS Argamemnon” construído em 1862 foi o primeiro navio da companhia “Alfred Holt’s Blue Funnel Line” pertencente a Alfred Holt, amigo e rival de John Wilis, que apostou bem cedo no vapor.

Na viagem inaugural do navio em 1862, fez 82 dias de Liverpool a Xangai via Cabo da Boa Esperança. Na viagem de Liverpool para Xangai, em 1870, quando foi o 7º navio a usar o Canal do Suez no dia da sua inauguração demorou… 42 dias.

 

Assim, a exemplo de muitos outros clippers do chá, o “Cutty Sark” mudou de estratégia e rumou em lastro para Sydney (Austrália) em 20 de Novembro de 1872 onde chegou a 11 de Fevereiro de 1873 tendo efetuado um carregamento de 1.200T de carvão com destino a Shangai para onde zarpou em 1 de Abril de 1873 tendo chegado a 12 de Maio de 1873, 41 dias depois.

Nesta viagem o “Cutty Sark” navegou de conserva com o “Blackadder”, clipper irmão, e foram ambos apanhados por um tufão do qual o “Cutty Sark” se safou sem grandes mazelas. O mesmo não se pode dizer do “Blackadder” que ficou desmastreado nesta passagem.

 

Blackadder.png

O Blackadder numa pintura de JRD Spurling

Na chegada a Xangai, o “Cutty Sark” conseguiu consignar uma carga de chá e partiu para Londres a 9 de Julho de 1873 dois dias à frente do seu rival “Thermopylae”. O Mar da China foi atravessado com extremo mau tempo e como o capitão Moore era adepto do “mais vale prevenir do que remediar” não correu riscos desnecessários.

Quando passou Anger no Estreito de Sunda descobriu que o “Thermopylae” já tinha passado 12 dias antes, a 16 de Julho de 1873 apesar de ter zarpado dois dias depois do “Cutty Sark”, tendo aportado em Londres depois de 101 dias de viagem, enquanto que o “Cutty Sark”, que chegou em 3 de Novembro de 1873, demorou 117 dias.

 

Um clipper batido pela tempestade.png

Um clipper batido pela tempestade

 

Depois desta viagem o capitão Francis William Moore arrumou as botas como navegador no mesmo dia da chegada e poucos dias depois foi gozar a sua merecida reforma. Possivelmente comprou uma quinta e dedicou-se à criação de gado como muitos outros o fizeram. Não digo que foi para o Algarve porque nessa altura ainda não era moda. Digo eu!

 

 

Viagens 5 a 10 – Capitão William E. Tipstaff (Tiptaft)

 

O capitão “Tiptaft” vai chamar-se assim pois é a grafia que é usada no livro que estou a usar como referência e também em documentos oficiais publicados na Internet que consultei quando andei à procura de uma fotografia dele, que não encontrei. No entanto, o nome correto de família é mesmo “Tipstaff” que deriva, como muitos outros, de uma alcunha – neste caso ligada à profissão de algum dos ancestrais do capitão – que significa meirinho ou “oficial de diligências” em linguagem mais moderna.

Assim, não vai ter direito a fotografia. Imaginem alguém, bastante novo – quando assumiu o comando do “Cutty Sark” em 1873 tinha 30 anos – e possivelmente com barba ou com umas grandes “costeletas” por uma questão de imposição de respeito às tripulações. Ou por gosto.

O capitão Tiptaft nasceu em 1843 em Coldstream junto ao rio Tweed na fronteira entre a Inglaterra e a Escócia. É de realçar que uma grande parte dos construtores, dos donos e dos capitães dos “clippers do chá” eram naturais da Escócia. Mesmo alguns dos construtores Norte-Americanos mais célebres eram descendentes de escoceses como o caso do famoso construtor Donald MacKay (nascido na Nova Escócia/Canadá, filho de emigrantes escoceses). A cidade onde nasceu fica muito perto de “Berwick on Tweed” onde teve origem a família de John Willis, dono do “Cutty Sark”.

 

Coldstream junto ao rio Tweed.jpg

 Coldstream junto ao rio Tweed na fronteira entre a Escócia e a Inglaterra

Tal como aconteceu com John Willis, Tiptaft com 15 anos foi para Londres onde iniciou a sua carreira como marinheiro aprendiz e depois como marinheiro de 1ª (AB) tendo integrado como tal, nos finais de 1861, as tripulações da frota de John Willis, concretamente no “Whiteadder” onde permaneceu durante 4 anos, tendo alcançado o posto de 2º Oficial em 1865. Mais tarde, foi promovido a imediato (1º oficial) e, com a idade de 27 anos tornou-se capitão do navio, tendo substituído o capitão Frederick Moore (o segundo Moore ligado à história do “Cutty Sark”). Dois anos depois foi transferido para outro dos navios da frota de John Willis, o “Merse”. E em 1873 substitui o capitão Francis William Moore (o outro Moore) no comando do “Cutty Sark”.

 

Aprendiz.png

Uma fotografia tirada a um aprendiz que não devia ter ainda 15 anos, em “pose”, junto a um mestre veleiro que está a trabalhar no conserto de uma vela, no “roof” do salão dos oficiais no “Cutty Sark”.

Fotografia tirada pelo capitão Richard Woodget, último comandante do navio e que nele navegou entre 1885 e 1895. Além de andar de bicicleta no convés do navio e de criar cães da raça “Coolie” a bordo durante as viagens, também tinha como passatempo a fotografia. Devem-se a ele algumas das melhores fotografias do “Cutty Sark” nessa época.

 

A quinta viagem do “Cutty Sark” iniciou-se em 4 de Dezembro de 1873 sob o comando do capitão Tiptaft. Como a anterior, o primeiro destino foi Sidney, Austrália mas, ao contrário da anterior que tinha sido em lastro, desta vez o “Cutty Sark” transportou carga geral com destino àquele porto. Em Sidney, depois de descarregado, tomou uma carga de carvão com destino a Xangai tendo sido o primeiro clipper a chegar para a nova colheita de chá. A casa agente que representava a “John Willis & Son” na China a “Jardine & Matheson” mandou-o carregar no porto de Hankow, no rio Yangtzé.

 

 

Cutty Sark em Circular Quay, Sidney.png

 O “Cutty Sark” no Circular Quay, porto de Sidney, amurada em primeiro plano ao lado do “Daylight

 

A viagem de volta para Londres, iniciou-se em Woosung em 24 de Junho de 1874 com 1.270.651 libras de chá (576.364Kg) e terminou na East Indian Dock em Londres em 20 de Outubro de 1874 tendo durado desde a partida de Londres, 321 dias.

A sexta viagem do “Cutty Sark” e a 2ª do capitão Tiptaft neste navio, iniciou-se a 14 de Novembro de 1874 em Londres tendo chegado a Sidney 73 dias depois a 2 de Fevereiro de 1875. Esta viagem foi uma repetição da anterior. Carga geral para Sidney e carvão para Hankow com saída de Sidney a 19 de Fevereiro de 1875 e chegada a Xangai 48 dias depois em 14 de Abril de 1875. Carregamento de chá em Woosung em 21 de Junho de 1875 e chegada a Londres em 25 de Outubro de 1875 depois de 122 dias de viagem. A duração da viagem Londres-Londres foi de 349 dias.

A sétima viagem foi iniciada em 21 de Novembro de 1875 também com destino a Sidney. Mas depois de uma colisão com o “Somersetshire” em Gravesend no Tamisa, já perto da barra de saída para o Canal da Mancha, o “Cutty Sark” viu-se obrigado a voltar atrás para efetuar reparações necessitando de um novo mastaréu do joanete (1) e de alguns dos seus acessórios de encaixe. Este atraso custou ao Cutty Sark – sem seguro – quatro dias, bem como a conta da reparação. Não foi possível encontrar um mastaréu com o comprimento necessário para a substituição e quando um novo mastro grande foi montado em Novembro de 1877 a vela de sobrinho não pode ser montada, tendo sido dispensada.

 

(1) Como nota de pé de página fica aqui uma informação sobre os termos usados nestes posts.

Apercebo-me que, embora não saiba quem são os meus leitores, é necessário que eu dedique algum tempo a juntar num post, a tradução dos termos em “marinhês” o mais gráficamente possível, pois acredito que muitas pessoas não iniciadas terão dificuldade em entender o que é o “mastaréu do joanete” ou a “vela de sobrinho”. Por vezes eu também me perco!

 

Foi desde o episódio do “Blackadder” (2) em 1870 – quando uma fraca qualidade da construção do navio resultou na sua destruição parcial na viagem inaugural, tendo a companhia de seguros recusado o pagamento com base no fato de que o trabalho defeituoso foi efetuado com o pleno conhecimento de John Willis – que, a partir de então, John Willis se encarregou do seu próprio seguro.

 

(2) O “Blackadder”, navio também da companhia John Willis & Son, foi construído como um clipper muito semelhante ao “Tweed”, com as mesmas linhas do “Cutty Sark” e do “Halowe’en”. Devido a má execução do trabalho durante a mastreação, englobando o aparelho fixo para a sua sustentação (o que parece ter tido várias causas como o errado ângulo de inclinação dos mastros quando da sua colocação e também a confusão gerada pelo início da estiva sem o clipper estar ainda terminado) o navio saiu dos “The Downs” para a sua viagem inaugural em 24 de Março de 1870 com destino a Xangai e logo ficou patente que os mastros iriam causar problemas durante a viagem. E assim foi.

Atravessou o Equador a 19 de Abril de 1870 em direção ao Atlântico Sul e logo que apanhou um forte vendaval em 10 de Março de 1870 os receios sobre a segurança dos mastros foram confirmados. Como já se esperava que podia acontecer, ficou parcialmente desmastreado e teve de usar uma armação de recurso a fim de procurar refúgio no porto de “False Bay” em Cape Town na África do Sul onde aguardou 3 meses até chegarem os mastros necessários, vindos da Inglaterra com tamanhos inferiores aos originais, o que obrigou a muito trabalho de adaptação e de improvisação quer nos estais quer nos brandais do navio.

Tendo retomado a viagem, já no mar da China e na aproximação final a Xangai, o “Blackadder" foi abalroado pelo “SS Volga” de Marselha, tendo ambos os navios sofrido danos razoáveis nas respetivas proas. Novamente teve de se refugiar num porto alternativo, Foochow, onde durante três meses sofreu reparações tendo finalmente aportado em Xangai já fora da época do chá, não tendo por isso conseguido um carregamento. Assim, o navio rumou ao porto de Penang onde novamente sofreu um acidente que lhe danificou o pau da bujarrona, mas os danos foram facilmente remediados com a prata da casa. Chegou a Londres em Novembro de 1871 depois de 21 meses de viagem.

John Willis, quando teve conhecimento do desmastreamento do navio, acionou o seguro do mesmo que tinha efetuado junto de uma seguradora em Londres. Alegando que John Willis (comprovado pela companhia) tinha conhecimento dos erros cometidos e da condição precária dos mastros do navio, a companhia negou-se a pagar. Em tribunal foi dada razão á companhia de seguros. A partir dessa altura, John Willis nunca mais segurou nenhum navio arcando ele próprio com o total dos prejuízos resultantes de acidentes

 

Apesar do fato do capitão Tiptaft não ser um marinheiro notável (segundo as más línguas) o “Cutty Sark” navegou 2.163 nm no Atlântico e Índico do Sul em direção a Sidney, e conseguiu uma melhoria de seis dias nas viagens até Sidney, onde chegou a 12 de Fevereiro de 1876. Zarpou de Sidney com rumo a Xangai com um carregamento de carvão três semanas depois em 5 de Março de 1876, tendo aportado em Xangai após 49 dias de navegação, a 23 de Abril de 1876. Carregou chá e rumou a Londres tendo feito uma viagem com a duração de 111 dias, atracando em Londres a 27 de Setembro de 1876. De Londres para Londres a viagem teve uma duração de 313 dias.

A oitava viagem do “Cutty Sark” que corresponde à 5ª do capitão Tiptaft iniciou-se a 21 de Outubro de 1876 tendo como primeiro destino o porto de Sidney na Austrália.

 

Uma chamada de atenção sobre as datas das partidas dos portos de origem dos clippers.

O que aparece maioritariamente nos documentos oficiais como data de partida é a data de assinatura do contrato entre o capitão e a empresa proprietária, onde constam vários artigos respeitantes ao comando do navio (direitos e obrigações). Em todos os meus posts não tenho considerado esta data mas sim a data da efetiva partida do navio do porto de origem que, muitas das vezes é posterior. Como exemplo, no caso desta viagem, a data que aparece oficialmente é 16 de Outubro de 1876 que é a data de assinatura do contrato. Na realidade o navio só zarpou para Sidney cinco dias depois a 21 de Outubro de 1876. A aparente discrepância com outras fontes só se deve ao fato de eu ter adotado como critério de início de viagem o da data da partida efetiva.

 

Esta é novamente uma viagem que se repete. De Sidney para Xangai com carvão, e saída do porto de Woosung para Londres com um carregamento de 1.334.000 Libras (605.000Kg) de chá a 6 de Junho de 1877. Atracagem na doca de East India em 11 de Outubro de 1877. No total, a viagem durou 360 dias.

A nona viagem do “Cutty Sark”, sem sequer ter saído das águas do Canal da Mancha, foi das piores da sua história. A 6ª viagem do capitão Tiptaft não poderia ser mais azarenta. Iniciou-se com a partida de Gravesend com rumo a Sidney em 4 de Novembro de 1877.

 

Gravesend e Deal.png

 A barra do Tamisa onde se pode identificar “Gravesend” (à esquerda, junto da penúltima curva do rio antes da barra) e a cidade de “Deal” já em pleno Canal da Mancha (à direita) onde se situa o ancoradouro de “The Downs”. Um pouco mais ao largo (1 ou 2 nm do ancoradouro de “The Downs”) encontram-se baixios de areia “Goodwin Sands” responsáveis por inúmeros naufrágios “

 

Mas, as três semanas seguintes, iriam testar as capacidades do capitão Tiptaft ao máximo.

À saída da barra do Tamisa, ainda com o piloto a bordo, o “Cutty Sark” foi apanhado por uma feroz tempestade no Canal da Mancha tendo sido obrigado a procurar abrigo num ancoradouro seguro situado na zona da cidade de Deal no condado de Kent - “The Downs” - muito perto da foz do Tamisa. Em situações destas era usual os navios procurarem abrigo neste ancoradouro, de fundo de areia com aproximadamente 22m de profundidade. Mas a tempestade era tal que, mesmo ao abrigo da terra existia um grande perigo de o vento, dado o grande número de navios que também procuraram abrigo e ancoraram na área, os fazer colidir uns com os outros. Nestes navios estava incluído um grande número de grandes vapores que também ali tinham procurado refúgio do temporal do Canal da Mancha.

Costa Inglesa Dover.jpg

A costa inglesa em Dover (que fica à esquerda da fotografia na linha de horizonte) onde se situam “The Downs” (no centro da fotografia) vista da costa francesa

 

O capitão Tiptaft esperou no ancoradouro que o vendaval passasse mas, em vez disso o vento intensificou-se para a força de furacão. Embarcações de salvamento andavam de um lado para o outro procurando ajudar os navios em perigo mas, com o tempo que fazia, muitos dos navios ao longo do canal estavam em situação crítica.

Ambas as âncoras de “Cutty Sark” foram perdidas como também as de muitos outros navios na baía. Muitos cabos se partiram levando os navios a encalharem em terra com o furacão rugindo, muitas luzes azuis de sinalização foram vistas em todos os lugares do ancoradouro a pedir auxílio, bem como a maior parte dos navios na vizinhança foram violentamente empurrados pelo vento, enrolados e colidiram entre si. Após aquela grande tempestade de novembro de 1877 quase não havia um navio em “The Downs” que tivesse ficado sem danos. Cinco ficaram encalhados em terra e dezenas de embarcações á vela perderam os seus mastros e vergas.

Quando os cabos das âncoras do “Cutty Sark” partiram, e o navio ficou à deriva. Colidiu com dois navios diferentes que também estavam à deriva. As amuradas do “Cutty Sark” ficaram bastante danificadas.

 

Atual âncora Cutty Sark-bombordo (1).jpg

A atual âncora de bombordo do “Cutty Sark” que se encontra "ancorado" na doca seca de Grenwich

As vergas estavam a balançar descontroladamente com cada rajada de vento e o convés estava semeado de destroços: pedaços de madeira e de velas rasgadas e cabos. Muitos outros cabos de manobra tinham-se soltado das malaguetas e chicoteavam pelos ares devido ao vento ou boiavam na água. O capitão Tiptaft fez uma tentativa de manobrar o navio com a vela da gávea inferior e finalmente conseguiu levar o “clipper” para fora da zona de confusão de navios albarroados. Nesta viagem tinha embarcado o recém-contratado imediato JS Wallace que desempenhou um papel heroico na ajuda que prestou nesta manobra. A coragem e a liderança deste marinheiro escocês foram, na verdade, um dos principais fatores na sobrevivência do "Cutty Sark". No entanto, o furacão continuou e tudo o que Capitão Tiptaft podia fazer era tentar manter o seu navio aproado ao vento.

Luzes azuis forma mostradas e foguetes foram lançados como pedido de assistência e estes foram vistos pelo rebocador “MacGregor”. O rebocador chegou a tempo de lançar um cabo de reboque a bordo, já que o "Cutty Sark" navegava perigosamente a caminho da destruição, perto de “Goodwin Sands”. Apesar deste auxílio, o pequeno rebocador não era suficientemente potente para aguentar o navio e o capitão Tiptaft lançou novos foguetes para obter mais assistência. O rebocador “Benachie” detetou o pedido e juntou-se ao reboque e, entre os dois, rebocaram o “Cutty Sark” para a ancoragem de Greenhith, no Tamisa, onde na altura existiam docas, muito perto de Greenwich.

 

Pintura de Schell do rebocador Columbus no porto de Filadélfia em1855 aprox (1).jpg

Durante muito tempo, os rebocadores a vapor na barra do Tamisa foram movidos a pás. Mas acredito que nesta altura de 1877 muitos dos rebocadores no Canal da Mancha já seriam de veio de hélice como no quadro do pintor  Schel,  onde se vê o rebocador/quebra-gelo "Columbus", a rebocar um navio de velas redondas de 3 mastros (aparentemente um carregueiro) no porto de Filadélfia nos U.S.A., em 1855.

 

Na reivindicação do pagamento do reboque de salvamento, os donos dos rebocadores que reclamavam £ 8.000 só receberam £ 3.000. O “Cutty Sark”, como sabemos, não tinha seguro, e John Willis pagou as suas próprias reparações dos danos sofridos pelo furacão. A conta poderia ter sido muito maior se Henry Henderson, o mestre carpinteiro com olhos de falcão, não tivesse visto destroços de outro navio no convés do “Cutty Sark” e não os tivesse atirado ao mar iludindo posteriores conclusões embaraçosas para o navio. De fato, numa das colisões naquela tempestade caótica, o “Cutty Sark” abalroou , por sua culpa, um outro navio. Mas apesar da “tareia” que recebeu, o “Cutty Sark” foi muito mais feliz do que um grande número de outros navios durante esse feroz furacão em Novembro de 1877.

 

barco enfrentando tempestade.jpg

Navio na tempestade

A carga não sofreu nenhum dano e depois das reparações no navio e da assinatura de um novo contrato a 29 de novembro de 1877, o “Cutty Sark” na sua décima viagem e o capitão Tiptaft na 6ª, mais uma vez navegaram para Sidney em 2 de Dezembro. A passagem, que levou 72 dias, foi a melhor de todos os veleiros que foram para a Austrália naquele ano.

Mais uma vez foi carregado carvão para Xangai onde o “Cutty Sark” aportou ao fim de uma viagem de 40 dias a 22 de Abril de 1878. Mas desta vez, no que diz respeito ao carregamento do chá para o retorno à Inglaterra as coisa complicaram-se. Os barcos a vapor aumentaram em número e capacidade de carga e as tarifas para o chá estavam muito baixas. Além disto, tudo o que o agente conseguia arranjar para o “Cutty Sark” era meio carregamento de chá e, transportar só meia carga de chá para Londres, era a mesma coisa que dizer que o navio ia perder dinheiro.

 

Z138.png

Enquanto o “Cutty Sark” esteve ativo como navio de carga, tinha três escotilhas através das quais a carga era carregada no único porão. A escotilha nº2, que está nesta fotografia, é a maior. As outras duas, mais pequenas, na atualidade são usadas como escotilhas de acesso para os visitantes. 

Quando um navio estava a navegar, todas as escotilhas deviam estar bem isoladas para impedir que a água entrasse no porão. Em primeiro lugar, as três capas de lona impermebilizada deviam ser cuidadosamente ajustadas e colocadas nos seus grampos; estes grampos podem ser vistos na fotografia, aplicados nas braçolas da escotilha. As barras de batente que correm segundo o comprimento e a largura da escotilha são colocadas nos grampos e depois apertadas com as cunhas de madeira inseridas no sentido da proa para a popa, para que fiquem firmemente apertadas. Na imagem acima, as lonas não foram aplicadas corretamente e as cunhas estão colocadas ao contrário. Não é grave pois o navio não está a navegar mas, num navio que pretende exemplificar a vida a bordo com o máximo de realidade é um pormenor importante, que já foi algumas vezes criticado por peritos mas que, ao que tudo indica, ainda não foi levado em linha de conta. A fotografia é da atual “Cutty Sark” que está em Greenwich.

 

Assim, o capitão Tiptaft resolveu aceitar um outro frete de carvão entre Xangai e Nagasaki no Japão deixando o porto Chinês em 18 de Setembro de 1878 e chegando uma semana depois a Nagasaki tendo retornado para Xangai para um outro frete de carvão para o mesmo destino. As más notícias eram que não havia mais fretes de carvão. Mas a pior notícia foi a de que o capitão Tiptaft adoeceu e faleceu em 12 de Outubro de 1878 com a idade de 35 anos. A sua morte foi diagnosticada como doença do coração e as causas como sendo stress e trabalho em excesso. O 1º Oficial James Smith Wallace tomou então o comando do “Cutty Sark”.

 

Tripulação do Rathdown 1892 (1).jpg

 Tripulantes do "Rathdown" em 1892 junto ao mastro da Mezena

O "Rathdown" foi um veleiro construído nos estaleiros de "Workman, Clarke & Co, Limited" de Belfast em 1891. Era um veleiro clipper de três mastros, construído em ferro e foi registado em 23 de Setembro de 1891 com a classificação da Loyd's de A1. Em 2 de Outubro de 1900, depois de várias viagens, o navio saíu de Yokohoma para Port Townsend em Puget Sound no estado de Washington nos E.U.A.. Depois desta data desapareceu no mar com a totalidade dos 28 tripulantes incluíndo o capitão algures no Pacífico Norte, na rota para Port Townsend.  

 

 

 

Viagens 10 a 12 – Capitão James Smith Wallace

 

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O capitão James Smith Wallace nasceu em Aberdeen, Escócia em 1853 (onde se situavam – e situam – uma grande parte dos estaleiros de construção naval dos clippers ingleses (hoje, de outros tipos de navios), bem como toda uma série de indústrias subsidiárias da construção naval tais como manufatura de velas, cordoaria, ferragens, etc. digamos, o equivalente aos polos industriais modernos), e com a idade de 12 anos iniciou a sua vida marítima em barcos de pesca. Serviu como marinheiro aprendiz em veleiros e, com a idade de 25 anos entrou na equipagem do “Cutty Sark” como seu imediato em 1 de Novembro de 1877.

O capitão Wallace teve como comandante, como vimos anteriormente, o malogrado capitão Tiptaft que faleceu em Xangai e esteve envolvido, com bastante realce, no furacão que danificou o “Cutty Sark” em 4 de Novembro de 1877.

Em Xangai, após a morte do comandante Tiptaft, assumiu o comando do “Cutty Sark”. Era um marinheiro bastante popular na tripulação e também o profissional temerário que o “Cutty Sark” requeria pois, como era amplamente reconhecido à época, o navio nunca tinha estado nas mãos de quem pusesse à prova as suas inquestionáveis qualidades.

 

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 Porto de Xangai em 1893

  

Mas o seu início como comandante foi pouco auspicioso pois a concorrência dos barcos a vapor na procura da consignação de carregamentos de chá para a Inglaterra era feroz o que significava que os dias da “corrida do chá” dos clippers tinham os dias contados.

Na continuação da décima viagem a única solução para rentabilizar o navio foi voltar a Sidney para uma nova carga de carvão numa viagem que demorou 51 dias e donde retornou com 1.150t de carvão em 11 de Março de 1879 tendo chegado a Xangai a 2 de Maio de 1879, 45 dias depois.

Não havendo mais chá para transportar daquela colheita, o capitão Wallace zarpou de Xangai em lastro com destino a Manila nas Filipinas onde aportou em Setembro de 1879. Neste porto carregou açúcar com destino a New York e saiu em 23 de Setembro de 1879 chegando à América em 12 de Janeiro de 1880 depois de 111 dias no mar. Tendo terminado aqui a 10ª viagem do “Cutty Sark”.

 

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 O porto de Foochow com "sampanas" que transportam as caixas de chá para os navios ancorados. O navio que se encontra no canto superior esquerdo, em plano de fundo, é um "steamer".

 

 

A décima primeira viagem inicia-se em New York em 11 de Fevereiro de 1880 quando o capitão Wallace assinou um novo contrato com destino de Londres, tendo o navio encontrado mau tempo no Atlântico Norte. Ao passar por essa área, o capitão Wallace encontrou um navio de transporte de madeira chamado Ulster, abandonado. Saído de St Johns, (suponho que seja o porto de St Johns em Brünswick, no Canadá) o navio não teve muita sorte com o tempo e foi encontrado abandonada e varrido pelas vagas. Sem sinal de vida a bordo, a viagem do “Cutty Sark” continuou e depois de 19 dias, atracou em Londres.

Durante esses anos, o número de tripulantes de todos os veleiros estava a ser reduzido devido à falta de trabalho. Como consequência, o número de tripulantes do “Cutty Sark” foi reduzido dos 31 originais na sua viagem inaugural até um número por volta de 20.

Com esta equipagem reduzida, John Willis teve de alterar quer os mastros quer as velas do "Cutty Sark", o que, por sua vez, lhe deu a opção de reduzir ainda mais a tripulação do navio. Tipo "pescadinha de rabo na boca"! Assim, após a chegada a Londres, os mastros reais dos mastros da Mezena e do Grande foram reduzidos em altura entre sete pés no da Mezena e nove pés seis polegadas no Grande, enquanto os mastaréus da Gávea e do Joanete foram cortados em conformidade. A redução da altura total do mastro principal do convés para o carlinga foi de catorze pés. As vergas foram encurtadas para dar uma aparência mais equilibrada ao navio, enquanto a vela de sobrinho e as velas auxiliares (cutelinhos, cutelos e varradouras) ("stunsails" em inglês) bem como os respetivos paus, foram descartados. Não havendo chá para transportar, a velocidade era uma prioridade de segundo plano. E, de qualquer forma não ficou prejudicada, como veremos.

 

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 Os mastros do "Cutty Sark" antes de serem reduzidos em altura e largura das vergas em Março de 1880

 

 

Na décima segunda viagem o destino foi o Extremo Oriente com um carregamento da melhor qualidade de carvão para a marinha dos E.U.A.. Mas encontrar uma tripulação para esta viagem foi quase tão difícil como conseguir a consignação da carga. Ao sair de Londres para o porto de Penarth no País de Gales, o capitão Wallace contou com uma equipe de apenas 21 tripulantes sem contar com ele. Não se sabe se foi ou não usado um reboque para esta viagem. A tripulação para esta viagem foi aparentemente: Capitão Wallace, Imediato SW Smith, 2º Oficial GH Rogers, 6 marinheiros aprendizes, 1 mestre carpinteiro de nome E Holford (o que significa que o mestre carpinteiro Henry Henderson, que ainda é referido como tripulante na 9ª viagem, já tinha saído da tripulação), 1 mestre veleiro, 1 cozinheiro e 10 marinheiros de 1ª (AB).

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Tripulantes na faina de um clipper não identificado

Mas, depois de deixar Londres a 13 de Maio de 1880 e à chegada a Penarth a 22 de Maio de 1880 dois dos marinheiros de 1ª foram despedidos enquanto  outros três fizeram as malas e … desertaram. Este “êxodo” de 5 marinheiros AB duma assentada tudo indica que se deveu ao conflituoso imediato “Bucko Smith”. Além disto e devido à má reputação do imediato que rapidamente se espalhou por todas as tabernas dos portos da Gales do Sul nomeadamente Swansea, Cardiff e Newport, o capitão Wallace teve que recrutar entre a escória dos portos de carvão para conseguir juntar uma equipe que inicialmente seria de 10 mas que ficou reduzida a 6 marinheiros de 1ª (AB). Três dos marinheiros eram americanos, um da Jamaica, um de Trieste e outro de Bangor tendo este último faltado ao embarque. Resumindo: o “Cutty Sark” saiu de Penarth com uma tripulação de 23, não se sabendo se embarcou algum despenseiro com a responsabilidade da administração logística do navio.

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Potenciais tripulantes do Cutty Sark frente ao "centro de recrutamento" em Penarth em 1880 e...

 

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 ... as docas de Penarth também em 1880

 

Entre os novos marinheiros de 1ª, americanos que embarcaram em Penarth, encontrava-se William H Francis, um negro de 35 anos natural de Chicago. Rapidamente o imediato e ele entraram em conflito e pelas suas atitudes agressivas e personalidades conflituosas tornaram-se bastante impopulares entre a tripulação.

O “Cutty Sark” zarpou de Penarth em direção a Anger no estreito de Sunda em Junho de 1980 e desde esta data, os dois entraram em permanente conflito. Até que tiverem um confronto físico no convés com o testemunho de toda a tripulação. Tudo isto aconteceu no dia 11 de Julho de 1890 quando o navio se encontrava a menos de uma semana de Anger. Smith e Francis estavam na mesmo quarto de vigia e, ao ser-lhe dada uma ordem por Smith, Francis recusou cumpri-la e atacou o imediato com uma barra de cabrestante que tinha na mão. O imediato conseguiu arrancar-lhe a barra e esmagou-lhe o crânio com ela tendo-lhe causado a morte imediata.

O capitão Wallace tinha uma certa simpatia por Smith. Mas teve de o prender na cabine até à chegada a Anger para o julgamento do imediato sob a acusação de assassínio. De qualquer maneira, ao chegar a Anger, o imediato (ou alguém por ele) rebentou a fechadura da cabine e fugiu. No alojamento dos marinheiros falava-se que a fuga tinha sido proporcionada pelo capitão Wallace. Após a fuga, os marinheiros durante a semana em que o navio esteve no porto, recusaram-se a trabalhar a bordo. Apesar do imediato ter sido procurado por todo o lado, não foi encontrado e os marinheiros, relutante e revoltadamente voltaram para bordo, tendo o “Cutty Sark” recebido ordens para rumar para Yokahama, o seu destino inicial.

A 4 de Setembro de 1880, o amargurado e traumatizado capitão Wallace encontrava-se junto ao timoneiro às 04H00 AM na popa do navio quando, de repente, saltou a amurado e mergulhou no mar. Apesar do timoneiro ter feito todos os esforços para o salvar, atirando-lhe duas boias de salvação o capitão Wallace, de 27 anos, nunca mais foi visto. O seu suicídio deveu-se, com certeza, a ter “quebrado” debaixo da pressão em que se encontrava.

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A roda do leme e a bitácula da bússola do Cutty Sark na popa do clipper, local de onde saltou o capitão Wallace

Assim findou a vida de um capitão que era bastante popular entre a sua tripulação, em especial entre os marinheiros aprendizes a quem ministrava regularmente instrução quer de navegação quer de marinharia. A tripulação lamentava-se por ter colocado involutariamente o seu comandante em tão grande pressão, tendo-o levado ao suicídio.

O comando do navio deveria ser entregue ao 2º Oficial mas este declarou-se incompetente e o lugar foi ocupado pelo aprendiz sénior que levou o navio até Singapura de onde foi telegrafado para John Willis sobre os tristes acontecimentos.

Por volta de três anos mais tarde, o imediato Smith foi reconhecido em New York e preso pela polícia tendo sido extraditado para a Inglaterra onde foi sentenciado com sete anos de trabalhos forçados pelo assassinato de Francis. Quando saiu da prisão, refez a sua vida com o apoio de John Willis que lhe proporcionou a passagem no exame para o comando de vapores.

 

(continua)

 

Um abraço e...

 

Bons Ventos

30.03.18

26 - Modelismo Naval 7.2 - "Cutty Sark" 2.1


marearte

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Caros amigos

 
(continuação)

 

“Cutty Sark” - A História

 

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A longa história do “Cutty Sark” foi descrita em vários livros por vários autores mas em poucos se encontra abordado o período de 27 anos, entre 1895 a 1922 em que o “Clipper” navegou sob bandeira portuguesa primeiramente, de 1895 a 1916 com o nome “Ferreira” e depois com o nome de ”Maria do Amparo” de 1916 a 1922 altura em que voltou a ostentar a bandeira inglesa quando comprado pelo Capitão Wilfred Dowman e posteriormente transformado em monumento nacional inglês na doca seca de Greenwich.

Esta falha na fita do tempo do “Cutty Sark” deve-se, quanto a mim, a dois fatores de índole diferente.

Um primeiro, mais prosaico, tem a ver com a quase total ausência de documentação nos arquivos, sobre este período de vida do "Cutty Sark". Existem algumas fotografias, alguma informação sobre situações anómalas mas, por exemplo, segundo informação do Museu de Marinha de Portugal em 19/07/1995, não existem quaisquer diários de bordo nos arquivos nacionais nem listas de tripulações referentes ao “Ferreira” e ao “Maria do Amparo” considerando que se encontram totalmente perdidos. Possivelmente estarão num qualquer arquivo ainda não pesquisado.O livro de John Richardson © 2014 tem a virtude de traçar a história do “Cutty Sark” atendendo também ao tempo português. Aliás, talvez dito de uma melhor forma: o livro nasce da narração de factos ligados ao "Cutty Sark /Ferreira/ Maria do Amparo", através de informações colhidas de viva voz de um descendente português de um comandante do “Ferreira” e com base em reconstituições de outros factos dos quais o autor tomou conhecimento, narrou e descreveu gráficamente, como também em algumas fotografias existentes.

Um segundo, talvez um pouco chauvinista por parte dos ingleses, será a pouca (ou nenhuma) importância dada pelos outros autores ingleses a este período do “Cutty Sark” fora da “Great Albion” e debaixo da "Red Insignia" como eles dizem. Um indicador disso foi a grande celeuma que se levantou na Inglaterra quando da venda do clipper à firma portuguesa que levou à tentativa, não concretizada, de um peditório para que o navio não saísse da Inglaterra como também a sistemática omissão, por parte dos “historiadores” ingleses do período de 27 anos sob a bandeira portuguesa. E aqui e ali, algumas referências “maldosas” ao período em que o “Cutty Sark” navegou sob bandeira portuguesa. Richardson procurou historiar a existência do “Cutty Sark” desde o nascimento da ideia da sua construção até à data em que escreveu o livro, incluindo tudo aquilo que se sabe sobre o “Cutty Sark”- Ferreira e o “Cutty Sark”- Maria do Amparo. Honra lhe seja feita!

 

Mas, apesar desta virtude, existe um contra (talvez mais do que um). John Richardson ou é demasiado patriota, ou tem uma grave lacuna nos seus conhecimentos de história - que não seja a do “Cutty Sark” - ou foi a “secretária” que se enganou ao passar o texto a limpo!

No seu livro, a páginas tantas, no início do capítulo “The South Africa Coast”, faz esta bela afirmação:

“…, this of course is the Cape of Good Hope. For hundreds of years, the Cape has been one of the worlds busiest waterways for ships on passage to and from the European ports, the Far East, India and East Africa. It had previously been known as the Cape of Storms, and greatly exaggerated fears were prompted by its existence. Sailors returning to Europe spoke of continuous hurricanes, mountainous seas, and of great sea serpentes that would rear up from the seabed attack any passing ship and pull the sailors from the decks. They were most reluctant to sail its waters so, to allay their fears, it took the King of England to change the name to is presente one of, the Cape of Good Hope.”(1)

 


(1) "..., é claro que é o Cabo da Boa Esperança. Por centenas de anos, o Cabo foi uma das vias navegáveis ​​mais movimentadas do mundo para navios na passagem de e para os portos europeus, Extremo Oriente, Índia e África Oriental. Anteriormente era conhecido como o Cabo das Tormentas, e a sua existência causava bastante medo, o que foi bastante exagerado. Os marinheiros que retornavam à Europa falavam de furacões contínuos, mares montanhosos e de grandes serpentes do mar que se elevavam do fundo do mesmo atacando qualquer navio que passasse e puxando os marinheiros do convés para o fundo do mar. Eles estavam muito relutantes em navegar nestas águas, e foi para aliviar os seus medos que o Rei da Inglaterra mudou o nome para o que hoje existe, o Cabo da Boa Esperança" (tradução livre)

 

Uma pérola da História da Inglaterra! Desconhecia que D. João II, Rei de Portugal, também tinha sido rei da Inglaterra! Mas a gente está sempre a aprender!

 

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Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

Camões, “Os Lusíadas”, Canto V, Estrofe 39.

 

A verdade dos factos é que este cabo foi dobrado pela primeira vez em 1488 pelo navegador português Bartolomeu Dias. Contam as crónicas da época que, como foi avistado depois de vários dias em que os marinheiros sofreram violentas tempestades (tormentas), aquele navegador lhe pôs o nome de Cabo das Tormentas. Ao retornar entretanto com a notícia, o rei João II de Portugal mudou-lhe o nome porque, ao ser dobrado, mostrou a ligação entre o oceano Atlântico e o oceano Índico e prometia a tão desejada chegada à Índia. Chamou-lhe, por isso, Cabo da Boa Esperança - o topónimo que se perpetuou. Nas palavras do cronista:

"Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso, mas el-rei D. João II lhe chamou cabo da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada." (João de Barros, Décadas da Ásia)

 

Richardson pode ter-se enganado? Tenho fortes dúvidas! John Richardson foi oficial da Marinha Mercante Inglesa entre 1953 e 1975 altura em que integrou a Marinha de Guerra da África do Sul, onde também desempenhou as funções de pintor de marinha, tendo-se reformado em 1990. Com este “curriculum” não lhe é permitido este tipo de enganos!

Mas esta “estória” dos ingleses tem o que se lhe diga em variados aspetos. Basta lembrar a “descoberta” da Austrália atribuída ao capitão James Cook que, por mais fatos apresentados em contrário, insistem em manter (e não só eles). James Cook reclamou o vasto continente para a coroa do Reino Unido no dia 21 de Agosto de 1770  com o nome de  Nova Gales do Sul. É um facto com que todos parecemos estar de acordo. Mas a Austrália segundo alguns investigadores teria sido visitada, com fortes indícios, por portugueses  (em 1522, por Cristóvão de Mendonça e em 1525 por Gomes de Sequeira), sendo certas as visitas dos holandeses a vários pontos da costa australiana a partir do século XVII. Que “explorou” a Austrália, é um facto! Que a “descobriu”, é um não facto! Mas isto são outras águas que, de momento, convém não agitar. Já basta a turbolência das águas junto ao Cabo da Boa Esperança!

Tirando este “lapso”, todo o livro é credível e uma ótima fonte de informação incluindo a informação gráfica. É com base nesta obra que iremos acompanhar o “Cutty Sark” no primeiro período da sua vida ostentando o pavilhão Inglês, ou seja de 11/02/1870 a 03/07/1895.

 

1 - “Cutty Sark” –  As viagens sob o pavilhão Inglês – 11/02/1870 a 03/07/1895

 

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O Capitão John Willis, (ou “Old White Hat Willis” ou “Willis of the White Hat” o dono do “Cutty Sark” que o mandou construir em 1 de Fevereiro de 1869...

 

A história dos grandes navios faz-se principalmente através das suas viagens, algumas lendárias, mas também através das histórias dos homens que os tripularam. Normalmente o seu fim é o seu desmantelamento para a sucata ou o seu naufrágio, repousando os seus restos para sempre no fundo do mar, muitas das vezes servindo de túmulo aos que os governaram.

Estes homens destacavam-se, segundo Frank G. G. Carr, ex-diretor do “Museu Maritimo Nacional de Londres”, Greenwich, que no seu pequeno livro “The Cutty Sark – And The Days of Sail” editado nos anos 60 do séc. passado, diz:

“… os clippers da China necessitavam dos homens certos para os manobrarem; homens sensíveis que os tratavam como corpos puros, também homens de nervos de aço que não conheciam o significado do medo e que manobravam os seus navios em todos os tipos de clima, com ventos fortes ou em calmaria, com sol ou em tempestade, por 100 dias ou mais, em cada hora de corrida e em cada minuto de tensão. Homens de habilidade infinita como navegadores, que podiam encontrar o seu caminho de dia e de noite através das ilhas e rochas e bancos e fortes correntes imprevisíveis dos mares orientais pouco conhecidos e pequenos e, à luz do luar, fazer uma passagem audaz através de um estreito canal infestado de escolhos e roubar a dianteira a um rival mais cauteloso. De tal raça de homens eram os mestres dos clippers da China: e eles eram acompanhados e apoiados pela coragem robusta, a indiferença às dificuldades e a esplêndida marinharia dos homens que serviam com eles. As tradições mais elevadas da Marinha Mercante nos dias da vela encontraram uma expressão magnífica nas tripulações que serviram os clippers na era da sua glória”.

Não sou Inglês, mas é uma opinião que eu partilho!

O aspeto romântico das viagens à vela pelos oceanos nos séculos XIX e princípios do século XX, com o seu aventureirismo e exotismo que hoje observamos nos cinemas e nas televisões, é a parte agradável da questão.

O reverso da medalha são os períodos de navegação entre portos, navegação essa cheia de perigos e incertezas, como também o trabalho árduo a bordo em altura de bonança, sendo decuplicado em altura de tormenta.

Na época, as ajudas à navegação tal como as conhecemos hoje, não existiam. A comunicação via rádio, quando apareceu, raramente fazia parte do equipamento dos veleiros de carga, a navegação era feita astronomicamente quando possível, as Cartas do Almirantado, embora existissem, ainda não tinham chegado ao apuro das dos nossos dias, as previsões meteorológicas eram feitas com base na experiência de cada um recorrendo à técnica do “olhómetro”. E os “Clipper’s” navegavam normalmente no “fio da navalha”!

 

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… e o pavilhão identificativo da empresa de navegação que o “Cutty Sark” ostentou durante toda a sua vida comercial na Inglaterra.

 

O “Cutty Sark” navegou ostentando o pavilhão da firma “John Willis & Son” desde 11 de Fevereiro de 1870 a 26 de Março de 1895. Durante este período de 25 anos efetuou 25 viagens e conheceu 7 capitães.

 

 

Viagens 1 a 3 – Capitão George Moodie

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O capitão George Moodie já é nosso conhecido pois foi o supervisor da construção do “Cutty Sark” em representação do proprietário capitão John Willis (post anterior desta série) e em conjunto com os supervisores da Loyd’s. Tem a fama de ter sido um perfecionista e de ter recusado materiais para a construção do navio por pequenas anomalias o que, dizem, levou à falência do estaleiro construtor, tendo o navio sido terminado por um outro estaleiro. Também dizem que no fim da construção o estaleiro ficou cheio de materiais recusados que chegavam para construir sete “Cutty Sark”.

 

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A estrutura das balizas da proa do “composite ship Cutty Sark“

 

Tendo nascido em 1831 na vila piscatória de East Wemyss desde cedo iniciou a sua aprendizagem como marinheiro, carpinteiro e na construção de barcos de pesca. Com a idade de 16 anos embarcou no brigue “Lively Maria”. Casou com 23 anos com Janet Cassels que mais tarde foi madrinha do “Cutty Sark. Serviu como aprendiz, como marinheiro de 1ª (AB), e depois como 2º e 1º Oficial tendo alcançado o certificado de “Master” com a idade de 30 anos. Ingressou na frota de John Willis no “The Tweed”, como 1º Oficial sob o comando do capitão Stuart. Depois desta primeira viagem foi-lhe dado o comando do clipper do chá “Laurel” com o qual fez uma viagem ao Oriente. No ano seguinte, numa nova viagem ao Oriente, teve como passageiro o seu empregador John Willis que cedo se apercebeu que o capitão George Moodie, além de ser um esforçado e brilhante marinheiro era também uma autoridade em desenho e construção de navios.

Na altura, John Willis vivia na esperança de construir um navio que fosse capaz de ganhar a corrida do chá em competição com o “Thermopylae”, considerado o clipper mais rápido da frota Inglesa, pertencente ao seu rival George Thompson da “Aberdeen White Star Line”. John Willis possuía na frota da sua companhia um clipper que era o seu favorito e o orgulho da sua frota – o “The Tweed” que George Moore já tinha tripulado co o 1º oficial – e decidiu construir um outro clipper com base no desenho melhorado do “The Tweed”.

Assim John Willis envolveu o capitão George Moore em conjunto com Hercules Linton (o arquiteto oficial do "Cutty Sark) na discussão dos planos do “Cutty Sark” – na altura ainda sem nome – e convidou-o para supervisionar a construção do mesmo nos estaleiros “Scott & Linton ”em Dumbarton.

George Moodie realizou a primeira viagem de longo curso com o “Cutty Sark”. Esta viagem, de Londres (Gravesend) para Xangai teve início em 16 de Fevereiro de 1870 e durou 104 dias o que se pode considerar normal, tendo contudo atingido em 14 de Abril de 1870 um registo de 360nm em 23h1/2, a uma velocidade média de 15knts. Mas, como tantos outros veleiros do chá o “Cutty Sark” encontrou no Mar da China calmarias e ventos fracos na viagem de regresso para Londres nos primeiros 37 dias o que resultou em ter percorrido só 728nm a uma velocidade média de … 1 knt. Chegou a Londres a 14 de Outubro de 1870 depois de 111 dias.

Na segunda viagem nada há de especial a assinalar. Partiu de Londres em 5 de Novembro de 1870 novamente para Xangai e regressou a 21 de Dezembro de 1871.

A terceira viagem efetuada pelo capitão George Moore no “Cutty Sark”, ficou para os anais da história dos clippers do chá. Na realidade o desempenho do comandante e da tripulação durante a viagem ficou como um dos maiores feitos de marinharia de todos os tempos.

O “Cutty Sark” é claro que foi construído para o comércio e portanto para ter lucros, mas a segunda intenção de John Willis era, manifestamente, arrebatar ao “Thermopylae” o troféu de veleiro mais rápido.

O navio saiu de Londres em 3 de Fevereiro de 1872, novamente para Xangai. Na altura da chegada o “Thermopylae” também se encontrava a carregar chá no porto de Woosung. Este carregamento de chá ou melhor, a sua estiva, tinha uma importância fundamental para o equilíbrio do navio e consequentemente influía na velocidade possível de atingir pelo mesmo. A ideia da corrida do chá baseava-se na manutenção da frescura das folhas do chá carregado até chegarem a Londres. Quem fosse o primeiro ganhava fama e proveito já que estavam envolvidos prémios e apostas.

Ambos os navios carregaram, aproximadamente ao mesmo tempo, e zarparam de Woosung em 17 de Janeiro de 1872.

A bordo o “Cutty Sark” embarcou como passageiro o irmão do John Willis – Robert Willis – que não era, de forma alguma e por razões várias, um homem do mar.

A rota habitual de descida do Mar da China até ao Estreito de Sunda – entre as ilhas de Sumatra e de Java – para entrar no Índico, foi efetuada com os dois navios navegando à vista e a 1 de Julho de 1872 o “Cutty Sark” seguia à frente umas escassas milhas do “Thermopylae” mas acabaram por se perder de vista. Mas a corrida continuou em pleno Oceano Índico.

 

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Estreito de Sunda, na passagem do mar da China para o Oceano índico. Do lado da Ilha de Java está o porto de Anger (Anyer) que até 26/27 de Agosto de 1883 era um porto de passagem frequentado pelos clippers do chá mas que foi riscado do mapa a partir dessa data com os dois dias de explosões do vulcão Krakatoa que se vê assinalado no meio do mapa inferior.

  

 

Por curiosidade, o céu alaranjado que aparece no quadro “O Grito” do pintor expressionista Edvard Munch, pintado em 1893, dizem ter sido inspirado no aspeto do céu na Noruega dias depois das explosões do Krakatoa, tinha o pintor por volta de 20 anos. Tal foi a magnitude do cataclismo!

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Mas em 15 de agosto, depois de todos os tipos de vendaval e de alto mar terem assolado o navio, o desastre surgiu. Uma grande onda arrancou o leme do “Cutty Sark” que se afundou impossibilitando assim a sua recuperação e consequentemente a manobra do navio. O capitão George Moodie desconhecia que estava quase 400 milhas à frente do rival. A posição do navio na altura era de 34.26 S e 28.1 E.

Os lugares de refúgio mais próximos para reparações eram os portos Sul Africanos de East London ou Port Elizabeth, ambos a cerca de 170 quilômetros de distância. Mas o capitão Moodie sabia que mesmo que pudesse obter um reboque ou usar as suas velas e as suas âncoras flutuantes para chegar a qualquer porto, haveria pouca ou nenhuma facilidade de reparações disponíveis naqueles dois novos portos marítimos. Alternativamente, a Cidade do Cabo, onde as reparações estariam disponíveis, ficava a 650 nm de distância, mas mesmo que um reboque de vapor se tornasse disponível, tal reboque demoraria muito mais de uma semana e nesse momento, o capitão Moodie estava confiante de que poderia fazer a reparação com materiais existentes a bordo e contando com a perícia da sua tripulação.

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Localização aproximada (a real = 34.26S ; 28.1E) do clipper “Cutty Sark” quando perdeu o leme em 15 de Agosto de 1872

 

No entanto, o desconhecimento e a inexperiência de Robert Willis levou-o a exigir ao capitão que atracasse a um porto para fazer as reparações necessárias. O capitão recusou e fez os planos para reparar o dano fazendo um leme de recurso encaixando-o em pleno mar, sem atracar. A discussão entre o capitão e o irmão do dono do navio, tornou-se tão feroz que, a determinada altura, o capitão Moodie ameaçou pôr o passageiro insubordinado a ferros.

Naquela viagem e porque o alojamento dos aprendizes a meio convés (2) ainda não tinha sido construído, havia apenas um aprendiz/passageiro a bordo, o Alexander Moodie de 15 anos, que era filho do capitão e que fazia a sua primeira viagem no navio, oficialmente como passageiro. Nesta viagem, o Aprendiz Moodie foi o assistente do Mestre Carpinteiro do navio, Henderson que, depois de ter participado na construção do “Cutty Sark”, integrou a tripulação do mesmo assinando como seu carpinteiro. O jovem Aprendiz Moodie foi o encarregado do braseiro e do fole e uma forja, destinada à construção do leme, foi instalada no convés.

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(2) O alojamento para os aprendizes (half-deck) só foi construído quando o “Cutty Sark” se encontrava em Londres no ano de 1872, no intervalo entre a 3ª e a 4ª viagem.

 

No dia seguinte à perda do leme, o tempo melhorou havendo apenas uma grande ondulação mas, mesmo assim o navio revirava e rolava por todo o lado.

O mestre carpinteiro Henderson era um favorito de John Willis e uma pessoa que era muito bem paga com £ 6 por mês, um salário que foi o maior do que qualquer um dos carpinteiros da “Cutty Sark” teve durante todo o tempo em que o navio navegou sob a insígnia de John Willis. Além de participar da construção do navio, o mestre carpinteiro Henderson ficou no navio durante as primeiras viagens e serviu sob três capitães diferentes.

Nas palavras do capitão Moodie:

“A construção do leme era a parte simples do problema. A ligação do mesmo na sua posição e a fixação ao navio para que ele funcionasse... e, em seguida, para que ele tivesse o tamanho e a resistência  suficientes quando posicionado, foi a parte mais difícil do trabalho. A ligação foi feita colocando parafusos de encaixe fêmeas tanto no cadaste como no leme, depois colocando-os para que cada um simplesmente alinhasse com o seu correspondente no outro. Um grande parafuso feito de um pé de cabra de um toldo foi encaixado como eixo em cada um deles e foi apertado em ambas as extremidades. Assim, foram postos cinco parafusos a articular o leme com o cadaste, todos encaixados com parafusos fortes, o que representava um peso considerável.

A garantia de que tudo isto fosse eficaz para o navio era da máxima importância, mas logo se tornou patente que isto não poderia ser realizado da maneira recomendada, que era colocando correntes ao longo do fundo do navio levando-as aos escovéns de saída para o leme.

E a causa desta dificuldade é porque o casco do “Cutty Sark” é demasiado afilado para que uma corrente se segure ao longo da quilha, bem como o fato do comprimento do navio ser muito grande. Seria muito difícil fazer uma união sólida ao cadaste devido ao grande comprimento da corrente. Por conseguinte, conclui ter que colocar duas retenidas de balanço através das buzinas de amarração, encaixando a inferior com um freio debaixo da quilha, a 16 pés a partir do extremo da ré da quilha do navio de modo a que, do cadaste ao freio, houvesse pouca inclinação, para evitar que o timão e o leme subissem em relação à sua correta posição. O próximo problema foi conseguir que a roda do leme ficasse ligada ao leme pois a clara do leme é muito pequena para admitir qualquer coisa. O falso cadaste de popa que emergia 30 polegadas acima do convés quando foi reforçado formou um bom suporte. O novo dispositivo de direção teve que ser fixado na parte de trás da roda do leme e foram colocados dois barrotes no navio, cerca de 15 pés antes da grinalda da popa, que conduziram as correntes de direção, para fora do painel de popa percorrendo a almeida até leme, e então, voltavam para dentro para a roda do leme. Claro que toda a engrenagem estava ligada ao leme e ao cadaste antes de ser posta sobre a popa. Tendo um pequeno modelo do navio, tirei todas as medidas das cadeias que me permitiram colocar este aparelho de uma forma eficaz".

Um bico-de-obra! O capitão George Moodle, cá para mim, tinha ascendência portuguesa. Improvisar era com ele! E é interessante verificar neste texto a importância que o “modelismo de arsenal” tinha nesse tempo.

Popa nomenclatura Cutty Sark.jpgA figura representa a popa de um navio em ferro com características semelhantes ao “Cutty Sark”. Embora este seja um navio moderno a motor a nomenclatura das partes do navio é igual. Coloco-a aqui para aqueles que se perderam o rumo na descrição feita pelo capitão Moore (o Marinhês é mesmo um “dialeto” só para iniciados, especialmente quando é “Navyenglish”) para que possam entender (melhor) a dificuldade da substituição do leme perdido por um improvisado em plena navegação, com mau tempo e com o "chato" do irmão do dono do navio a rezingar nos ouvidos. De fato, foi obra!

 

 

 

Leme original Cutty Sark.png

O leme original do “Cutty Sark” e…

 

 

Leme de substituição do Cutty Sark (1).png

 

… o “design minimalista” do capitão George Moodie

 

Continuando a descrição – já não nas palavras do capitão Moore mas com base nas informações por ele prestadas – em 20 de Agosto de 1872, cinco dias após a perda do leme o “Cutty Sark” estava em condições de reiniciar a viagem e tinha derivado para SE muito poucas milhas do ponto da avari, a para a posição de 34.38S 27.36E.

Contra os ventos predominantes e tendo que diminuir o pano com medo de que o leme de substituição fosse levado, o Cutty Sark rondou o Cabo e pegou os “South Easterly Trade Winds - SETW”.(3) Em todos os momentos o leme de substituição foi mantido debaixo de observação mas, o mais importante é que se observou que as cavilhas começavam a dar mostras de sinais de fadiga.

 (3) Para quem tiver curiosidade em compreender a circulação atmosférica nas várias latitudes e longitudes, aqui fica um link:

https://en.wikipedia.org/wiki/Trade_winds

 

Em 12 de Setembro, foi passada a ilha da Ascensão, mas no dia 20 de Setembro, quando o vento SETW amainou, também a última das cavilhas do leme foi à vida. Todo o dispositivo teve então que ser alado a bordo aproveitando a calmaria e, dentro de um dia, as reparações foram concluídas. Para içar a madre do leme através da escotilha, todo o leme e peças associadas foram aladas sobre a popa e as velas do navio manobradas para encheram com a suave brisa, para movê-la à vante.

Depois, uma vez que o leme semissubmergido estava um pouco afastado da popa do navio, as velas foram manobradas de forma a enviar o navio lentamente para a ré, para que as cavilhas pudessem ser enfiadas pelos encaixes muito mais facilmente e assim o leme logo ficou conectado e a trabalhar novamente. Apesar da reparação, no entanto, o navio tinha de singrar lentamente, pois não havia equipamento sobressalente para a fabricação de mais peças de leme caso necessitassem de serem substituídas novamente. Isto foi muito decepcionantemente para o capitão Moodie, pois a sua corrida com o “Thermopylae” teve de deixar de ser prioritária.

O “Thermopylae” chegou a Londres em 11 de setembro de 1872 após uma passagem de 115 dias e foi declarada vencedora da corrida com o “Cutty Sark”. Mas apesar de todo o azar, depois de retomar o caminho para casa com uma velocidade reduzida por mais de 7.000 nm, o “Cutty Sark” atracou apenas mais sete dias depois do seu rival.

Depois das suas contínuas altercações com Robert Willis (o irmão do donodo navio) e apesar dos pedidos insistentes de “Old White Hat Willis” para ele permanecer como capitão, George Moodie e o seu filho abandonaram o “Cutty Sark” em 19 de outubro de 1872. Aparentemente, o Capitão Moodie juntou-se a um navio de Glasgow da “State Line”.

Naquele tempo, os navios tinham “claques” de suporte como as equipas de futebol  têm hoje. O "Cutty Sark" e o "Thermopylae" tinham os seus “hooligans” que também, por vezes, chegavam a vias de facto – o “fair play” já existia mas, tal como hoje, muitas vezes não funcionava – e muito foi dito e discutido sobre qual dos dois navios envolvidos ganhou a corrida. E não havia televisões e comentadores desportivos! Mas havia pasquins como o “Correio da Manhã” (ainda há). Argumentou-se que o "Cutty Sark" estava quase 400 milhas à frente de seu rival quando perdeu o leme e, embora o capitão Kembal do "Thermopylae" negasse que estivesse tão atrasado em relação ao "Cutty Sark", recusou-se a facultar o seu diário de bordo para ser examinado pelos contestatários. Tenho curiosidade em saber a verdade e consultar este “log book”. Estão muitos publicados mas este, em particular, ainda não o consegui ver! Segredo de estado? Aqui o “Vídeo Árbitro” também não funcionou!

Quanto à “Corrida do Chá” propriamente dita, o "Titânia" chegou a Londres em 19 de setembro, após 116 dias e foi o primeiro a chegar a casa com os chás para esse ano. Seguiu-se o "Duke of Abercorn", que deixou Foochow em 18 de junho e demorou 114 dias. O "Thermopylae" o "Undine" chegaram a casa a par no terceiro lugar após 115 dias de viagem. A passagem mais curta de 1872 foi realizada pelo "Normancourt", um navio de propriedade dos banqueiros londrinos "Baring Brothers" que levou 96 dias de Macau para "The Lizard" (o ponto mais a Sul da Inglaterra).

(continua)

Um abraço e…

Bons Ventos.